Uma outra história do neoliberalismo

A escolha da guerra civil investiga trajetória teórica de Hayek e von Mises e sustenta: seu alvo sempre foi bloquear a participação popular e a democracia real. Para impor lógica dos mercados, eles defenderam mão forte do Estado e ditaduras

Por Christian Laval, Haud Guéguen e Pierre Sauvêtre, em entrevista a Alexis Pelletier
Tradução Vitor Costa
Publicado em Outras Palavras

 

A escolha da guerra civil: uma outra história do neoliberalismo, de Pierre Dardot, Haud Guéguen, Christian Laval e Pierre Sauvêtre, oferece caminhos inéditos e essenciais para o entendimento da conjuntura política mundial e nacional. Isso porque os autores fizeram um trabalho ao qual poucos intelectuais de esquerda se dispuseram: mergulhar nas raízes teóricas do neoliberalismo. Estudaram profundamente a obra de Hayek e Mises, tão celebrados pela extrema direita brasileira, além de resgatar episódios marcantes da história de governos identificados com essas ideias, entre eles Pinochet e Thatcher, bem como a formação da União Europeia e as duras medidas de ajuste empreendidas pelos partidos trabalhistas e socialistas tradicionais.

O resultado é um livro que disseca o neoliberalismo não como um regime de governo, mas como uma estratégia de defesa incondicional do mercado e de combate aos ideais de igualdade em todas as suas formas: do sindicalismo ao socialismo, passando pelo Estado de bem-estar social e, inclusive, pelo liberalismo tradicional — que os neoliberais veem como um caminho inevitável ao totalitarismo. Para defender suas bandeiras, o neoliberalismo, ao contrário do que se apregoa nos discursos mainstream, precisa de um Estado forte, pois é o poder público que deverá defender o predomínio das leis de mercado, custe o que custar.

Não há qualquer apreço à democracia ou à vontade popular: o ideal é barrar, por meio da lei ou da violência, qualquer mínima interferência nas leis da economia, vistas como sagradas e naturais pelos ideólogos neoliberais. A escolha da guerra civil demonstra que fenômenos como Trump e Bolsonaro não são formas desviantes do neoliberalismo. Pelo contrário: desempenham governos muito coerentes com sua história. É o que expressa a entrevista a seguir, concedida por três dos autores do livro à revista francesa Diacritik.

 

Para começar, parece necessário esclarecer o significado da expressão “guerra civil”.

Pierre Sauvêtre: Deve ficar claro desde o início que não empregamos o termo de acordo com seus usos mais comuns. O conceito de guerra civil é muitas vezes estruturado por duas oposições: a guerra civil interna se opõe à guerra entre Estados – externa – porque é o confronto armado entre cidadãos de um mesmo Estado. E a guerra civil se opõe à política porque é uma explosão de violência sem regra, enquanto a política é a suspensão da violência pelo poder da lei. Hobbes via a guerra civil como uma “guerra de todos contra todos”, própria do “estado de natureza” à qual a ordem contratual do Estado colocava um freio, mas para a qual os indivíduos voltariam se algum dia o Estado viesse a se dissolver. A guerra civil e a política eram, portanto, mutuamente exclusivas para ele.

Numa outra direção, nos inspiramos nos desdobramentos de Foucault em sua palestra “La société punitive” [A sociedade punitiva] para questionar essas oposições no caso do neoliberalismo. Em primeiro lugar, a guerra civil interna não é distinta da guerra entre Estados; ao contrário, é sua continuidade. Prevendo os esforços necessários para acabar com a greve dos mineiros britânicos, a própria Margaret Thatcher estabeleceu em julho de 1984 a continuidade entre esses dois tipos de guerra: “Tivemos que lutar contra o inimigo externo, nas Malvinas. Agora devemos também estar conscientes do inimigo interno, que é muito mais difícil de combater e muito mais perigoso para a liberdade”.

A guerra civil, então, não é uma guerra entre indivíduos, mas entre coletivos que se constituem por sua própria encenação. Nesse sentido, a guerra civil neoliberal, ao contrário do que poderia ser a stasis [discórdia] para os gregos, não é a ameaça permanente de dissolução do corpo social que motiva a política como construção consensual da pólis, mas é o produto das relações de poder e do exercício do governo. Nesse sentido, identificamos a unidade do neoliberalismo no movimento de impor uma ordem de mercado por meio de uma “política de guerra civil”. Já sua variedade histórica são as várias “estratégias de guerra civil”, associadas a inimigos em constante mudança (o socialismo, os sindicatos, o Estado de bem-estar social, os ativistas da contracultura, as mulheres, as minorias, o precariado) por meio das quais ele tentou estabelecer essa ordem em contextos históricos específicos.

 

Então, não se trata de uma guerra real?

Pierre Sauvêtre: Embora não concebamos a guerra civil como um confronto armado entre dois setores da população, não atribuímos ao termo “guerra” um significado metafórico. Este termo pretende destacar a violência física aberta que os governos neoliberais podem usar para neutralizar seus inimigos. O caso do Chile de Pinochet é óbvio, o da repressão aos Coletes Amarelos na França também. Em geral, esse termo também se refere à crescente militarização dos aparatos repressivos e dos métodos de repressão interna dos movimentos sociais. Mas essas guerras são inseparavelmente “civis” em dois sentidos distintos. Por um lado, porque não mobilizam apenas meios militares, mas também meios políticos, jurídicos ou culturais para enfraquecer os seus inimigos: pensemos nos termos jurídicos da prática cada vez mais comum do lawfare ou em termos de valores culturais nos recentes ataques ao “islamoesquerdismo” e a “não mistura”. E, por outro lado, apoiando-se na lógica da constituição de um inimigo interno, essas estratégias reúnem em torno de si coalizões sociais cujos afetos são mobilizados por essas guerras sem que elas mantenham qualquer interesse com os objetivos de “securitização” do capitalismo neoliberal.

 

Vocês analisam com precisão os discursos dos principais teóricos do neoliberalismo. Cito, entre eles, Ludwig von Mises e, é claro, Friedrich von Hayek. Vocês mostramsobre este último, seu papel nos regimes de Pinochet e Thatcher. Na verdade, entende-se que o neoliberalismo se opõe antes de tudo ao povo, e você fala até em “demofobia”. O que podemos entender com esta expressão?

Haud Guéguen: Certa lenda política diz que o neoliberalismo é uma doutrina que, ao se opor a toda forma de intervencionismo estatal e ao permitir a liberdade individual e o livre-mercado, seria uma defesa da democracia contra as tendências totalitárias do Estado. Falar em “demofobia” é, pelo contrário, recordar uma dimensão central do neoliberalismo doutrinal e governamental, que é a sua profunda desconfiança do povo e de qualquer forma de democracia ilimitada. Em uma obra de 1929 intitulada La mystique démocratique [A mística democrática], Louis Rougier propôs uma distinção entre duas formas de democracia que se tornaria fundamental para todas as correntes neoliberais. A distinção entre a democracia fundada no conceito de “soberania popular”, que, para ele, só poderia levar ao “totalitarismo”, e a democracia “liberal”, que, com base na limitação dos poderes dos governos, visa, ao contrário, impedir qualquer usurpação das massas na ordem do mercado.

De “ordoliberais” como Hayek, Mises, Lippmann aos partidários [da Escola] do Public Choice [Escolha Pública], este é um ponto fundamental de consenso para todos os teóricos neoliberais. Isso foi evidenciado pela maneira como todas essas correntes saudaram o golpe militar de Pinochet em 1973. A ideia de que o ordenamento da livre-concorrência exigido para o funcionamento do mercado só é possível sob condição de neutralização radical do poder das “massas” é um grande lugar-comum do movimento conservador, que considera o povo como inculto, ganancioso e, portanto, incapaz de se governar. Quando, em Direito, legislação e liberdade, Hayek explica que o verdadeiro valor da democracia é proteger “contra o abuso de poder”, sustenta que esta não poderia, portanto, representar “o mais alto valor político” e que “uma democracia sem limites poderia ser algo pior que governos limitados, ainda que não democráticos”. Assim, ele apenas expressa essa convicção neoliberal de que a democracia só tem valor relativo. A democracia liberal é apenas uma opção entre outras mais abertamente autoritárias, como a ditadura – fantasma com o qual conta para inviabilizar qualquer projeto de regulação da ordem de mercado por meio de sua constitucionalização.

É, no entanto, importante notar que esta oposição de princípio a qualquer forma de soberania popular foi imediatamente acompanhada por uma importante reflexão estratégica sobre os meios de ganhar o apoio popular para poder, por assim dizer, voltar o povo contra si mesmo. A principal característica das massas é, aos olhos dos neoliberais, a incapacidade de pensarem por si mesmas. Por isso, o esquema sugere que as elites as conduzam, de forma a neutralizar ou desativar o perigo democrático. Todas as reflexões de Walter Lippmann sobre o papel dos especialistas na construção da opinião pública a partir dos anos 1920 estão intimamente relacionadas a essa questão estratégica, que definitivamente não perdeu sua atualidade.

 

livro, portanto, se opõe a uma série de lugares-comuns que dizem respeito ao neoliberalismo. Entre eles está o descompromisso em relação ao Estado. O neoliberalismo significa este descompromisso ou uma redefinição das relações entre Estado e sociedade?

Pierre Sauvêtre: Uma das ideias centrais que já estava em A nova razão do mundo, e que é reforçada neste livro, é que o neoliberalismo opera uma grande ruptura na relação do Estado com o liberalismo e na concepção deste último, de um Estado mínimo não-intervencionista. As ideias de que o mundo atual seria caracterizado pelo desengajamento dos liberais, e de que Estado e seria apenas dominado pelo mercado mundial e pelo peso das multinacionais – a hipótese do ultraliberalismo – é questionada por todas as posições intelectuais dos neoliberais a partir da intervenção maciça e permanente dos Estados-Nações nas sociedades contemporâneas. A ascensão do neoliberalismo nacionalista e a crise do Covid-19 reforçaram ainda mais esta tendência.

Em A nova razão do mundo já especificávamos como a concepção neoliberal do Estado se baseava, na sua relação com a economia, em um intervencionismo especificamente neoliberal e diametralmente oposto ao intervencionismo social, redefinindo completamente a relação entre a sociedade e o Estado. Enquanto o intervencionismo do bem-estar social fez do Estado um meio de coordenar as demandas sociais para regular o mercado, o intervencionismo neoliberal consiste em moldar as instituições e a sociedade para se adaptarem ao mercado. Trata-se de um intervencionismo jurídico que procura facilitar o funcionamento do mercado com base na norma da concorrência, um intervencionismo gerencial que transforma os serviços públicos no modelo de empresa e um intervencionismo societário que pretende fazer de cada indivíduo um “empresário de a si mesmo” para usar a fórmula de Foucault. Nessa visão, o Estado não é mais um instrumento democrático para a sociedade, mas um soberano que molda uma sociedade de concorrência para o mercado.

Em A escolha da guerra civil voltamos ao lado negativo desse intervencionismo construtivo do Estado neoliberal, a saber, a concepção de um “Estado forte” teorizado pela primeira vez por Carl Schmitt e retomado por todos os fundadores do neoliberalismo. Para que o intervencionismo neoliberal alcance a plena integração da sociedade ao mercado, devem ser tomadas medidas para proteger o mercado das demandas democráticas por justiça social. Este é o papel que cabe ao Estado forte, que se vê como um Estado acima da sociedade e da democracia, de forma alguma subordinado a elas, e que deve por todos os meios impedir que as massas se apoderem do destino da economia. Ele está, portanto, intimamente ligado à “demofobia” neoliberal e foi feito para combater a “fúria democrática”, como diz Röpke. As principais tarefas que os neoliberais lhe atribuem são o desmantelamento do Estado de Bem-Estar Social, a recusa em ceder às pressões dos interesses sociais, o uso da violência contra quem prejudica o funcionamento do mercado e o estabelecimento da ditadura quando a sobrevivência da economia livre está ameaçada. O estabelecimento de uma ordem jurídica e institucional para garantir o mercado e a violência do Estado contra a democracia e a sociedade são as duas faces complementares que marcam os contornos do Estado neoliberal.

 

Isso significa um Estado forte, dentro do que se pode chamar de uma espécie de polícia jurídica geral. Você aceitaria essa expressão?

Pierre Sauvêtre: Como acabamos de ver, o Estado forte não se limita a uma dimensão jurídica, mas também se trata de uma concepção da manutenção da ordem política e social e, portanto, o Estado policial sustenta o arcabouço jurídico do neoliberalismo que coloca o direito privado em seu topo. Alexander Rüstow escreveu: “Desde o início, atribuímos ao Estado forte e independente a tarefa fundamental de policiar o mercado para garantir a liberdade econômica e a plena competição”. Portanto, se queremos falar de “polícia jurídica”, seria no sentido das funções policiais necessárias à preservação da ordem jurídica do mercado. No entanto, poderíamos questionar se a situação contemporânea não vai além de uma “polícia em defesa do mercado” ou de uma “polícia legal”, quando, por exemplo, evocamos no capítulo 10 do livro a forma de “contra-insurgência” que a política de manutenção da ordem passou a ter nos últimos anos, como vemos na repressão aos Coletes Amarelos. O que estamos testemunhando [na França], com as disposições sobre a proibição da ocupação de campi universitários do projeto de lei LPR ou da Lei de Segurança Global é a formação de um Direito de contra-insurgência que aproveita as situações de guerra civil, elas próprias acionadas pelos governos para definir qualquer disputa como ilegal no futuro. Em vez de uma “polícia jurídica”, pode-se falar de uma “direito policial de mercado” que está tomando forma.

 

O ódio ao povo, que mencionamos anteriormente, não é mascarado pelo vocabulário e pelo uso da comunicação?

Christian Laval: O que os textos teóricos que citamos mostram e nos quais os principais autores admitem sua demofobia, é um medo apavorante das massas, é o terror diante do perigo que representariam se um dia elas pensarem por si próprias e quiserem impor políticas e construir instituições que lhes fossem mais favoráveis ​​e sobre as quais exercessem controle. Essa demofobia é mascarada por um discurso de desqualificação das massas. É bastante óbvio que um político não pode dizer abertamente o que os teóricos neoliberais podem admitir em seus livros. Ele não pode repetir, nos mesmos termos o que Mises, Rougier ou Hayek pensam sobre as massas, de forma bastante crua inclusive, de sua incapacidade de respeitar a mais fundamental lei da vida econômica: liberdade de empresa, propriedade, competição. Portanto, os governantes devem usar uma comunicação mais eufemística, que é a linguagem dos especialistas, tecnocratas, cientistas. A comunicação oficial de poderes, e sem dúvida foi Lippmann quem melhor a explicou, obviamente tem uma tarefa muito complexa, pois deve convencer a “opinião pública”, idealizada em um regime que se pretende democrático, de que ela não deve prevalecer sobre o perito que sabe melhor do que ela o que é bom para a sociedade. A arte política do neoliberalismo consiste, portanto, em desqualificar as massas e em desacreditar tudo o que é do interesse da maioria, mas sem poder dizê-lo aberta ou diretamente. Temos um bom exemplo disso com o uso desqualificador do termo “populismo” hoje. Na França, isso é antigo. Um dos primeiros governos a reivindicar o neoliberalismo, na época de Giscard d’Estaing, foi o de Raymond Barre, o “primeiro economista da França”. Tratava-se de governar de acordo com as leis científicas da economia, apenas. O que mostramos em nosso livro é a existência de outro aspecto da comunicação política que acompanha as estratégias neoliberais, que Stuart Hall havia analisado na Inglaterra como o “populismo autoritário” de Thatcher. Como podemos ver, trata-se de compreender a comunicação neoliberal como uma articulação entre um discurso “expertocrático” e um discurso com matizes populistas, mas um populismo muito particular, de tipo tradicionalista, nacionalista, até mesmo comunitarista.

 

Mesmo que alguns teóricos estejam comprometidos com o fascismo italiano ou com o Chile (de Pinochet), você tem o cuidado de não equiparar o fascismo ao neoliberalismo. Em particular, você diz que a principal diferença diz respeito à estratégia de retenção do poder. Como é isso?

Christian Laval: Não é exatamente assim. Nós acreditamos que os governos neoliberais farão uso de todos os meios à sua disposição para se manter no poder, a fim de defender a ordem do mercado e até ampliá-la a todas as relações sociais, a todas as instituições. Incluindo violência aberta, repressão contra oponentes, e a criação das leis mais liberticidas. Não compreenderíamos o declínio quase universal das liberdades no mundo se não entendêssemos o vínculo que isso tem com a necessidade de os governos submeterem as populações à “grande lei do mundo”, e isso por todos os meios. Mas trata-se daquele “fascismo” histórico do entreguerras? Não estamos confundindo muito frequentemente “métodos fascistas”, lógica fascista, gangues fascistas, digamos mesmo um estilo fascista de manipular multidões, como vimos em funcionamento nos Estados Unidos, no Brasil ou em qualquer outro lugar, e o fascismo histórico? Alguns autores que discutimos no livro falam de “fascismo neoliberal” ou “neoliberalismo fascista”. Insistimos, de nossa parte, num ponto importante: o neoliberalismo é o portador da violência contra a sociedade pelo próprio fato de ser um projeto político de transformação dela que não supõe o consentimento informado e lúcido das pessoas quanto aos objetivos e consequências desta transformação. Mas este projeto político não é o do fascismo histórico, mesmo que possa usar métodos “autoritários” que se assemelham a ele. A tarefa não é jogar com semelhanças e analogias, mas identificar a singularidade histórica do neoliberalismo como um conjunto de estratégias voltadas para estabelecer, proteger e expandir a ordem de mercado. Sob esse ângulo, devemos concordar que estamos muito longe do projeto fascista de controle total da população nas organizações de massa, de submissão de todas as instituições ao Partido-Estado, de conquistas territoriais do “povo superior” para expandir seu espaço vital (lebensraum) e, sobretudo, a absorção da economia pelo Estado total. Não excluímos, no entanto, que uma nova forma de fascismo possa surgir no horizonte, através da exacerbação das tensões e frustrações geradas pela lógica do neoliberalismo. O fim do projeto neoliberal não será necessariamente o que se espera dele.

 

O último capítulo do livro é, digamos, mais lírico. Mostra que podemos opor a esta guerra civil “uma estratégia de igualdade e democracia”. Então, há outra coisa que não seja angústia no mundo, hoje?

Haud Guéguen: Depois de nos esforçarmos por analisar, por assim dizer, clínica ou cirurgicamente as várias estratégias do neoliberalismo doutrinal e governamental, pareceu-nos importante que a conclusão do trabalho não se contentasse em criticá-lo, mas também em se empenhar, em uma forma mais positiva ou propositiva, em delinear as principais características do que uma alternativa real ao neoliberalismo poderia significar hoje. Fazendo referência às experiências que, como a Comuna de Paris, se propunham opor “revolução” à “guerra civil” – e, portanto, a não jogar o jogo da divisão do povo contra si mesmo – trata-se de aproveitar ao máximo esse exercício de imaginação que consiste em sondar as lutas e as práticas contemporâneas do ponto de vista das reais possibilidades e utopias que aí se desenvolvem, permitindo vislumbrar os contornos de uma ordem social alternativa àquela do mercado. À utopia neoliberal de uma sociedade de mercado pura, agora em vias de se tornar plenamente real, propor uma utopia alternativa que assuma a promessa de emancipação política, social e individual que o neoliberalismo se propôs a desmobilizar na redução do significante liberdade ao seu significado estritamente econômico.

Porém, convém reavivar o sentido pleno da liberdade entendida no sentido de autonomia ou autogoverno, que deve se opor à estratégia anti-igualitária e antidemocrática que é constitutiva do neoliberalismo. Então é isso que propusemos definir como estratégia de igualdade e democracia radical. Com tal expressão, porém, não se trata de reabilitar de forma puramente abstrata os ideais normativos contra os quais foi construído o projeto neoliberal, na medida em que este último se baseia no que se poderia, inspirando-se em Rancière, chamar de “pressuposto de desigualdade”. Mais radicalmente, trata-se de atentar para a forma como, no plano ecológico, social e sanitário e na esfera dos movimentos feministas, todas as lutas contemporâneas nos convidam a não separar a exigência de liberdade da exigência de igualdade, tanto no nível da participação nos processos de deliberação e decisão política, quanto no nível do acesso a recursos e serviços coletivos. Se a situação atual pode inegavelmente parecer terrível em muitos aspectos, a única maneira de não ficar preso na “melancolia de esquerda” é levar a sério o fato de que, longe de serem apenas reativas, as lutas contemporâneas são também espaços onde são inventadas outra lógica e outra estratégia que não a neoliberal. Uma racionalidade que, como muitos outros atores sociais e teóricos, propomos vincular à do Comum e que este livro convida a ver simultaneamente como uma estratégia anti-guerra civil.

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