Retratos em disputa: a ditadura e a perseguição LGBTQIA+
Por Renan Quinalha
Publicado em Revista Zum
Em 2012, então um jovem mestre que tinha acabado de defender, na Faculdade de Direito da USP, um dos primeiros trabalhos sobre justiça de transição no país, fui chamado para trabalhar como advogado e assessor da Comissão da Verdade em São Paulo. Nessa busca de esclarecimentos de determinados fatos históricos, sobretudo as violações de direitos humanos por parte de agentes públicos e sua autoria, acabamos nos deparando com a necessidade de, além de testemunhos orais, termos também uma pesquisa documental em acervos públicos e privados.
Esse período de trabalho da Comissão da Verdade coincidiu com um período de descoberta pessoal. Depois de alguns anos de vivências e experimentações mais ou menos clandestinas, decidir assumir publicamente minha homossexualidade. Já vinha abrindo minha sexualidade para amigos e familiares mais próximos, mas foi neste momento que de autodescoberta que mergulhei a fundo em referências teóricas LGBTQIA+ e decidi me tornar um especialista no assunto.
Diante dessa decisão, foi natural direcionar meus interesses, também dentro da Comissão, para evidenciar como a regulação do gênero e da sexualidade foi uma dimensão importante da ditadura brasileira.
Uma ditadura hetero-militar
Até então, prevalecia a leitura de que a ditadura brasileira, em verdade, teria sido uma “ditabranda” em termos morais. Afinal, para alguns, tivemos uma contracultura pulsante: Secos & Molhados, Dzi Croquettes, beijo de Caetano em Gil no palco, etc.
No entanto, o que tal análise parece ignorar é que todas essas movimentações eram fruto de um processo mais profundo de mudanças culturais e sociais que vinham sendo germinadas nas décadas anteriores, com a urbanização intensificada, as mudanças familiares, os conflitos geracionais com a emergência de uma “juventude rebelde” e o questionamento de papeis tradicionais de gênero e das práticas reprodutivas de sexualidade. Esse era um fenômeno global no pós-II Guerra, não uma jaboticaba brasileira que a ditadura tenha incentivado. Desenvolveu-se uma consciência rebelde, mais apesar da ditadura do que por conta da mesma.
Na realidade, hoje se sabe melhor como a censura moral foi intensificada na ditadura. O complexo aparato repressivo se valeu da política, das agências de informação e espionagem, de censores nas diversas linguagens artísticas e no jornalismo para coibir a circulação de ideias e valores que pudessem desafiar a ordem política e sexual vigente.
Na medida em que avançava nas pesquisas que posteriormente deram origem ao meu livro Contra a Moral e os Bons Costumes, notava que era abundante a quantidade de fontes historiográficas que permitiram reconstruir lacunas desse passado.
Mergulhei então em um conjunto de documentos impressos, revistas, jornais, qualquer tipo de material que ajudasse a reconstituir os fatos ocorridos durante a ditadura civil-militar brasileira. Em meio a esse conjunto diverso de fontes, algo que sempre me chamou particularmente atenção foram as fotografias.
Fui notando que a maior parte dos registros sobre pessoas LGBTQIA+ na imprensa e no fotojornalismo brasileiro reproduziam visões estereotipadas e estigmatizantes desses sujeitos. Reforçavam-se imagens de pessoas anormais, pecadoras, doentes, perigosas e criminosas. Não era uma invisibilidade, essas pessoas eram, muitas vezes, hipervisibilizadas nas matérias, mas sempre de maneira negativa. Sob o regime de visibilidade então vigente, a única seção dos noticiários em que essas pessoas apareciam eram nas páginas policiais, seja como vítimas moralmente culpadas por seu próprio destino trágico, seja como suspeitas já condenadas por atos de delinquência associadas ao submundo das drogas e da prostituição.
No entanto, quando estava preparando a curadoria da exposição Orgulho e Resistências: LGBT na ditadura para o Memorial da Resistência em São Paulo, no processo de garimpagem de arquivos nos deparamos com um conjunto de fotografias que destoava dos registros jornalísticos da imprensa sensacionalista.
Essas fotos estavam todas guardadas no Arquivo Público do Estado de São Paulo, em uma pasta, misturadas a outros documentos e recortes de imprensa sobre outros temas, sem uma catalogação ou organização do material.
Eram dezenas de retratos, em geral bem fechados nos rostos, de pessoas que hoje chamaríamos de LGBTQIA+ e que haviam sido detidas nas recorrentes operações policiais de “limpeza” comandadas em São Paulo, especialmente, pelo delegado José Wilson Richetti.
Chamaram nossa atenção por serem fotos, pelas características sóbrias dos retratados e placas indicando a data, provavelmente tiradas para fichamento policial das pessoas detidas arbitrariamente nessas operações policiais que se intensificaram na ditadura, especialmente no final da década de 70 e começo de 80.
As batidas policiais aconteciam geralmente nas noites e madrugadas, com foco nos guetos LGBTQIA+ que se formaram nas grandes metrópoles, geralmente em zonas centrais tidas como “degradadas” e abandonadas pelo poder público.
Nesses territórios concentraram-se os lugares de sociabilidade das pessoas LGBTQIA+ que buscavam sexo casual e amizades com seus pares em meio ao anonimato oferecido pelas grandes cidades. Eram cinemas de rua desativados e convertidos em cinemões, banheirões, praças, parques públicos e outros espaços em que era possível, sobretudo a homens gays e bissexuais, dar vazão a um desejo clandestino e estigmatizado que não encontrava espaço para uma vivência pública.
Desse modo, essas fotografias não deixam de ser um contundente registro das violências policiais cometidas contra essas pessoas. Vale lembrar que não era crime tipificado em nossa legislação ser homossexual ou travesti no Brasil da ditadura. No entanto, os órgãos repressivos aproveitaram-se de brechas legais para enquadrar LGBTI+ em contravenções penais e delitos diversos com forte teor moralizante em seus contornos, como atentado contra o pudor, ato contra a moral e os bons costumes, vadiagem, etc.
Exemplo de uma medida restritiva de direitos que se valeu da fotografia enquanto instrumento de poder foi a Portaria 390, de 1976, editada pela Delegacia Seccional Centro, em São Paulo. A norma era dedicada especificamente às travestis, que deviam assinar um Termo de Declarações, em geral acompanhado por foto, com diversas informações pessoais (gastos com hormônios e ganho mensal, por exemplo). Os prontuários policiais deveriam “ser ilustrados com fotos dos pervertidos, para que os juízes [pudessem] avaliar seu grau de periculosidade” [1]. Essa relevância atribuída à aparência dos “acusados” ou “suspeitos” para definir seu caráter ou propensão ao cometimento de delitos remonta a escolas conservadoras do campo da criminologia. Neste sentido, o delegado Guido Fonseca, autor de pesquisas sobre o tema, comandou, entre 1976 e 1977, um arquivo especial com estas informações que visava facilitar a perseguição às travestis [2].
Retratos em disputa
Mas se tais fotografias podem ser vistas como violências em si mesmas, os semblantes, os olhares, os trajes e as expressões das pessoas enquadradas sustentam algo de altivez, vaidade ou até mesmo de um orgulho que escapa ao objetivo central da foto, que é fichar uma pessoa tida como desviante ou delinquente.
Em algumas das imagens, aparecem se arrumando, usando maquiagem, trajando acessórios que questionam a binariedade dos gêneros. Em outras, estão fazendo pose, sorrindo e até, aparentemente, zombando daquela situação absurda a que estão sendo submetidas.
Elas demonstram certa naturalidade diante da cena de violência arbitrária de que são vítimas. Talvez pela convicção de quem decidiu bancar seu próprio desejo apesar das adversidades, talvez porque era tão rotineiro ter seus direitos desrespeitados que não havia solenidade ou excepcionalidade alguma naquelas ocasiões.
Há algumas fotos que formam pares: em uma a pessoa com aparência feminina, com peruca e maquiagem; na outra, de cabeça raspada e sem qualquer acessório ou maquiagem. Isso demonstra que era preciso captar, na fotografia como medida de segurança pública, todas as formas de ser dessas pessoas que transitavam entre gêneros e desafiavam a heteronormatividade. Era preciso desnudá-las da identidade que queriam assumir ou expor, revelar a sua verdade mais profunda e escondida, controlando até mesmo a subjetividade dessas pessoas.
Algo a destacar é que não há legenda ou explicações na maior parte dos retratos. Eles devem ter se perdido das pastas em que estavam quando saíram das respectivas delegacias e foram destinados ao Arquivo Público. Em um deles, que acabou sendo escolhido como capa do livro Contra a Moral e os Bons Costumes (Companhia das Letras, 2021), apenas se lê no verso, a lápis e escrito à mão: “Wilson Luis 1975”. Essa é a foto de um homem negro, sem peruca e com a cabeça raspada, que contrasta com sua outra no par, em que Wilson Luis está montado como uma drag.
Essa falta de elementos para além de uma singela imagem nos coloca a questão das lacunas e apagamentos da memória LGBTQIA+. Sem controle sobre os mecanismos de escrita da história e de registro material das suas vivências, essas pessoas acabam destituídas de lugar e de passado. Sem memória, não há identidade e formação de uma comunidade de afeto e de alianças.
Esses retratos, aparentemente banais do ponto de vista fotográfico, hoje recuperados e divulgados, devem ser vistos não mais e apenas como produto da LGBTfobia da ditadura. As imagens ressignificadas são demonstração da capacidade de agência e de resistência, ainda que moleculares, dessas pessoas que aproveitaram a tentativa de controle ditatorial para colocar seus rostos na história. Com tão pouco, pois basicamente receberam do Estado brasileiro apenas repressão e marginalização, fizeram muito, conseguindo existir e disputar a cultura e a legislação em um país tradicionalmente tomado por uma moral conservadora como o nosso.
60 anos de 64: a ditadura que nunca passou
Não foi a ditadura quem inaugurou a prática institucional de LGBTfobia, torturas, prisões arbitrárias, desaparecimentos forçados ou execuções sumárias em nosso país. Tais violências, praticadas e amparadas por agências estatais, remontam à época da ocupação do nosso território pela colonização portuguesa.
No entanto, durante a ditadura, segundo o relatório da já referida Comissão da Verdade, órgão criado em 2012 com o objetivo de apurar as graves violações de direitos humanos, 191 pessoas foram mortas, 210 estão até hoje desaparecidas e foram localizados apenas 33 corpos, totalizando 434 mortos ou desaparecidos. Além disso, foram inventariados 230 locais de violações de direitos humanos. Mais de 6500 militares foram perseguidos por resistirem à ditadura e 377 agentes públicos foram nominalmente apontados como perpetradores de violações aos direitos humanos.
Há muitos outros dados dignos de nota, mas, a despeito dessas cifras já tão impressionantes, fato é que a Nova República foi fundada mais nas estruturas do que nos escombros da ditadura. Muitas das violências apontadas persistiram e seguem até hoje sendo praticadas. Não são “entulhos autoritários” ou “restos da ditadura”, mas como práticas e discursos renovados cotidianamente por atores políticos sob o nosso regime democrático.
O trabalho de memória sobre a ditadura e a nossa justiça de transição tiveram algumas limitações que até hoje se fazem sentir em nosso país. Nos últimos anos, temos assistido a manifestações na frente de quarteis do Exército clamando por “intervenção militar”, temos visto o elogio a notórios torturadores e mesmo pessoas indo às ruas para pedir por um novo AI-5, símbolo do estado de exceção e do endurecimento da ditadura.
Esse cenário reflete como, durante a transição política e o advento de uma nova Constituição do país em 1988, não foi dada a atenção devida ao tanto de ditadura que persiste nas entranhas da nossa democracia. Exemplo disso é que a historiografia e as políticas oficiais de memória não trataram, como temas da ditadura, as questões de raça, etnia, gênero, identidade de gênero e orientação sexual.
É preciso ampliar o entendimento sobre a categoria de “vítimas” da ditadura em nosso país. Não foi somente quem era acusado de ser comunista e de pegar em armas que foi perseguido pelo regime autoritário e se tornou um “preso político”. O golpe atingiu esses segmentos politicamente organizados e que resistiram à ditadura, mas ele também se deu contra as diversidades étnico-racial, de gênero e de sexualidade em nosso país.
A ditadura tentou impor um ideal de pátria grande, de nação homogênea, de ausência de conflitos e de divisões. Toda essa ideologia reforçou a marginalização e a exclusão de pessoas negras, indígenas, mulheres e LGBTQIA+, tidas como um “outro” do universal branco, heterossexual e cisgênero. Esse processo legitimou perseguições estatais e todos tipos de violências contra essas comunidades.
Tal mudança de lente nos permite enxergar como toda sociedade e, especialmente, seus segmentos mais vulnerabilizados, foram impactos de modo mais amplo e profundo pela ditadura.
Nestes 60 anos do golpe de 1964, são memórias como a de Wilson Luis que precisamos reconhecer e celebrar. Memórias de resistência, vidas de pessoas comuns registradas em um retrato policial, que ficaram soterradas pela lógica do esquecimento, da conciliação e da LGBTfobia que ainda tem marcado as políticas públicas no campo dos direitos humanos em nosso país. Esses retratos são, hoje, a prova contundente, produzida pelo próprio regime, de que a ditadura perseguiu a população LGBTQIA+.
Recentemente, o presidente Lula deu uma declaração de que o golpe de 64 é história e que não quer remoer o passado. Se queremos construir uma democracia que mereça realmente este nome, devemos falar e agir sobre a disputa desse passado que ainda não passou.
Renan Quinalha é paulistano, escritor, advogado e professor de direito da Unifesp, onde também coordena o Núcleo TransUnifesp. Entre outros, é autor dos livros Novas fronteiras das histórias LBGTI+ no Brasil (Elefante, 2023), Justiça de Transição: contornos do conceito (Expressão Popular, 2013), Contra a Moral e os Bons Costumes: a ditadura e a repressão contra a comunidade LGBT (Companhia das Letras, 2021) e Movimento LGBTI+: uma breve história do século XIX aos nossos dias (Autêntica, 2022). Vencedor do Prêmio Cidadania e Diversidade da Parada LGBT de São Paulo e um dos cinco finalistas do Prêmio Jabuti em 2023. Na revista 451, é editor e colunista da seção Livros e Livres, dedicada à literatura LGBTI+.
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Fotos cedidas pelo Arquivo Público do Estado de São Paulo
[1] OCANHA, Rafael Freitas. As rondas policiais de combate a homossexualidade na cidade de São Paulo – (1976 – 1982). In: GREEN, James N.; QUINALHA, Renan (Orgs.). Ditadura e homossexualidades: repressão, resistência e a busca da verdade. São Carlos: EDUFSCAR, 2014, p. 157.
[2] Rafael Freitas constatou que “entre 14 de dezembro de 1976 e 21 de julho de 1977, 460 travestis foram sindicados para o estudo, …. Os travestis que não apresentavam os documentos eram encaminhados ao distrito, onde aguardavam a formulação de inquérito que, em seguida, tornaria processo por vadiagem. Quando liberado, deveria ir com a maior brevidade possível a uma gráfica providenciar outra xerocópia para apresentar a polícia, caso fosse parado em uma blitz. A imagem também fazia parte dos estudos de criminologia e do inquérito dos travestis” (Ibidem, p. 47).