Povos nativos em festa e guerra, uma política de alegria e coragem
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Por Paulo Silva Junior
Elefante na Sala
Se a política pode ser definida como a “arte de operar coletivos”, os termos “festa” e “guerra” foram o par que fundamentam a filosofia política dos povos nativos na América. Essas comunidades estão há séculos estabelecendo e praticando relações entrei si e com todos os seres do mundo em “modo festa” e “modo guerra”. Mas ainda que essas palavras estejam diariamente entre os falantes da língua portuguesa no Brasil, seus sentidos e relações para os povos originários podem estar bem distantes do que entendemos numa tradição ocidental. Não só os nomes, mas a própria ética de convívio e relacionamento é outra.
Beatriz Perrone-Moisés é autora de Festa e guerra: movimentos coletivos dos povos nativos da América, tema deste episódio de número 14 de nossas conversas com autores aqui no Elefante na Sala. Ela é professora na Universidade de São Paulo dedica sua pesquisa aos direitos indígenas, à relação entre europeus e nativos no período colonial e ao que chamamos de política, nesse caso vista pelos modos indígenas. Também traduziu várias obras muito importantes como A Queda do Céu, de Davi Kopenawa e Bruce Albert.
O Elefante na Sala é o podcast da Editora Elefante, disponível no player acima, nos tocadores, no YouTube e no nosso site.
Beatriz, queria começar te ouvindo um pouco sobre a trajetória até esse livro. Ele é derivado de uma tese de livre docência na USP, mas eu queria saber, entre tantas andanças, pesquisas e temas relacionados aos povos indígenas — como o direito indígena, as relações com os europeus etc —, como a gente chega até Festa e guerra, até o livro que a gente tem em mãos?
O livro é de fato a transformação de uma tese de livre docência, que, como costuma acontecer com tese de livre docência, reunia uma série de pesquisas e indagações, questões colecionadas ao longo do tempo. O livro é bem diferente da tese, na medida em que a tese tem um formato propriamente acadêmico, tem uma dedicação a certos debates entre especialistas, e o livro, ao contrário, não tem essa preocupação. E tem uma série de outros exemplos que eu fui colecionando depois da defesa da tese, no período de transformação da tese em livro.
Eu comecei, de fato, pesquisando no meu mestrado e no meu doutorado, relações entre europeus e povos indígenas na América, no período colonial. Comecei no mestrado pela legislação indigenista portuguesa para a colônia brasileira. Depois, no doutorado, me dediquei às chamadas colônias francesas, tanto no Brasil quanto no Canadá. E, depois disso, eu comecei a me concentrar em questões que a gente chama de antropologia política, me perguntando, afinal, o que entre os povos indígenas corresponderia àquilo que, entre nós, chamamos de política. Sempre orientada por essa ideia de que as nossas categorias e modos de fazer sociedade são diferentes, não se aplicam transculturalmente, e que, portanto, é preciso começar por investigar o que é isso: política. Esse livro foi tomando forma, portanto, ao longo dos anos, com pesquisas. Muitas pesquisas dedicadas à noção de chefia, porque corresponde exatamente à nossa questão fulcral quando se fala de política.
Mas eu só fui juntar quando cheguei, de fato, a uma definição de política que me permitia pensar outras coisas, além daquilo que a gente considera como própria mídia política. Essa definição da política como “modos de operar coletivos”, de fazer e desfazer coletivos, ela, de fato, abre para a comparação e para a compreensão de outros modos de política.
E por que exatamente festa e guerra? Como que tudo isso foi caminhando para a gente chegar nesse título, nesse contraste, na força dessas duas palavras? E que provocação esse título nos faz enquanto brasileiros, enquanto falantes de língua portuguesa, diante dessas palavras? Porque a gente está também frente a um debate, ou a um dilema, de tradução, no caso.
É, tradução é a grande questão, é a grande questão antropológica, o grande desafio, sobretudo porque não se trata só de traduzir palavras, né?
As palavras muitas vezes não têm nem tradução. É muito comum que elas não tenham uma tradução e, nesse sentido, festa e guerra aqui não correspondem exatamente aquilo que a gente entende ou poderia entender por festa e guerra, né? São festas diferentes das nossas e guerras diferentes das nossas. O par já estava presente, claramente exposto em vários trabalhos de vários colegas que se dedicavam a povos específicos. Já estava em títulos de teses, em títulos de artigos, já estava lá. O que foi me aparecendo como cada vez mais evidente é que ele não estava apenas em certos casos específicos, mas estava na América inteira, de certo modo.
E essa pesquisa do doutorado que me levou à comparação com colônias canadense aumentou muito a gama de referências que eu tinha, que eu tenho, de povos indígenas das Américas. Então, o que me pareceu é que a gente podia estender, de fato, e entender essa dupla como fundamental na filosofia política dos povos nativos da América como um todo. Mas apoiada, evidentemente, inspirada por esses trabalhos anteriores que já apresentavam essa dupla como norteadora das atividades coletivas dos povos indígenas.
Em diversos momentos, a gente se depara com essa dificuldade de compreensão dos não indígenas em relação ao arranjo social de determinados povos indígenas. Você lembra no livro, por exemplo, a dificuldade histórica até de se delimitar claramente grupos nativos, de encontrar linguagem para dar conta dessas nomeações, dessas formações. Seu trabalho vai nesse sentido, também, de nos educar de alguma forma? De pensar que a gente vive no Brasil, um país com inúmeras etnias nativas e que, de forma geral, não tem um conhecimento bem difundido sobre como se relacionar com determinadas populações, nem como tratá-las. Inclusive um eterno debate sobre nomear como índios, indígenas, povos indígenas…
Bom, eu não sei se esse livro ajuda a se relacionar com povos diferentes, porque esse é um problema muito mais amplo, né? A dificuldade de lidar com diferenças culturais que, no caso, são diferenças nativas americanas. Povos originários, como se diz. A nomenclatura, de fato, é variada. A minha ideia era juntar uma série de coisas que eu fui aprendendo ao longo dos anos e que foram tomando uma forma, digamos assim, sistêmica.
Coisas que foram se aglutinando para explicar outras dificuldades que a gente tinha de compreensão e de tradução dessas formas culturais, sociais, políticas dos povos nativos. E espero que a leitura possa sugerir, primeiro, uma outra visão dos povos nativos, de diferenças fundamentais entre nós e eles, num país que ignora as suas populações nativas, desde sempre. A nossa história oficial põe os índios no começo da colônia, carregando Pau-Brasil, e depois disso é como se eles desaparecessem. Infelizmente, eu tenho verificado que nossa história continua sendo ensinada desse mesmo modo.
Então as populações indígenas não só não têm muito lugar na história do Brasil como desaparecem cedo. E o Brasil desconhece seus povos indígenas. Nos últimos anos, eles têm aparecido mais, mas eu acho que ainda não se pode dizer que eles tenham, de fato, conquistado o protagonismo. Uma das coisas que está sendo reivindicada nessa COP30, por exemplo, é o protagonismo do conhecimento da ciência desses povos no trato com aquilo que a gente chama de meio ambiente, né? Com todas as formas de vida, na verdade. E esse respeito à ciência indígena, embora seja de certo modo cada vez mais reconhecido, ele ainda não se não gerou uma incorporação dessas vozes, desses saberes nas nossas formas de vida. Eles continuam sendo um pouco, ou muito, alijados. E continuam sofrendo um preconceito brutal, do qual se fala também pouco. Quer dizer, a ignorância brasileira sobre seus povos nativos ainda é muito grande e eu espero que isso gere curiosidade, que ajude mais brasileiros a se perguntarem, a prestarem atenção, a escutarem e a respeitarem esses povos.
E aí uma questão mais objetiva. O fato das pessoas no Brasil estarem cada vez mais votando em representantes indígenas para cargos públicos: o que que isso aponta nessa discussão? Em tese, aproxima uma relação, ainda que seja uma representação distante e simbólica; ao mesmo tempo que a própria ideia de política que as pessoas têm de forma geral não dá conta dessa variedade de sentidos e formas de ver o mundo. Então, por exemplo, quando a gente elege uma liderança em Brasília, vai pensar na atuação daquela pessoa, naquela mediação do Congresso que é uma coisa completamente diferente, né? Sob aquelas regras, sob aquele formato de política que está institucionalizada num governo brasileiro, por exemplo.
Então, a participação de indígenas na nossa política, de fato, tem aumentado. Mas é preciso lembrar que ela é, de certo modo, uma decorrência do próprio processo colonial. Eles são obrigados, para defender seus direitos, a se inserir na nossa política, no nosso sistema político, que é muito diferente dos modos nativos de operar essas questões que, para nós, estão ligadas à política.
Um problema fundamental e que aparece constantemente é a questão da representação. Nós operamos com a ideia de que a gente elege representantes e que esses representantes vão poder tomar decisões. Entre os povos indígenas da América, desde o começo, isso está registrado, desde o século XVI, ninguém fala em nome de ninguém, não existe essa ideia do representante. Existe a ideia do porta-voz. E nesse sentido muitos desses nossos representantes indígenas na nossa política atuam como porta-vozes, o que sempre gerou, já desde o período colonial, uma dificuldade de comunicação. Porque a nossa política exige, de certo modo, que certas pessoas que estão lá em cargos específicos possam votar, falar, decidir por outras que elas supostamente representam. A maior parte desses candidatos — e isso também aconteceu na América do Norte, em outros países da América Latina — sabem que são modos diferentes. Eles têm que se adequar à nossa política e, por outro lado, têm tentado cada vez mais modificar a sua atuação política de modo a respeitar uma tradição de pensamento e de práticas políticas que é deles, mas que dificilmente se adequam. A começar por esse problema da representação.
Tem um dos casos que conto no livro, que acho muito interessante, logo no começo, que é relativo à irritação dos britânicos diante da demora dos representantes (que eles tomavam como representantes) dos povos iroqueses para tomar decisões. A administração propunha certas coisas, os porta-vozes ouviam, levavam de volta à comunidade, e depois disso tinha um longo processo na comunidade em que todos são ouvidos e chega-se a uma voz consensual. E é essa palavra que o porta-voz leva de volta, no caso, à administração colonial britânica. Muitas vezes esses porta-vozes voltavam dizendo: não, não chegamos à conclusão nenhuma ainda. E isso, ano após ano, irritava profundamente os britânicos. O que é um exemplo muito forte desses desencontros entre a nossa política e a deles, digamos assim.
Por fim, Beatriz, queria saber, de forma mais geral, como que Festa e guerra entra numa certa estante contemporânea desse pensamento aqui no Brasil? Estamos falando de leitores que, provavelmente, já tiveram contato com obras bem conhecidas desse momento, de Krenak, de Davi Kopenawa, inclusive do seu trabalho como tradutora também, né? Enfim, como chega, contribui, atende todo esse público leitor, seja ele mais de pesquisadores, pensadores e estudantes, ou mesmo de curiosos, de pessoas brasileiras em geral que se interessam por ter mais conhecimento no assunto?
Bom, no Brasil, os povos indígenas têm sido apagados, de vários modos, reiteradamente. São esquecidos nas narrativas históricas, dizimados, forçados a abandonar cultura, língua, modos de vida, territórios.
Eu acho que o recente aumento da presença de indígenas na vida nacional ainda não resultou, e espera-se que resulte, em conhecimento, de fato, ou reconhecimento. Os leitores vão encontrar, nesse livro, muitas informações sobre modos de vida e princípios éticos dos povos nativos da América. E eu espero que os fatos que eu reúno levem a ver que os valores que norteiam esses modos de se relacionar são dignos de admiração. O Brasil há de se reconhecer ao encontrar o bom humor e a bravura como definidores dos modos indígenas de estar no mundo, né? É gente que faz grandes festas e tem enfrentado as piores adversidades, fins de mundo, no caso deles, com coragem e alegria.









