Por Cidinha da Silva
Publicado no Suplemento Pernambuco
“usos do erótico y poesia não é um luxo são ainda hoje os ensaios mais emocionantes y curativos que eu já li, porque transformaram, ainda transformam, minha vida. ler a prosa dela audre lorde foi um dos primeiros exercícios de liberdade literária que fiz, porque em sua defesa de nossa totalidade singular, y também da conexão inegociável entre espírito-corpo-experiência-coletividade-arte, ela vai muito fundo. sugere maneiras da gente sair do vício acadêmico vazio de produções teóricas que não convocam pra vida, que nos fazem desconectar pensamento de ação y produzir conhecimento da boca pra fora. acho que essa é uma metáfora justa, audre lorde foi uma das primeiras autoras que li produzindo conhecimento da boca pra dentro. tanto na prosa quanto na poesia, ainda que os poemas, especialmente os primeiros, sejam tão fechados, tão machucados. a grande inspiração da minha prosa ensaística é o trabalho dela. y também uma inspiração de vida, de amor, de luta pelo direito à plenitude y felicidade. sinto que o Orun é muito feliz com a presença dela lá”.
(tatiana nascimento, poeta, palavreira, tradutora e editora; setembro de 2020)
Este Ressoar o saber da boca para dentro reverencia tatiana nascimento, primeira tradutora de Audre Lorde no Brasil de que tenho ciência, ainda antes da tese de doutoramento, Letramento e tradução no espelho de Oxum, teoria lésbica negra em auto/re/conhecimentos, defendida por ela no Programa de Pós-graduação em Estudos da Tradução da UFSC, em 2014. Em algum lugar entre 2004 e 2005, deparei-me com o poema A litany for survival, subversivamente traduzido por tatiana como Uma ladainha por sobrevivência.
Sinto-me muito alegre pela possibilidade de destacar a importância e pioneirismo de tatiana nascimento para dar a conhecer a imensa Audre Lorde ao Brasil. Outras pessoas talvez compartilhem dessa alegria; leitoras de poemas de Audre em traduções que circulavam pela internet na primeira década do século XXI devem, hoje, aventar a hipótese de que tenham sido traduzidos por tatiana nascimento. Que os anais da História registrem: Audre Lorde foi traduzida por tatiana nascimento 16 anos antes deste 2020, no qual quatro editoras independentes brasileiras se juntaram para publicar individualmente e divulgar coletivamente parte da obra de Audre. Esse movimento de reverência e registro é fundamental porque Audre, eu e tatiana integramos uma cultura de matriz africana, na qual “anterioridade é posto”, ou seja, quem veio primeiro, quem abriu as portas, deverá ser lembrada e saudada quando os novos começos acontecerem.
A propósito, Jess Oliveira, uma das várias profissionais negras convidadas pelas editoras Bazar do Tempo, Elefante, Relicário e Ubu para chancelar as publicações, afirma na apresentação de A unicórnia preta, volume traduzido por Stephanie Borges, ser “imprescindível que recebamos a poesia de Lorde como continuidade e extensão de nossos legados na diáspora”. E prossegue: “Audre é nossa irmã, não uma grande novidade do norte, tampouco um produto editorial”.
Compreendo a intenção do discurso afirmativo, principalmente no que concerne à crítica à transformação de autoras insurgentes como Lorde em “produto editorial”, da mesma forma que conseguiram transformar a comunista Angela Davis em ídolo pop durante sua passagem pelo Brasil em 2019; contudo, assinalo um descuido no entendimento da hierarquia não opressora, aquela precedência no tempo que configura autoridade e que aceitamos com naturalidade. O trabalho artístico e o pensamento de Audre Lorde, tal como o pensamento de Lélia Gonzalez, Luiza Bairros, Beatriz Nascimento, Clementina de Jesus, Carolina Maria de Jesus, Maria Firmina dos Reis, Ruth Guimarães, Ivone Lara, Jovelina Pérola Negra, Iyá Stella de Oxóssi, Tereza Santos, Makota Valdina, Mercedes Batista, Marlene Silva, Mãe Beata de Yemonjá, Elizeth Cardoso, e das que ainda estão entre nós, como Sueli Carneiro, Leda Maria Martins, Assata Shakur, Angela Davis, bell hooks, Ochy Curiel, Denise Ferreira da Silva, Conceição Evaristo, Alaíde Costa, Léa Garcia, Leci Brandão, entre outras, não são “continuidade e extensão de nossos legados na diáspora”. São fundamento. Elas são as raízes a partir das quais nós, mulheres negras mais jovens de diferentes gerações, brotamos. Nós é que somos a continuidade e extensão do legado delas na diáspora, um legado que, repito, é fundamento.
Audre Lorde transforma a experiência em reflexão esteticamente acurada, nos poemas e nos ensaios, escapando daquilo que Leda Maria Martins tem nomeado como “tirania da subjetividade”, ou seja, uma vocalização acrítica e irrefletida do eu e de suas dores, que desconsidera a necessidade do trabalho estético para construir uma obra de arte. A “tirania da subjetividade” fundamenta-se na necessidade visceral de falar sobre o que foi historicamente silenciado e apagado.
O que se fala num texto literário é, de fato, importante. Os temas caros a sujeitos subalternizados precisam sim, ocupar espaços de destaque. São necessários para a formação humana de todas as pessoas, além daquelas que os experimentam mais diretamente. Entretanto, o “como se fala”, como se constrói a linguagem para abordar um tema relevante para o mundo, é aspecto fundamental para definir a qualidade do trabalho literário.
Audre Lorde domina essa tecnologia e manufatura da palavra, e com ela realiza um trabalho literário e ensaístico definitivo e precursor. Temas como a maternagem lésbica, seus sabores e vicissitudes, são tratados de maneira pioneira e ressoadora em seus ensaios. Neles, Audre sai dos limites do próprio umbigo e busca dialogar com perfil amplo de público. Ela falava e escrevia na labuta de despertar o interesse das pessoas para temas que lhe eram caros, sobre os quais falaremos mais um pouco.
Discutiu temas como a evocação do compromisso entre as pessoas numa luta política, a necessidade de os sujeitos socialmente afirmados e valorados agirem como aliados leais para resguardarem a saúde e a segurança das que estão no front desde sempre, dado que conhecem as profundezas da opressão. Trazendo essa perspectiva para os dias de hoje, podemos destacar as pessoas brancas que fizeram barreira humana para garantir a segurança e a integridade física de manifestantes negros na cidade de Minneapolis, em desagravo ao assassinato de George Floyd, em maio de 2020. Elas fizeram o que precisava ser feito: interpuseram seus corpos brancos respeitáveis entre a polícia assassina e pessoas negras expostas, fragilizadas emocionalmente, mas aguerridas por estarem por sua própria conta, por se saberem Floyd ontem, hoje e amanhã. Aquelas não pediram biscoito por fazê-lo.
A consciência da força da palavra também é tema crucial e costura todo o tecido da produção de Audre. Vale pensar que aqui, sim, vemos a continuidade na diáspora de um legado das tradições africanas. Podemos investir a palavra de poderes curativos e de poderes destruidores. A palavra em si é só uma palavra; o que fazemos com ela, como a tratamos, como a escrevemos, é que garantirá (ou não) a qualidade da nossa produção artística e o efeito alcançado ao utilizá-la.
Audre Lorde educa todo o tempo, sem pejo assume para si essa tarefa. Em sua decisão consciente de fazê-lo, reside a centralidade da coisa. Esse protagonismo é bastante diferente de uma tentativa contemporânea dos poderes brancos de definirem um lugar para as mulheres negras como educadoras das pessoas brancas, garantindo a estas a comodidade de sempre. Explico: percebo um movimento, ora declarado, ora reptício, de forçar as mulheres negras a assumirem a posição generosa de educadoras dos brancos em desconstrução. Poderia dar muitos exemplos, vamos a dois ou três.
A mentalidade colonial tenta se impor ao julgar que as pessoas negras devem ser gratas por tudo, especialmente àquilo que a branquitude considera como “oportunidade” para educar sobre a temática racial. Daí, por exemplo, escolherem um livro de autora negra para integrar um projeto de leitura qualquer e quererem que a escritora seja grata por isso, que teça loas à iniciativa em questão. Não, o movimento é contrário a esse: o projeto é que deve ficar feliz por poder se beneficiar de livros bons escritos por autoras negras. Para piorar, há também o “fogo amigo” que tenta transformar artistas negras acessíveis em bonecas manipuláveis pelo “fogo amigo” de plantão, ou seja, em coisas a serviço de qualquer projeto do “fogo amigo” e suas necessidades.
A exigência de postura educadora das autoras negras confunde (intencionalmente) convite com intimação para participar de eventos; tenta exercer poder de coação sobre pessoas públicas negras ao explorar a condição de agentes de compromisso político e ação transformadora inequívocas para forçar que estas participem daquilo que aquelas julgam relevante. Disso decorrem convites para trabalhar por valores esdrúxulos, tendo como pagamento ou contrapartida o suposto alcance de um número grande de pessoas (escolas particulares dirigem esse tipo de convite a escritoras negras, por exemplo) ou a chegada aos corações e mentes de estudantes negros e de periferia (argumento das escolas públicas) que, de outro modo, não acessariam autoras negras importantes e renomadas.
Outra forma de pressão bastante usual (e brutal) às escritoras negras é convidá-las para falar sobre “a importância disso ou daquilo na literatura”. Tomemos como exemplos os desgastados temas, como “importância da literatura negra” ou “ser mulher negra que escreve”, e similares. Essas propostas temáticas expressam uma hierarquização subjacente a tais afirmações, ou seja, sujeitos não-hegemônicos (negros, indígenas, mulheres, LGBTs) escreveriam por terem uma função, designada pelos hegemônicos, a cumprir no sistema literário. Os demais (brancos, heteronormativos etc) simplesmente escreveriam, criariam, produziriam encantamento, dedicariam-se à fruição.
Meu conselho seria para mergulharem na produção artística e no pensamento de Audre Lorde porque ela tem disposição para educá-los. Mas, acima de tudo, meu conselho é para que mergulhem nos trabalhos dela porque são feitiço palavreiro com o intangível, o imponderável, além de abordarem de maneira subversiva e conjurada o feminismo, o racismo, a maternidade e a experiência lésbica em suas interseccionalidades. Como nos alertou tatiana nascimento no início deste texto, Audre vai muito fundo na “defesa de nossa totalidade singular, y também da conexão inegociável entre espírito-corpo-experiência-coletividade-arte”.
REAFRICANIZAR-SE
As dimensões espirituais que Audre materializou em sua obra ao longo da vida se reafricanizaram nas viagens ao Togo, Gana, Benin e Nigéria, feitas no final da década de 1970. Essas viagens são aprendizados preciosos para nos pensarmos na diáspora brasileira; nós, que nos mantivemos tão mais próximas das tradições africanas do que as irmãs e irmãos afro-estadunidenses e que preservamos aqui, principalmente nas religiões de matriz africana, práticas, cânticos, falares que já se perderam por lá, além da fusão entre Áfricas distintas que ocorreu por aqui e que reforçou nossa “totalidade singular”. Essas dimensões espirituais e imagéticas constituem o que venho chamando de “tecnologias ancestrais de produção de infinitos”, que se aproximam muito da “luz negra” de que fala Denise Ferreira da Silva. Essas tecnologias e essa luz garantiram que nossa humanidade sobrevivesse e chegasse até aqui, a despeito de tudo o que o racismo e seus modos de operar fizeram para exterminar africanos e seus descendentes do planeta Terra. Nós vencemos e Audre, com sua obra, é ao mesmo tempo testemunha e agente dessa vitória.
O primeiro contato que tive com Audre Lorde foi com seu pensamento e sua prosa, em 1997, no desesperador inverno londrino. Em Brixton, bairro da região sul da cidade, no círculo lésbico e negro (incluídas as afro-inglesas, afro-caribenhas, indianas, paquistanesas e outras mulheres de origem asiática) sua obra era saboreada e discutida com fervor. Sua produção inspirava e robustecia o posicionamento político de artivistas, intelectuais afro-diaspóricas e migrantes. Comprei um livro naquele momento, Zami: A new spelling of my name, e ganhei The cancer journals, uma brochura sobre a decisão tomada por Audre de abandonar a medicina ocidental para se tratar de um câncer por meio de medicinas tradicionais.
Em 2009, numa conversa com a poeta e tradutora Prisca Agustoni, comentei que tinha um exemplar de Zami e por breves momentos sonhamos que ela pudesse traduzi-lo e que buscaríamos uma editora brasileira que o publicasse. O livro sairá no Brasil em 2021 pela editora Elefante, com tradução de Lubi Prates. The cancer journals, por sua vez, foi trazido ao Brasil pelas mãos de muitas mulheres além das minhas, e circulou um pouco entre grupos feministas e lésbicos em traduções caseiras feitas com o objetivo de divulgar a obra e a referência de Audre Lorde.
Precisamos lê-la porque a experiência de leitura de seus poemas é como largar o corpo numa circunferência de ressonância. Ressonância da mulher profunda que guardamos, ainda num lugar mais recôndito do que a subjetividade. Uma mulher de múltiplas vozes e infinitas faces, uma mulher-Audre, que convida a nos implicarmos na transformação do mundo observando as sete direções que a ancestralidade africana nos propõe: à frente e atrás, em cima e embaixo, do lado esquerdo e do lado direito e dentro. O “conhecimento da boca pra dentro” com que tatiana nascimento nos presenteou.
ENFRENTAMENTOS NECESSÁRIOS
Um dos poemas de Audre que mais me impactaram está no livro Entre nós mesmas: Poemas reunidos (Bazar do Tempo), traduzido por tatiana nascimento e Valéria Lima, que tive a alegria de apresentar. O poema nos conta que em 1970 um policial branco executou uma criança negra de dez anos e alegou ao júri que o considerou inocente: “eu não percebi a idade ou nada disso só a cor”. Quase cinco décadas depois, outro policial branco, talvez filho do primeiro, matou George Floyd com as patas bestiais do poder branco militarizado sobre o pescoço de um homem negro rendido. E os brancos mundo afora se chocaram ao “descobrir” que o racismo existe e mata determinados seres humanos transformados em alvo. Esta é a atualidade de Audre Lorde e de seu legado intelectual.
Precisamos aprender com ela o necessário enfrentamento de nossos paradoxos, ou a convivência com eles, sem autocomiseração ou autoflagelo. Audre discute corajosamente a interracialidade em relacionamentos afetivo-sexuais, examinando sua família e seu casamento com uma companheira branca. Aborda a sexualidade das mulheres numa perspectiva revolucionária por falar dela com uma poética ruidosa e raivosa, agudamente crítica e esteticamente cuidada que ecoa mais forte do que os legítimos imperativos éticos que poderiam enclausurá-la nos limites do discurso ético legítimo, apenas. Audre Lorde, como Elisa Lucinda, produz beleza de maneira ferina ao abordar questões consideradas “menores” pela poesia e pela crítica literária feita por homens, questões do mundo íntimo e doméstico das mulheres.
O direito de experimentar e externalizar a raiva que todo tipo de opressão (racismo, lesbofobia, silenciamentos, apagamentos) produz nas mulheres é severamente reivindicado e reiterado por Audre. Nós, mulheres negras, podemos e devemos sentir raiva de tudo isso, e colocar essa raiva para fora é potência criadora que produz saúde. Naquelas conversas em Brixton, lembro-me como eram pujantes os depoimentos de mulheres que relacionavam suas doenças físicas a questões emocionais, a sentimentos engolidos e não digeridos que passaram a comê-las por dentro.
Mesmo setores da medicina ocidental convencional, pouco afeita a perspectivas holísticas de compreensão do corpo, dão os primeiros passos para compreender que muito das doenças prevalentes entre as populações negras no mundo têm relação com os sentimentos não digeridos que o racismo engendra e que atinge órgãos pares (como ovários, olhos, rins, pulmões, testículos e ouvidos), duplicidades que, como ensina a medicina oriental, nos colocam em diálogo com o mundo. Na pandemia de covid-19, quantas e quantos de nós não morremos porque as doenças respiratórias, as fragilidades arraigadas em pulmões e brônquios facilitaram a acomodação do vírus e impediram a reação de nosso sistema imunológico?
FUNDAMENTO DA AUTODEFINIÇÃO
Precisamos ler Audre Lorde porque ela nos ensina o fundamento da autodefinição. Nós, mulheres negras, devemos dizer ao mundo quem somos, não o contrário. Nesse mundinho de disputas de representatividade, digo, de caçada às pessoas representativas que legitimem os novos projetos do pensamento velho que ocupa lugares de poder e decisão, essa lição faz ainda mais sentido. Nesses tempos e lugares precisamos dizer quem somos com nome e sobrenome, como nos ensinou Lélia Gonzalez, para que o racismo não nos nomeie como “João urubu”, “chocolate”, “nega fulana”, “Maria preta”. Cumpre-nos, também, definir como devemos ser apresentadas, por meio das credenciais relevantes para nós mesmas e não para os interesses dos interlocutores que se locupletam de nossa presença preta em certos lugares.
Nossos sentidos do mundo serão ampliados ao conhecermos o território poético afro-latino-americano de Audre Lorde, um diálogo com a Amefricanidade de Lélia Gonzalez sem que Audre a tenha conhecido, provavelmente. Pesquisadoras como Ana Flávia Magalhães, Flávia Rios, Fernanda Miranda, Winnie Bueno, entre outras, têm nos mostrado como o pensamento da intelectualidade de mulheres negras em diáspora se articula de forma coletiva com questões fulcrais como a liberdade de existir, de pensar, de escrever e divulgar o pensamento. Essa sincronicidade de pensamento e ação política aproximou sujeitos políticos negros que não conviviam, ou sequer se conheciam, mas que formavam um espectro coletivo por pertencerem à mesma comunidade de destino.
Stephanie Borges, tradutora mais prolífica de Audre Lorde, nos convoca à leitura mais detida da obra poética da autora; ela que antes de tudo foi poeta, pensava-se como poeta. Aproveito aqui para saudar outras tradutoras de Audre: Lubi Prates, Cecília Floresta, Jess Oliveira.
Um aspecto da vida e da produção de Audre Lorde que eu gostaria de ver explorado na pesquisa e tradução brasileiras é sua atuação como editora à frente da Kitchen Table: Women of Color Press, casa editorial fundada por ela e pela escritora Barbara Smith com o objetivo de publicar a produção de feministas negras. Quanto tempo durou a Kitchen Table? Como constituíram o catálogo? Quais foram os nomes revelados? As autoras publicadas consolidaram uma carreira intelectual e/ou ativista relevante? A editora prosseguiu? Fechou? Faliu? Ainda existe? Fica a dica para uma pesquisa ou tradução de algum texto já escrito que responda a essas perguntas ou nos mostre um pouco de Audre Lorde na função de editora.
Na apresentação que fiz para o livro Entre nós mesmas, separei alguns poemas que me impressionaram pela sabedoria de produzir boas e efetivas sínteses, ou seja, de ler o mundo pelos próprios olhos, a partir das próprias referências e de devolvê-lo transformado, como faz Exu, o senhor dos caminhos. Repito-os aqui.
No poema O jornal da noite, há uma síntese poderosa da falta de possibilidades da pessoa negra no mundo: “nossas crianças estão evadindo de seus nascimentos/ nas ruas de Soweto e Brookyn (o que significa nossas guerras sendo lutadas por nossas crianças?)”. No poema que apela a Za Ki Tan Ke Parlay Lot, a síntese da nossa morte, nossa, das pessoas negras: “Oh, Za Ki Tan Ke Parlay Lot/ tu que ouve diga aos outros/ que não tem metáfora pro sangue/ escorrendo de crianças”. Em Solstício encontramos a síntese da altivez que tem nos permitido manter a dignidade nessa passagem pela Terra: “que eu não deva nada/ que não possa devolver”.
Volto a tatiana nascimento e à “inspiração de vida, de amor, de luta pelo direito à plenitude y felicidade” que Audre Lorde evoca. Por isso precisamos lê-la, para nos tornarmos mais fortes e certeiras em nossa expansão rumo ao infinito.