“Imagina, você está recluso sem poder ter a única coisa que faz sentido na nossa vida, que são as relações sociais, o afeto físico, e você vê uma cena como aquela [em que George Floyd é morto sob o joelho de um policial]. No meio desse abismo, o novo coronavírus é só um detalhe.”

A resposta é de Emicida, um dos artistas brasileiros mais engajados em denunciar dia após dia o genocídio negro, numa entrevista especial do UOL. Dias antes, no programa de debates em que participa, no canal GNT, um trecho da fala do rapper já rodava as redes sociais.

“Pensa que semana passada a gente estava aqui falando sobre o quão destruidor de futuro era viver num lugar onde uma criança de catorze anos [João Pedro] que está cumprindo a quarentena em casa é alvejada por uma bala de um grupo de outras 72 que arrebentaram sua casa. Só no tempo que eu tô aqui, quantas crianças pretas foram mortas pelo Estado brasileiro?”

Entre um caso e outro, mais um, dentre os tantos que nem causam repercussão pública. O menino Miguel Otávio Santana da Silva, de cinco anos, morreu ao cair de um prédio de elite na região central do Recife. Ele acompanhava sua mãe, a empregada doméstica Mirtes Renata de Souza, no trabalho, já que as aulas estão suspensas por conta da covid-19 e a criança não teria onde ficar. Quando ela desceu para passear com o cachorro da patroa, o filho, que estava sob cuidado da empregadora, se perdeu pelo prédio.

“Se fosse o contrário, eu acredito que não teria direito nem à fiança. Meu nome estaria estampado e meu rosto estaria em todas as mídias”, disse a mãe órfã à TV Globo. A Polícia Civil não informou o nome da patroa — que, soube-se depois, se chama Sari Corte Real, primeira-dama da cidade de Tamandaré — em cumprimento à lei de abuso de autoridade, que tem um artigo que proíbe a divulgação de nomes e imagens antes de ser concluída a investigação.

E se fosse o filho da patroa que tivesse caído sob os cuidados da empregada?

 

Estados Unidos

O assassinato de George Floyd, a impactante cena de um homem negro pedindo para respirar enquanto seu pescoço é esmagado pelo joelho de um policial branco, aqueceu os protestos de rua nos Estados Unidos, com óbvias reverberações em todo o mundo. Não bastasse o histórico e rotineiro cunho racista da opressão policial no país, estamos diante da pandemia que mata os mais vulneráveis e acompanha uma crise econômica brutal. É o que diz Keeanga-Yamahtta Taylor em texto traduzido aqui no Blogue da Elefante.

“Enfim, os vídeos de espancamentos, abusos, assassinatos policiais nunca deixaram de ser veiculados. Portanto, as condições que levaram ao movimento #BlackLivesMatter [#VidasNegrasImportam] nunca deixaram de existir. O que reacendeu esse pavio, agora, foi obviamente o linchamento público de George Floyd em Minneapolis, mas também o contexto mais amplo no qual isso ocorreu, foi registrado em vídeo e se espalhou: desemprego em massa e mortes causadas pela pandemia, sobretudo. Por isso, acredito que os protestos são também — mas não apenas — contra a brutalidade policial.”

O filósofo americano Cornel West tem falado sobre o fato de estarmos testemunhando a falência do experimento social estadunidense. Em um texto publicado no Guardian, chamado “Uma bota está esmagando o pescoço da democracia estadunidense”, ele pergunta se haverá alguma forma de se reformar a sociedade diante deste cenário de ruptura [em inglês].

O advogado Thiago Amparo, em sua coluna na Folha de S. Paulo, vai na mesma linha. “O mito da democracia estadunidense já estava em chamas desde aquele agosto de 1619, quando o primeiro navio de escravos atracou na costa da Virgínia. Que queime o passado para nos permitir construir o futuro, juntos.”

Na última quinta-feira, dia 04 de junho, os protestos antirracistas nos Estados Unidos chegaram ao décimo dia com uma grande cerimônia em memória a George Floyd em Minneapolis. Dias antes, manifestantes cercaram a Casa Branca, em Washington, e a residência do presidente teve as luzes apagadas. Repórteres locais informaram que Trump se escondeu num bunker.

Vários jogadores de basquete da NBA, com milhões de fãs e seguidores pelo país, participam dos protestos enquanto a liga está suspensa. Os manifestantes têm enfrentado o toque de recolher da polícia e já são mais de dez mil presos em todo o país — que tem a maior população carcerária do mundo, com 2,3 milhões de pessoas atrás das grades; a maioria é formada por hispânicos e negros.

 

Brasil

Por aqui, moradores de favelas do Rio de Janeiro protestaram no domingo, 31 de maio, contra o racismo e a violência policial, em mobilização que cresceu com a morte de João Pedro, de 14 anos, em São Gonçalo, com um tiro de fuzil disparado pelas costas pela polícia.

Como tem se tornado rotina no Brasil, nesse protesto um homem negro ficou sob mira de um fuzil da polícia., assim, cara a cara, mesmo estando totalmente desarmado e com as mãos para cima. “Eu nem sei por qual motivo aqueles policiais estavam com aquelas armas em um protesto”, disse Jorge Hudson da Silva, 27 anos, que, para completar a cena da distopia social brasileira, ganha a vida precariamente como entregar de encomendas feitas por aplicativo.

Não bastasse a tragédia cotidiana na rua, o (des)governo federal não dá trégua. O presidente da Fundação Palmares, Sergio Camargo, notável negacionista do movimento negro, foi gravado dizendo que o movimento negro é uma “escória maldita”, formado por“vagabundos”, e que Zumbi dos Palmares é um “filho da puta que escravizava pretos”. Ainda repudiou toda a agenda da Consciência Negra. Depois comprou briga com a cantora Alcione.

Entre as cobranças que tomam as redes sobre a cobertura da mídia e o posicionamento dos famosos, uma repercutiu bastante. Na terça-feira, 3 de junho, o programa do horário nobre da Globo News tinha apenas jornalistas brancos debatendo o racismo — os convidados de sempre para tratar de política, economia e outros temas da sociedade. Mas um tuíte viralizou e acabou na tela da edição do dia seguinte, em que cinco comentaristas negras, mais um apresentador negro, tocaram a discussão: “Rapaziada… A pauta é racismo…”.

Para fechar, sabendo que esse assunto não se esgota — e que bom que estamos cada vez mais despertando para esse debate urgente, infelizmente à custa de vidas que continuam sendo perdidas —, reproduzimos um trecho do texto “Brancos, sangrem conosco”, de Gabriel Rocha Gaspar e Vanessa Oliveira, introdução ao livro De bala em prosa, coletânea de vozes de resistência ao genocídio negro,disponível gratuitamente em nosso site.

“O genocídio é o ‘preço a se pagar’ pela segurança do ‘cidadão de bem’. Qualquer vítima inequivocamente inocente, como uma menininha de oito anos ou um garoto em uniforme escolar, vira sacrifício no altar da paranoia securitária. No discurso oficial, eles são dano colateral.”

Vidas negras importam. É realmente tão difícil assim entender?

 

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