Por Verónica Gago
Publicado em Le Monde Dipolomatique
O ajuste não é algo apenas no futuro, sobre o qual se pode prever seus impactos e calcular seus efeitos. O dramático do ajuste é que ele se conjuga também no passado e no presente. A inflação, como sabemos, é o ajuste por outros meios. O ajuste é o que já aconteceu, o que está acontecendo e o que virá.
Por isso, falar do ajuste futuro é entrar em terreno pantanoso. Antes, é necessário partir de como se enfrenta o ajuste atual para só então tentar pensar como a intensificação dele afetará as estratégias cotidianas de sobrevivência. No entanto, não há mera continuidade: há uma mudança de intensidade e velocidade que pode ser decisiva em termos de legitimidade política.
Resistir com dívida
Uma primeira forma difundida e praticada de resistir ao ajuste tem sido o endividamento dos lares. Ou seja, substituir ou complementar os rendimentos em queda livre com dívida. Isso não aconteceu de um dia para o outro. Como escrevi no Le Monde Diplomatique em junho de 2015, a expansão do endividamento nos setores populares fez da dívida simultaneamente um contrapeso e um complemento à precariedade laboral: “um código capaz de traduzir a heterogeneidade do mundo do trabalho (de trabalhos temporários a microempreendimentos, de trabalhos formais por temporadas a atividades autônomas, de empregos formais que duram pouco a informais que podem se estabilizar) em relações mais homogêneas entre credores e devedores”.
O dispositivo financeiro da dívida conseguiu o que antes o salário fazia: homogeneizar o que, do ponto de vista das identidades laborais, se fragmentava e multiplicava sem fim. Claro que naquela época, no final do segundo governo de Cristina Kirchner, esse dinamismo do endividamento ocorria no contexto de formas de reativação econômica e de ampliação do consumo. Ocorria também graças a uma articulação pioneira — ainda em vigor — entre planos sociais e bancarização individual dos beneficiários, que colocava o Estado como garantidor final dessas dívidas.
Essa foi uma das chaves para pensar o que chamei de “neoliberalismo de baixo para cima”, para explicar como o neoliberalismo se enraíza nas subjetividades que, para progredir, são obrigadas a lutar em condições críticas, de despojo da infraestrutura pública, e que, além disso, devem fazer isso sem capital. Não ter estabilidade no emprego nem ter capital, mas querer progredir (ou seja, um progresso desvinculado do salário e do capital), é o que produziu a fórmula que hoje se tornou um Ministério: o capital humano.
Nesse desejo de prosperidade popular, de viver melhor, ocorre a composição estratégica de elementos microempresariais com fórmulas de autogestão, que monta a capacidade de negociação e disputa de recursos estatais, vizinhais e comunitários na sobreposição de vínculos de parentesco, laborais e de lealdade ligados ao território. A dinâmica neoliberal se conjuga de maneira problemática e efetiva com esse vitalismo persistente (expresso como desejo de prosperidade) que sempre se agarra à ampliação de liberdades, prazeres e afetos. Isso me levou a rastrear como as noções de liberdade, cálculo e obediência mudaram na vida cotidiana, projetando uma nova racionalidade e afetividade coletiva.
Faço essa digressão para destacar o seguinte. Primeiro, entender que sobre essa subjetividade política e produtiva é que as finanças aterrissaram e souberam reconhecer a capacidade de gestão, esforço e vontade de progresso das pessoas. Esses fluxos de endividamento foram criando uma espécie de delta de irrigação por baixo, que depois permitiu responder ao ajuste do período macrista — algo que estava na oferta eleitoral de Macri em 2015 e que fez discurso político com algo que hoje, com Javier Milei presidente, já parece senso comum: que o neoliberalismo é uma forma de governar através do estímulo às liberdades.
As finanças incorporadas à precariedade construíram uma rede capilar capaz de fornecer financiamento privado caríssimo para resolver problemas da vida cotidiana, derivados do ajuste e da inflação. Tudo isso, como eu dizia, se acentuou a partir da crise do último trecho do governo macrista.
Como demonstramos com Luci Cavallero, a dívida se voltou para pagar alimentos, medicamentos e, a partir da pandemia de 2020, para bancar o aluguel. Com esta genealogia, quero destacar algo que é fundamental para entender o passado e o presente do ajuste: as finanças, através do endividamento, têm ajudado a evitar a escassez de outros momentos históricos. Dito de forma mais direta: por que, em dezembro deste ano, em vez de saques aos supermercados, como em 2001, vimos filas de pessoas comprando? O contraste indica que a equação escassez/saque foi evitada graças a dois fatores: as redes financeiras, às quais já nos referimos, e as redes da economia popular organizada.
A consolidação da economia popular que sustenta de modo organizado a reprodução dos setores mais pobres é outro fator que ajuda a entender como o ajuste tem sido suportado. A organização La Garganta Poderosa afirma que 10 milhões de pessoas se alimentam graças aos restaurantes populares, mantidos principalmente pelo trabalho das cozinheiras comunitárias que fazem milagres com recursos escassos.
Ambas as redes se entrelaçam. Como já mencionei, um exercício constante de endividamento e compra parcelada é dedicado a alimentos, gerenciado através de uma variedade de cartões de crédito, empréstimos de carteiras virtuais e locais de crédito comunitário. A consolidação dos setores baixos e médios empobrecidos não é novidade. Ficou evidente durante a pandemia, quando o Ingreso Familiar de Emergencia (IFE) foi demandado por muito mais pessoas do que originalmente previsto. A pandemia funcionou como um verdadeiro laboratório financeiro que explica muitas das dinâmicas que permitiram atravessar o ajuste durante o governo de Alberto Fernández. Citando algum filósofo do dinheiro: até quando a dívida conseguirá gerenciar a paciência do empobrecimento?
Todos somos proprietários
A dívida interpela esse conjunto de trabalhadores empobrecidos. Fala com eles enquanto consumidores livres. Ativa um senso de poder e produtividade, não de pessoas a serem “ajudadas” ou “subsidiadas”. Enquanto o mundo do trabalho — e da representação política — muitas vezes não reconhece o atributo da liberdade e propriedade sobre si mesmos (são subtrabalhadores ou trabalhadores subsidiados, não registrados como tais), as finanças o fazem. Portanto, essa subjetivação financeira antecipa e treina o que uma direita mais versátil saberá convocar nesses mesmos setores: a noção de liberdade e formas de propriedade que se afirmam em contextos de despojo.
A dívida, articulada ao impulso do empreendedorismo (condição totalmente compatível com o trabalho subsidiado), permite aos trabalhadores de plataformas (desde feirantes virtuais até entregadores), por exemplo, comprar seus meios de produção (comunicação e transporte): celulares, bicicletas, motos.
A situação se inverte. Os trabalhadores precisam ser proprietários dos meios com os quais produzem. Claro, estamos falando de meios baratos usados especialmente no setor de serviços ou em espaços de venda informal e cooperativa. Mas, ainda assim, trata-se de uma modalidade que se expande pelos setores mais empobrecidos, que se potencializou durante a pandemia e que também atinge os setores médios: por exemplo, com os créditos aos professores para comprar computadores e trabalhar em home office. A aquisição desses meios de produção é possível graças, mais uma vez, ao endividamento, contendo sob um esquema proprietário (serei dono do que compro) a desapropriação radical.
O mesmo ocorre quando somos obrigados a monetizar propriedades preexistentes sob uma lógica de ajuste: o quarto não utilizado (ou “subutilizado”) que pode ser alugado em uma plataforma imobiliária de aluguel temporário ou o carro que pode se tornar um Uber. O ajuste é, para uma subjetividade já treinada em anos de neoliberalismo, um mandato de otimização e monetarização de recursos próprios.
Inflação e sacrifício
A explicação sobre a causa da inflação, que por sua vez explica o ajuste, é uma batalha política. Às explicações monetaristas clássicas, centradas na emissão monetária, costumam-se somar argumentos conservadores que caracterizam a inflação como uma doença ou mal moral da economia. Ou seja, não se trata apenas de explicações técnicas e economicistas, mas de argumentos relacionados às expectativas de como viver, consumir e trabalhar.
Por exemplo, o sociólogo estadunidense Daniel Bell afirmou que a ruptura da ordem doméstica da família tradicional era a principal causa da inflação na década de 1970. Também Paul Volcker, chefe do Federal Reserve dos Estados Unidos entre 1979 e 1987, conhecido por sua proposta de disciplinamento da classe trabalhadora como método contra a inflação, introduziu o tema como uma “questão moral”.
Para aprofundar esse tipo de explicações morais sobre o problema da inflação, a pesquisadora australiana Melinda Cooper dedicou-se a estudar como neoliberais e conservadores criticaram com especial virulência, no contexto de suas críticas aos gastos do Estado, um programa de apoio a mães afro-americanas solteiras. Por que eles se enfureciam com um programa de baixo orçamento? A resposta é que esse subsídio expressava a desobediência às expectativas morais de suas beneficiárias. As mães afro-americanas solteiras produziam uma imagem que não se encaixava na ideia da família tradicional. Do ponto de vista conservador, aqueles que recebiam o subsídio eram “premiados” por sua decisão de ter filhos fora da convivência heteronormativa. A inflação refletia a inflação de suas expectativas sobre o que fazer de suas vidas, sem nenhuma contraprestação obrigatória.
Ao argumento neoliberal clássico de que a inflação se deve ao “excesso” de gasto público e ao aumento dos salários por pressão sindical, os conservadores adicionam uma torção: a inflação marca um deslocamento qualitativo do que é desejado, dos modos de vida legítimos. Mais recentemente, ambos os argumentos se aliaram de forma decisiva.
Apenas entendendo a força moral com que a inflação é investida (uma espécie de castigo das forças celestiais) é que se permite seu descontrole como última cena de sacrifício e purificação. Este ponto crucial tenta sustentar a “cruzada inflacionária” de Milei, suas promessas de encerrá-la e apontar para a dolarização como projeto final.
O choque que se avizinha
As formas de contenção diante do ajuste passado e presente — capilarização financeira, economia popular organizada e monetização de recursos preexistentes — parecem prestes a colapsar diante do nível de virulência dos aumentos de preços que dispararam desde que Milei assumiu o governo.
Dizíamos que o ajuste não é novidade porque já foi terreno fértil para a modificação da subjetividade política (“a sociedade ajustada”, como a chama o coletivo Juguetes Perdidos). Agora, com a desregulamentação completa proposta pelo Decreto, não estamos apenas diante de uma mudança quantitativa (em números e velocidade) do ajuste, mas também qualitativa. Sobretudo porque se expressa como um projeto político, ao qual chamamos de “a vingança dos donos”. Uma maneira de “sincronizar”, contra a contenção proprietária nas camadas sociais mais baixas, quem são os verdadeiros donos.
A escolha da data de 20 de dezembro [quando, em 2001, o governo argentino reprimiu com força manifestantes que protestavam contra o corralito] para anunciar o Decreto não é casual. Augusto Pinochet anunciou a privatização do sistema de aposentadorias em 1º de maio, destacando o caráter de revanche histórica. Carlos Menem assinou seu decreto limitando o direito de greve em 17 de outubro [Dia da Lealdade na Argentina]. Acontece que o ajuste atual tem como objetivo uma modificação radical das formas de vida, algo que já vem ocorrendo, como demonstra o sucesso das propostas de Milei. Mesmo assim, a lógica da explicação não pode ceder à lógica da justificação. As mutações no nível da subjetividade política não se traduzem de maneira estável. Elas não são ontologicamente de direita.
A questão é se o ajuste atual poderá ser enfrentado, como no passado, com o endividamento futuro nas casas, sustentado puramente pelo trabalho comunitário e redes emergenciais. O cansaço que Milei soube canalizar, envolto em promessas de estabilização e punição aos que enriquecem sem trabalhar, pode voltar-se contra ele na medida em que o ajuste torne impossível a sobrevivência dos que o elegeram. Se isso acontecer, apenas os verdadeiros donos serão leais a Milei, para quem essa desregulamentação é realmente a tomada do poder como nunca imaginaram.
Verónica Gago é doutora em ciências sociais, professora da Universidade de Buenos Aires (UBA) e da Universidade de San Martín (Unsam) e pesquisadora do Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas (CONICET). Tem colaborado com as experiências de pesquisa militante do Coletivo Situaciones, além de fazer parte do Coletivo Ni Una Menos, que luta contra o feminicídio na América Latina. Pela Editora Elefante, lançou A razão neoliberal: economias barrocas e pragmática popular(2018), A potência feminista (2020) e Quem deve a quem? Ensaios transnacionais de desobediência financeira.