Por Silvina Friera
Publicado em Página 12
A vulnerabilidade da natureza não é um problema global abstrato. Mais de 100 pessoas morreram e pelo menos 1.000 estão desaparecidas como resultado das enchentes na Alemanha e na Bélgica. Recorde de altas temperaturas no Canadá (50 graus) e nos Estados Unidos mataram centenas de pessoas. Até a Sibéria, no extremo norte da Rússia, sofreu uma onda de calor com incêndios florestais. A onda de frio polar no Brasil alcançou algo inédito: níveis próximos a zero grau e nevascas.
“Não é simplesmente ‘a humanidade’ que está agindo, mas a maneira com a qual os humanos agem sobre a natureza, como ela é transmitida dentro da sociedade, através das relações de classe e gênero, bem como da raça. O Antropoceno revela o poder humano, mas esconde de onde ele vem e como esse poder é exercido. Para citar Marx e Engels: não a humanidade como um conceito abstrato, mas ‘a sociedade burguesa moderna, uma sociedade que conjurou meios de produção e troca tão poderosos, como o feiticeiro que não pode mais controlar os poderes do submundo que ele invocou com seus feitiços'”, explicam os cientistas políticos alemães Ulrich Brand e Markus Wissen em Modo de vida imperial: sobre a exploração de seres humanos e da natureza no capitalismo global, publicado pela Tinta Limón, com tradução de Silke Trienke, e no Brasil pela Elefante, em 2021.
Modo de vida imperial é um livro fundamental e destinado a se tornar um clássico, pois, a partir uma perspectiva crítica e internacionalista, os autores desmascaram os diagnósticos tímidos que as elites globais fazem da crise ecossocial em curso, questionando o “capitalismo verde” (revolução passiva, nos termos de Antonio Gramsci, liderada pelas forças dominantes) e testam uma proposta radical voltada para a transformação das formas de acumulação e dos modos de vida.
O conceito de “modo de vida imperial” proposto por Brand e Wissen refere-se às normas de produção, distribuição e consumo que estão profundamente enraizadas nas estruturas e práticas políticas, econômicas e culturais da vida cotidiana da população do Norte global, e cada vez mais também nos países emergentes do Sul global. Este conceito de modo de vida segue a tradição de Gramsci: os cientistas políticos alemães partem da ideia de que uma estrutura social contraditória como a capitalista só pode ser reproduzida quando está enraizada nas práticas cotidianas e na racionalidade cotidiana, e é por isso que se torna “natural”. O adjetivo “imperial” busca enfatizar a dimensão global e ecológica desse modo de vida.
A última vez que Brand (Mainau, Alemanha, 1967) esteve em Buenos Aires foi em 2018, quando apresentou o livro Pós-extrativismo e decrescimento: saídas do labirinto capitalista (Tinta Limón/Elefante), em coautoria com o economista equatoriano Alberto Acosta. De Viena, onde reside, o cientista político lembra que morou na Argentina em 1992, quando veio estudar na Universidade de Buenos Aires.
“Começamos a trabalhar com o conceito de modo de vida imperial, não por acaso, na crise econômico-financeira de 2008, quando houve uma certa politização da crise ecológica; mas as medidas eram voltadas para o crescimento. Queríamos, então, vincular o cotidiano com a crise ambiental e a globalização, argumentando que se nos contentarmos com as políticas de desenvolvimento sustentável, as instituições internacionais, a Convenção sobre Mudança do Clima, e não formos para os obstáculos que são os interesses econômicos e políticos, alguma coisa continua sendo invisível e normalizada no cotidiano das pessoas, mesmo que elas já tenham uma certa consciência ecológica”, diz Brand, professor de Política Internacional da Universidade de Viena.
Em que sentido o “capitalismo verde” também é o problema?
Na Europa, ainda mais que nos Estados Unidos, há uma dicotomia muito errada, de dois projetos de desenvolvimento. Um dos projetos é aquele que nega a crise climática, o trumpismo, o bolsonarismo, que é antiecológico e muito autoritário; É business as usual. O outro projeto é muito dinâmico agora na Europa, com o European Green New Deal, o programa de recuperação de 750 bilhões de euros para enfrentar a pós-pandemia. Este projeto está organizado em torno do conceito de economia verde, modernização ecológica e combate às mudanças climáticas. Para nós, o capitalismo verde postula a ideia de uma renovação do capitalismo, uma mudança em sua fase fóssil sem transformação social, sem mudar a lógica do crescimento, a lógica da acumulação do capital. O capitalismo verde é uma armadilha; nós criticamos as discussões “progressistas” que politizam a crise ambiental sem politizar as relações sociais com a natureza, as relações de classe e as relações Norte-Sul.
Qual é a armadilha do capitalismo verde? Ele pretende mudar algo para que nada mude?
Sim, é mudar a base energética para um pós-fossilismo, sem mudar a lógica de crescimento e acumulação. A dissociação entre crescimento, uso de recursos e emissões é a esperança do capitalismo verde. É sabido que se tivermos crescimento, teremos mais uso dos recursos naturais e mais emissões. É uma armadilha pensar que pode haver uma desconexão entre o crescimento e o uso dos recursos naturais. Você tem que questionar o poder do capital fóssil e o poder do capital digital, que agora é tão forte. Dentro do capitalismo, não vamos resolver a crise ambiental.
Se dentro do capitalismo não se resolva, a pergunta “leninista” seria “o que fazer?”
Nosso argumento contra o capitalismo verde rejeita um dispositivo muito forte de individualização da responsabilidade: se você consome verde, se você vive bem e se comporta bem, toda aquela onda de behaviorismo que avisa que as pessoas têm que se comportar bem para resolver a crise ambiental. Para começar, não devemos cair na armadilha do individualismo, onde a responsabilidade recai sobre os consumidores. A segunda armadilha é a tecnológica, que afirma que com a digitalização os problemas serão resolvidos. Todos os estudos indicam que a digitalização implica um grande aumento no uso de energia; requer mais recursos.
A mudança é feita por meio de um grupo que chamamos de “modo de vida solidário” por reconhecer que o capitalismo não passa por tudo: que existem modos de vida solidários, se pensarmos nos povos indígenas e que vivem em comunidades, embora eles também tenham uma articulação clara com o capitalismo. O capitalismo é um modo de produção muito dominante, para muitos muito atraente, mas existem outros modos de produção. Em nossas sociedades existe um modo de produção público; o Estado tem seus modos de produção em saúde, educação, transporte público, que não se organiza pelo lucro, pela acumulação de capital, mas por outras lógicas. No Chile, quase tudo foi privatizado, mas não na Argentina. Também não devemos cair na armadilha de que o Estado tudo faz, mas devemos reconhecer as diferenças entre uma economia orientada para a troca de valor, para o lucro, ou uma economia pública solidária, que deve ser organizada e que vale a pena.
Eu moro em Viena, onde existe uma longa tradição do setor público que deve ser defendida e aprimorada. Não podemos negar que no final é uma luta feroz pela valorização de capitais, capital fóssil, capital digital, capital da saúde, capital da vacina, capital automotivo. O poder dessas capitais é tão forte que o Estado tem que contribuir para dizer: “O capital não pode organizar o mundo”. A outra opção é uma oposição ao extrativismo, ao crescimento; o discurso do Bem-Viver, sem romantizá-lo, o discurso de ter uma vida saudável e digna, nem sempre em crescimento, é importante, mas essas práticas exigem condições sociais, porque se não houver condições de um bom transporte, um bom sistema saúde, não há “bem viver”. As lutas sociais são mais importantes do que o comportamento individual.
No campo das lutas sociais, qual você acha a mais significativa neste momento?
Essa resposta é sempre temporária. Eu diria que agora na Europa as lutas dos jovens contra o extrativismo, contra a produção de carvão e a expansão dos aeroportos, contra a construção de mais rodovias. Acredito que com a vitória de Pedro Castillo no Peru, tenha ficado bastante claro o efeito das lutas anti-extrativistas. Na Argentina, depois da experiência de (Mauricio) Macri com um neoliberalismo muito forte, o que significa que o governo de Alberto Fernández permaneça no extrativismo? Agora começa um novo ciclo das commodities, como diz Maristella Svampa. Vamos cair na mesma armadilha de 2003-2004 com os Kirchners, que não repensaram o modelo econômico, mas aproveitaram para aprofundar o extrativismo? O que significa hoje, na Argentina de 2021, reconsiderar o modo de vida imperial?
O Pacto Ecossocial na América Latina e o Green New Deal de (Alexandria) Ocasio-Cortez nos Estados Unidos são propostas muito importantes para fortalecer o setor público, garantir empregos e mudar a matriz produtiva. Mas se essas propostas não levarem em conta o outro lado da moeda – de onde vêm os recursos –, estão caminhando para uma armadilha. O que queremos é que as deficiências nas propostas progressistas possam ser discutidas. O Pacto Ecossocial na América Latina me parece muito interessante, mas o que significa na dependência do mercado mundial, das transnacionais, mas também no cotidiano da classe média argentina, por exemplo, que quer viver como na Estados Unidos ou como na Europa, dando legitimidade ao extrativismo.
Como cientista político, você integra o movimento pelo decrescimento. O que lhe interessa no decrescimento como proposta econômica e política?
Sei que na América Latina a semântica do decrescimento não pode ser utilizada porque não faz sentido em sociedades com tanta pobreza e com a associação comum de decrescimento à austeridade neoliberal, em que os ricos ficariam mais ricos. Mas a ideia principal do decrescimento é livrar-se do imperativo de crescimento que implica o extrativismo, que implica consumismo, destruição. Sugiro repensar a sociedade argentina sem o imperativo do crescimento, mas com outras prioridades: como se produz o valor de uso, como se produz o comum, como se produz a infraestrutura pública, como se produz o setor privado de forma que não haja superexploração e que não se destrua a natureza. Essa seria a contribuição da queda, o que não quer dizer “ótimo, a economia argentina caiu 8% no ano passado por conta da crise”. Isso é mudança para desastre. Diminuir é mudança pela luta, mudança por um estilo de vida atrativo e solidário que nos permite livrar-nos do imperativo de crescimento e das relações de poder das grandes corporações. Temos que repensar toda a economia para um outro modelo de bem-estar que consiga superar o capitalismo e o imperativo do crescimento.
A pandemia nos obrigou a repensar a relação que temos com a natureza, mas não com os modos de produção?
É uma pergunta interessante. Publiquei um artigo no ano passado em que afirmava que a pandemia nos oferece possibilidades de aprender e repensar nossas relações com a natureza. Mas o que vimos foi uma globalização feroz das mercadorias. Na América Latina, o mais importante é ter um modelo de bem-estar para os cidadãos dos países da região e não contribuir para o bem-estar dos Estados Unidos, Europa e China. Devemos repensar a divisão internacional do trabalho, que, para a América Latina, é sempre de dependência. Outra questão a se repensar tem a ver com o dia a dia. Pessoas com uma boa casa, um bom emprego e um bom salário, que não tiveram que deixar suas casas, foram capazes de suportar a pandemia com muito mais facilidade do que outras pessoas que tiveram que trabalhar fora. O que significa essa divisão de trabalho dentro da sociedade entre quem tem que se expor todos os dias à pandemia e quem pode trabalhar em casa? A pandemia nos mostrou um estado pós-neoliberal. A lei inquestionável, ao nível da União Europeia, era “Os Estados não podem tomar emprestado” porque isso significa inflação, põe em risco a competitividade e o crescimento. A pandemia nos mostrou que o Estado deve assumir a liderança. Agora podemos transferir esse aprendizado para a crise climática.
Como esse aprendizado é transferido?
Os mercados de carbono, os mercados privados, não vão resolver a crise ecológica. Precisamos de um Estado forte e não autoritário, não de um Estado de capital, mas de um Estado democrático e transparente que queira resolver a crise ambiental. O desejo generalizado de voltar à “normalidade” após a pandemia significa aprofundar o modo de vida imperial com a Amazônia, com a digitalização, com as compras de mercadorias pela Internet. As pessoas que compram online não pensam de onde vêm as mercadorias, não pensam nas condições de trabalho dos trabalhadores que trazem as mercadorias para as suas casas. O cotidiano no Norte global, mas também no Sul, faz com que a violência cotidiana do capitalismo contra muita gente, contra a natureza, se torne invisível, se normalize. A pandemia aprofundou as desigualdades existentes entre classes, entre gêneros e entre Norte-Sul. As classes médias altas e as oligarquias têm acesso direto ao modo de vida imperial e desejam mantê-lo. Querem voltar a uma normalidade que antes se baseava em enormes desigualdades, principalmente no mundo do trabalho. Se a luta por uma nova ordem mundial começou, o controle do conhecimento, o controle das vacinas agora com as variantes do vírus, terá um papel decisivo.
Como você imagina o futuro imediato após a pandemia?
Ainda temos mais dois ou três anos para realmente controlar o vírus. Quando as políticas de austeridade começam e quem pagará as contas é a grande questão. Acredito que a União Europeia vai mudar a sua estratégia de colocar tanto dinheiro na economia para optar por políticas de austeridade. Isso já aconteceu em 2010, em 2011, se lembrarmos da Grécia. A digitalização, que começou antes da pandemia, se aprofundou de uma forma que não poderíamos imaginar no início de 2020. A digitalização, que agora nos permite a comunicação entre Buenos Aires e Viena, é o poder do Facebook, da Netflix, da Amazon, do Zoom; mas é também uma nova inscrição em nossos corpos, em nossas mentes, em nossas subjetividades, que está no celular, na internet, na Netflix. Vai ser difícil pensar o que essa digitalização significa para uma perspectiva emancipatória. Temos uma indústria cultural – como chamaram os filósofos da escola de Frankfurt, como Adorno – tão forte, que o grande desafio agora é como democratizar a digitalização.