Como você avalia o período que terminou chamado por alguns políticos e intelectuais como “Socialismo do século XXI na América Latina”?
Alberto Acosta: É difícil afirmar tão categoricamente que esse período terminou, porque não devemos esquecer que na Argentina o governo neoliberal terminou em pouco tempo e um governo “progressista” retornou. O importante é entender que os governos “progressistas”, que surgiram de uma matriz de esquerda em muitos casos, no caminho se metamorfosearam como regimes empenhados com a modernização do capitalismo. E, nesse trânsito, houve uma crescente convergência com os governos neoliberais da região, por exemplo, os dois tipos de governos aprofundaram igualmente os extrativismos com suas características de violência, repressão, corrupção e autoritarismo, aprofundando a dependência do capitalismo metropolitano. Seus discursos de socialismo e revolução eram apenas isso, simples discursos. Para pôr em termos coloquiais, eles se comportaram como motoristas irresponsáveis que sinalizam à esquerda para virar à direita …
Aqui no Brasil, especulou-se que as lutas de outubro de 2019 no Equador poderiam levar à tomada do poder pelas forças populares. Como você analisa esse recente momento da rebelião de outubro no Equador, a pressão sobre o governo Lenín Moreno e as conquistas populares?
Alberto Acosta: Outubro foi um marco na história recente do Equador. Após um longo período de repressão e criminalização dos líderes populares no governo Rafael Correa – no qual, além disso, atacou duramente os movimentos sociais – eles conseguiram se reorganizar, mobilizar e impedir o ataque neoliberal do governo Lenín Moreno. As forças populares não tinham um golpe de estado em sua agenda, essa era a intenção de grupos correistas empenhados em gerar o caos, a fim de libertar seu caudilho e outros membros da cúpula do governo anterior de uma série de processos iniciados por corrupção.
No momento, essas lutas estão em quarentena. Mas não há dúvida alguma de que o ambiente social, exacerbado pela administração econômica recessiva e pela gestão do governo, caracterizado pela improvisação, continua sobrecarregando de frustrações e protestos futuros, que já antecipam reações populares como as experimentadas em outubro passado.
Não devemos esquecer que o Equador, antes do coronavírus, já enfrentava uma conjuntura econômica cheia de emergências fiscais e com um ambiente internacional muito difícil que estrangulava as contas externas. E agora essa crise adquiriu características dramáticas com o evidente desgoverno frente à pandemia de coronavírus.
Como você vê a situação da estrutura precária do sistema de saúde entrando em colapso com a pandemia da covid-19?
Alberto Acosta: À primeira vista, a gravidade da crise da saúde no Equador é explicada pelos cortes brutais e irresponsáveis nos investimentos no âmbito da saúde pública pelo governo do presidente Lenín Moreno, como resultado das imposições neoliberais do FMI. Dos 353 milhões orçados no Plano de Saúde de 2017, foram aplicados 302 milhões em 2018 e 186 milhões em 2019. Uma queda agravada pela incapacidade de executar o valor do orçamento alocado – também devido a pressões derivadas da austeridade fiscal. O que refletiu num investimento real de 241 milhões em 2017, 175 milhões em 2018 e 110 milhões em 2019.
Essa redução nos marcos da austeridade “fundomonetarista” afetou gravemente a disponibilidade de insumos de saúde, a construção da infraestrutura hospitalar, incluindo a existência de pessoal médico, que foi demitido massivamente em 2019 – estima-se que 3.000 pessoas teriam sido afastadas. O saldo dessas decisões fiscais recessivas resultou em um grave impacto na capacidade de atenção em situações de emergência. E esse necro-liberalismo nos passa a fatura: o Equador é o país mais afetado pela pandemia em toda a região.
Como estava a situação da saúde antes das medidas de austeridade do Governo Moreno?
Alberto Acosta: Sem minimizar a torpe decisão de reduzir o investimento em saúde, o problema é mais complexo. O orçamento estatal para o setor da saúde, não apenas para essas emergências, mas para sustentar um sistema de saúde eminentemente curativo e que mantém partes importantes mercantilizadas – “cai num “um barril sem fundo”, pois é um esquema apoiado pela lógica “hospital-centríca”. Portanto, a tragédia da saúde não é apenas uma questão de recursos ou a capacidade de responder a situações de emergência, mas também o resultado de um sistema atormentado por deficiências.
Embora seja inegável que de 2006 a 2017 a cobertura dos serviços de saúde tenha sido modernizada e ampliada, além da propaganda oficial do Correismo, os problemas são muitos. Um déficit significativo foi negligenciar o enorme potencial da saúde preventiva e, de fato, o conhecimento ancestral das culturas e povos indígenas, que pode ser um pilar de um vigoroso sistema de saúde baseado em práticas comunitárias e participativas.
Além disso, durante o governo de Correa, através de um processo silencioso de privatização, se permitiu acumular capital nos bolsos do complexo médico industrial, marginalizando essas outras opções potentes para construir um sistema de saúde diversificado, vigoroso e eficaz, cristalizando efetivamente a saúde como um direito. Nesse governo de Correa, os grupos econômicos mais poderosos foram os grandes beneficiários. A saúde não foi a exceção.
Como está a situação em Guayaquil e no país em geral?
Alberto Acosta: Em Guayaquil, uma cidade “excludente e neoliberal”, devido ao seu tipo de regeneração a favor do capital, com várias deficiências de saúde denunciadas antes da pandemia. Os problemas são muito mais graves. Nesta cidade portuária, marcada por diferenças sociais extremas, o coronavírus veio da Europa. Tanto pelas pessoas com certos confortos que vieram de viagens de estudo ou turismo, quanto pelas pessoas que trabalham na Espanha e na Itália, principalmente.
É evidente que aqueles com mais recursos lidam melhor com o coronavírus em hospitais privados. Enquanto aqueles que não têm essa sorte, mesmo os setores da classe média severamente atacados, tiveram que recorrer ao sistema público causando sua saturação. Assim também colapsou todo o sistema de registro de mortes e enterro de cadáveres.
A Covid-19 expôs essas e muitas outras aberrações em uma cidade onde o município trabalha com uma série de alianças público-privadas. Aqui, o sistema de saúde se desenvolveu nos últimos anos entre esforços progressivos para modernizá-lo e a existência de sistemas de saúde e assistência social decorrentes de uma lógica filantrópico-neoliberal curiosa, que caracterizou as estruturas de dominação nesta cidade. As prefeituras social-cristãs – um partido que surgiu da direita oligárquica – estão presentes ininterruptamente há mais de vinte oito anos, tensionadas pelos populismos e pelos sonhos de modernização. Longe de atender os problemas estruturais de saúde, alimentação, emprego e moradia, procuram, sobretudo, enganar com “a fachada” da cidade melhorando, por exemplo, praças e parques com a intervenção de fundações privadas.
Você poderia explicar mais a situação em Guayaquil para entender melhor a tragédia que é vivida nessa cidade do Pacífico?
Alberto Acosta: O assunto é mais complexo se considerarmos que esta cidade, a mais populosa do Equador, que tem sido seu motor comercial, segue sendo atrativa para muitas pessoas que vêm de outras regiões depauperadas em busca de emprego. Portanto, a informalidade é uma das características básicas. Seus bairros periféricos – geralmente sem pavimentação, água potável e esgoto – crescem sem parar na ausência de planos de urbanização adequados, assim como sem respostas que resolveriam estruturalmente desigualdades e exclusões em todo o país. Por exemplo, no Equador, gravita a necessidade de uma reforma agrária, tal como manda a Constituição de 2008, que Correa se opôs obstinadamente ao cumprimento desse mandato constitucional.
De fato, neste contexto, em uma cidade portuária, vibrante de comércio e migração, caracterizada por profundas desigualdades, faltam estratégias habitacionais para criar condições materiais que permitam articular formas mais favoráveis à reprodução da vida. O habitat popular foi negligenciado como um espaço privilegiado para a autogestão coletiva das condições de produção e reprodução de uma economia baseada no trabalho, totalmente oposta à lógica imobiliária capitalista que concebe a habitação e o habitat simplesmente como uma mercadoria. E certamente nada foi feito para pelo menos tentar estabelecer relações harmoniosas com o ambiente natural. Reflexões válidas para todo o país.
Quais foram os efeitos das medidas governamentais para mitigar os impactos da pandemia de Covid-19?
Alberto Acosta: Considerando que o coronavírus surpreendeu os sistemas de saúde em todo o planeta, a decisão de estabelecer uma quarentena, especialmente nas maiores cidades, é razoável para tentar retardar o avanço da pandemia.
Fique em casa, sim, mas a pergunta é: quem pode ficar em casa e sobreviver? Podemos ver como é difícil permanecer em quarentena em casa, mesmo com certos confortos e sem pressões econômicas. Muito mais complexo, portanto, é para os grupos estruturalmente desprotegidos que não possuem moradia adequada, renda estável ou poupança, e que vivem em condições realmente subumanas, nas favelas, ou para aqueles que dormem nas ruas.
Até 2016, de acordo com o Programa Nacional de Habitação Social, 45% dos 3,8 milhões de domicílios equatorianos viviam em habitações precárias. São 1,37 milhão de famílias residindo em casas construídas com materiais inadequados, sem serviços sanitários básicos e/ou com problemas de superlotação. E essa situação não mudou. Além disso, com as tendências recessivas desde 2015, esta situação deve ter piorado.
Imaginemos, então, como é a vida de centenas de milhares de pessoas que não têm casa. Uma situação ainda mais complexa em uma cidade de milhões de habitantes como Guayaquil, caracterizada por enormes desigualdades. Uma cidade onde o clima nesta época do ano é especialmente duro devido às altas temperaturas e outros desconfortos típicos da época.
Como exigir comportamentos sanitários adequados quando não há água potável? Como esperar que a educação ou o trabalho à distância funcionem se 60% da população do país não tem acesso à Internet e nem sequer tem um computador? Como exigir que as pessoas idosas permaneçam em casa se vivem sozinhos e em uma enorme precariedade? Tenhamos presentes essas realidades.
Qual é o quadro atual da situação de renda e ocupação dos trabalhadores no Equador?
Alberto Acosta: Então, quantas pessoas no Equador têm uma renda estável? Sabemos que mais de 60% da população economicamente ativa, cerca de 5 milhões de pessoas, não tem emprego adequado. Isso significa que o maior número dessas pessoas vive do dia a dia. São vendedores ambulantes, pedreiros, alfaiates, costureiras, motoristas, pessoas que prestam atendimento em diferentes áreas e serviços. Por exemplo, algo muito simples, pessoas que vivem de servir almoços em pequenos restaurantes. Toda essa gente está totalmente desprotegida. A infecção, à medida que se espalha, está demonstrando as taxas de mortalidade e contágio em termos de classe; aprofundando as diferenças entre a cidade construída, a dos grupos abastados, e a cidade dos construtores, geralmente nos bairros periféricos ou favelas.
A pandemia, então, por um lado, revela a realidade da injustiça social, das iniquidades e das desigualdades sociais, de uma maneira brutal; e, por outro lado, isso levará a um aumento da pobreza. A CEPAL já antecipa – em estimativas preliminares – que o impacto do coronavírus poderia causar um aumento de 35 milhões de pessoas pobres na América Latina. Isto sem considerar o impacto da grave recessão econômica mundial que está em marcha desde antes do surgimento do coronavírus. E o Equador, em todos os cenários das organizações multilaterais, como a própria CEPAL, o FMI ou o Banco Mundial, aparece com o maior impacto. O governo também dá sinais a esse respeito. Por exemplo, seu vice-presidente Otto Sonnenholzner antecipa que o custo da pandemia pode significar 10 ou 12% do PIB.
Como você avalia as medidas econômicas do governo?
Alberto Acosta: Lembremos que temos uma economia extremamente dependente do mercado mundial, que negligenciou suas potencialidades locais. Exportamos matérias-primas quase sem processamento, destruindo a natureza e afetando as comunidades. Dependemos de equipamentos e máquinas importados. A maioria dos mercados é controlada por poucos grupos oligopolistas, que têm o Estado como padrinho. Grande concentração de riqueza. Marginalização estrutural de médias e pequenas empresas, cooperativas, associações e comunidades que geram mais empregos. Abandono dos camponeses que alimentam a sociedade. Alto custo de créditos. Peso excessivo da dívida externa. Falta de política monetária e cambial: a dolarização é um estorvo! Estagnação desde 2015.
E nesse cenário, moldando o que pode ser entendido como a tempestade perfeita, com deplorável administração governamental, o Equador enfrenta a pandemia de coronavírus e a recessão global. Sem ser pessimista, as perspectivas são cada vez mais sombrias.
Como um paciente com coronavírus, a economia se asfixia literalmente… Sufoco exacerbado pela falta de um respirador, uma vez que, a (economia) sendo dolarizada, não possui política monetária e cambial própria. Uma economia que não possui um cilindro de oxigênio, ao não ter reservas. Uma economia carregada de enormes encargos, como dívidas externas irresponsáveis e muito caras, contraídas neste governo e no anterior. Há muitos outros e sérios problemas, conjunturais (como o custo do petróleo derramado no solo, com os dois oleodutos quebrados por deslizamentos de terra na cordilheira oriental) e estruturais (como a ausência de autênticas transformações produtivas). A redução acelerada das remessas dos compatriotas que trabalham no exterior e que chegaram a representar um ingresso mais elevado do que as exportações de banana, um dos itens de maior venda externa do Equador depois do petróleo. O diagnóstico se complica com as medidas recessivas do FMI e pela obstinação de um governo que não aceita medidas criativas, extraordinárias e, sobretudo, sustentadas num sistema de solidariedade com justiça social e justiça ambiental.
Esse caos cria expectativas sombrias. Em resposta, o governo de Lenín Moreno – insensível e extremamente desorientado – apresentou de maneira fragmentada várias medidas econômicas que buscam enfrentar a tempestade. Ter algum alívio para continuar expandindo os extrativismos e o neoliberalismo, com crescente ingerência do Estado em sua faceta repressiva, tal como sucedeu no governo anterior que já deixou a porta entreaberta ao fundomonetarismo.
Quais são as experiências de solidariedade e auto-organização de trabalhadores e comunidades no Equador para enfrentar a pandemia de Covid-19?
Alberto Acosta: Enquanto as elites dominantes resistem a assumir propostas que permitem que a crise seja enfrentada com genuína solidariedade, isto é, com justiça social, os setores populares duramente afetados pelo coronavírus e pela crise econômica demonstram sua enorme capacidade de generosidade e organização. Os exemplos são múltiplos. Desde as redes por bairros nas cidades e nas comunidades do campo que se organizam em sistemas próprios para o suprimento e distribuição de alimentos. Inclusive para os cuidados médicos primários e mecanismos de segurança comunal, sem qualquer apoio estatal. As respostas em muitas comunidades indígenas ampliam as experiências econômicas solidárias e recíprocas de seus territórios; estabelecem centros de coleta, mecanismos próprios de segurança comunitária, sistemas de informação adaptados às suas realidades, entre muitas outras ações.
Existem exemplos cada vez mais comoventes de camponesas e camponeses que, apesar dos riscos que suas vidas correm em tempos de pandemia, viajam às cidades para entregar diretamente– sem compensação alguma – seus produtos nos bairros populares, num gesto que demonstra que os que têm menos são os que mais compartilham. Também existem múltiplas maneiras que impedem que os intermediários inescrupulosos façam negócios desmedidos durante esta grave crise. Tenámos presente que o mercado de alimentos processados está controlado em 91%por três cadeias comerciais que, assim como as empresas do segmento da Saúde, obterão enormes lucros.
Um dos casos mais comovente foi o transporte de folhas de eucalipto das populações mais pobres da serra equatoriana para a cidade de Guayaquil. Pois as populações do campo ouviram dizer que as folhas dessa árvore eram recomendadas para lidar com a Covid-19.
Também vale a pena mencionar o trabalho de alguns governos autônomos descentralizados que assumiram a liderança em suas regiões, na ausência de orientação clara do governo central. Destacamos, por exemplo, as prefeituras de Quito, a capital, assim como a de Cayambe e também a prefeitura de Azuay – estas duas últimas nas mãos de líderes indígenas.
Estamos no “labirinto capitalista” em que a concentração de riqueza e a desigualdade aumentam com a pandemia de Covid-19?
Alberto Acosta: A humanidade, com a pandemia de coronavírus, parece estar vivendo um filme de terror, que nos confronta brutalmente e globalmente com a possibilidade do fim de sua existência no planeta. Sem ser um filme, sendo uma dura realidade, se trata de uma mega produção que está em marcha há muito tempo. Essa pandemia não surge do nada, não é o produto de um simples complô. A pandemia da Covid-19 nos confronta com uma realidade que vem se deteriorando rapidamente, há pelo menos sete décadas – desde que começou a inútil e, ao mesmo tempo, brutal corrida detrás de um fantasma: o desenvolvimento; mas com ainda mais brutalidade no último período. Aceitemos também que a recessão econômica não é um produto do coronavírus, pois já começou a nos atingir desde o ano anterior.
A nível mundial, vivemos uma crise múltipla, generalizada, multifacetada e inter-relacionada, mais do que sistêmica, com sinais claros de um desastre civilizador. Nunca surgiram tantos problemas simultaneamente, que vão além da saúde, mostrando efeitos nos aspectos político, econômico, ético, energético, alimentar e, é claro, cultural. Mas esses graves problemas não permanecem nessas dimensões, pois também existem efeitos ambientais inegáveis.
Como deter a destruição capitalista da natureza e dos modos populares de vida?
Alberto Acosta: Para começar, vamos reconhecer a realidade como ela é, por mais dura que seja. Já não falemos mais sobre mudanças climáticas. Sejamos precisos nos termos. Estamos no meio de um colapso climático. Não podemos esquecer que as mudanças no clima têm sido parte integrante da história da Terra. E esse colapso foi forjado pelos seres humanos dentro da estrutura do que é superficialmente conhecido como o “antropoceno”; em termos corretos, corresponde ao “capitaloceno”.
Infelizmente, esta mensagem não parece interessar aos poderosos. Suas respostas no campo econômico, além da angústia da situação, apontam para a recuperação da normalidade. Países com capacidade econômica estruturam sistemas de apoio à produção, assumindo mais uma vez o papel do Estado como empresa para reparar o sistema capitalista enfraquecido e colocá-lo em operação assim que a pandemia sanitária puder ser controlada. Os países empobrecidos, de uma maneira ou de outra, apesar de aceitarem a necessidade de maior compromisso social dos Estados, também buscam retornar à corrida com as conhecidas receitas: o neoliberalismo e seu sustento fundamental, os extrativismos. Deve-se acrescentar à toda esta preparação para reativar o aparato produtivo o mais rápido possível, sem considerar ou analisar quais são os problemas de fundo, um marco de crescente autoritarismo.
Como reverter a destruição capitalista? Isto teria a ver com o “pós-extrativismo” e “decrescimento” que você vem trabalhando?
Alberto Acosta: De qualquer forma, apesar dessas expectativas complexas, o que se pode esperar é que cada vez mais pessoas compreendam a complexidade da situação e defendam o não retorno à normalidade. Porque essa normalidade, causadora da crise, foi uma verdadeira a- normalidade.
Por essa razão, hoje mais do que nunca, ganham renovada força as alternativas provienientes das diversas formas de vida indígena, que também nos oferecem visões para ler a realidade de outra maneira, a fim de compreender melhor o mundo em que vivemos; ao mesmo tempo, que nos convida para revisar nossas tradicionais categorias de análise. Não existem modelos, nem receitas, mas uma variedade de noções e experiências de como podemos imaginar e alcançar uma transformação socioecológica vital pode ser imaginada e alcançada, harmonizando a vida dos seres humanos com os não humanos, impossível de alcançar com as abordagens da Modernidade.
Diferentemente do desenvolvimento, que é um conceito baseado em um falso consenso, essas visões alternativas não podem ser reduzidas a uma única visão e, portanto, não representam um mandato global incontestável. Nem podem aspirar a ser adotadas como uma meta comum pelas organizações internacionais e, só então, se tornar realidade. Muitas dessas idéias nascem como propostas radicais de mudança, especialmente de ambientes locais, especialmente comunitários. O que conta, então, é sair da armadilha do desenvolvimento e do seu pai: “progresso”. E para isso, aproveitando as respostas com conteúdo da mudança civilizadora do mundo indígena e não indígena, é necessário trabalhar em todos os níveis estratégicos de ação: do local ao global, passando pelo nacional e regional, mas tendo em mente a necessidade de atuar sobretudo no local, porque nesse momento ali reside o maior potencial de mudança e está ali a possibilidade de incidir imediatamente.
Esse processo de desconstrução do desenvolvimento abre fortemente as portas para o Bem Viver do mundo dos povos indígenas, desde culturas da vida com diferentes denominações e variedades em diferentes regiões do planeta. Essas experiências podem ser enriquecidas com uma multiplicidade de contribuições com conteúdo emancipatório. Os postulados ecofeministas e o paradigma do cuidado representam um aspecto muito poderoso dentro desse arco-íris pós-desenvolvimentista, que necessariamente deverá também ser pós-extrativista e deve estar sintonizado com as reflexões que advêm do decrescimento. E, a propósito, deve incorporar todo o aporte decolonial.
Um dos princípios que inspiram o Bem Viver – pensado no plural: o bons “conviveres” – é o equilíbrio na vida de seres humanos e não humanos; aceitando que, em última análise, os seres humanos são a Natureza e que vivemos em comunidade com ela e com nossos semelhantes.
Portanto, se os seres humanos são a Natureza, somos obrigados a recuperar e construir relações harmoniosas com ela. Sua exploração desenfreada deve ser interrompida; temos que desmercantilizá-la; temos que nos reencontrar com ela (Natureza), garantindo sua regeneração, com respeito, responsabilidade, reciprocidade e “relacionalidade”. E tudo isso começa protegendo as áreas que até agora não foram devastadas pelos extrativismos. Áreas cuja a defesa dos povos indígenas representa formas poderosas e concretas de como enfrentar o colapso climático.
A tarefa é mudar a história da Humanidade, essa história de domínio do ser humano sobre a Natureza. Durante séculos, a relação sociedade-meio ambiente foi marcada pelo utilitarismo e pela exploração de recursos. Essa realidade é responsável por uma separação perversa entre a humanidade e a natureza. E neste âmbito, a relação de subordinação da Natureza – reforçada pelas idéias de “progresso” e “desenvolvimento” – gera todo tipo de pandemia que aponta para uma terrível catástrofe socioambiental.
Neste sentido, a resistência e as lutas indígenas nos oferecem aprendizados?
Alberto Acosta: Sem romantizá-los, as comunidades indígenas – portadoras de uma longa memória – demonstraram que os seres humanos podem organizar formas de vida sustentáveis. Uma relação harmoniosa com a Natureza – presente em muitos espaços do mundo indígena, mas não em todos – se sintoniza com a “sustentabilidade”; conceito que, a propósito, foi extremamente pervertido e se tornou trivial ao extremo, inclusive quando com ele se quer maquiar o desenvolvimento.
Um ponto chave. Os Direitos da Natureza concentram sua atenção na Natureza, que obviamente inclui o ser humano. A natureza vale por si mesma, independentemente dos usos que as pessoas lhe dão, implicando uma visão biocêntrica. Esses direitos não defendem uma natureza intocada. Esses direitos buscam manter sistemas e conjuntos de vida. Sua atenção está focada nos ecossistemas, nas coletividades.
Em suma, devemos ir além. Não se trata de buscar um equilíbrio entre economia, sociedade e ecologia; menos ainda, usar como eixo articulador aberto ou disfarce para o capital. O ser humano e suas necessidades não apenas devem prevalecer sobre o capital, mas devem constituir (o núcleo) ponto medular de outra economia que está a serviço da vida, buscando sempre a harmonia com a Natureza, a base fundamental para qualquer existência.
Um futuro de vida plena será possível dentro do marco do Pluriverso: um mundo onde caibam todos os mundos, garantindo uma vida digna para todos os seus seres humanos e não humanos.