Há festa nas ruas da Argentina. Mulheres em luta e suas grandes faixas formam a Maré Verde, movimento que na última sexta-feira, 11 de dezembro, se concentrou ao redor do Congresso Nacional, em Buenos Aires, reivindicando a aprovação da lei pelo aborto legal, seguro e gratuito pela Câmara dos Deputados. Começamos este texto nos batuques da manifestação porque protesto e festa são conceitos-chave em A potência feminista, ou o desejo de transformar tudo, esta investigação militante que explora as ferramentas desenvolvidas pelas feministas do país hermano.
Verónica Gago escreveu e nós publicamos a versão brasileira. Ela, cientista social e professora da Universidade de Buenos Aires, compartilha perspectiva: “Escrevo no calor dos acontecimentos que deram ao movimento feminista nos últimos anos um protagonismo de novo tipo. Este livro é um registro ao vivo de nossas discussões enquanto cumpríamos as tarefas de preparar as greves, marchar, debater em assembleia, fazer dezenas de reuniões e ter centenas de conversas, coordenar e trocar com companheiras de outros lugares do mundo. É o registro de um processo político que continua aberto”.
Verónica é maravilhosa. Esta é a autora, com o lenço verde da campanha pela descriminalização do aborto na Argentina amarrado no pulso:
Acompanhada por Judith Butler, Susana Draper, Ruthie Wilson Gilmore e Natalia Brizuela, na semana passada, durante o lançamento em inglês deste mesmo livro que falamos aqui. Saiu como Feminist International: How to change everything, e nós torcemos para que siga ganhando o mundo.
Porque, veja, eis Verónica em seu perfil no Instagram:
“Vamos a la calle a la fiesta gigantesca que es la conquista de nuestros derechos: a gozar sin culpa, a decidir sin miedo a la cárcel o a la muerte, a elegir cuándo cómo y con quién queremos gestar y criar, a cuidarnos entre nosotres, a inventar otras familias, a pararnos sobre nuestros pies y reclamar soberanía sobre nuestros cuerpos y territorios. A nosotrxs nada nos lo dan, todo lo exigimos, lo luchamos, lo arrancamos. ¡Somos potentes en la calle! Que nos escuchen y nos vean, que no haya legislador o legisladora que quede indiferente al tsunami verde de nuestra potencia, nuestra fiesta, nuestra casa feminista en la calle. Vamos a luchar juntes compañeras y compañeres, porque es ahora, porque es urgente, porque no tenemos más paciencia. Aborto legal es vida, es autonomía, es justicia, es libertad. La calle nos espera, inundémosla.”
Quando ela e suas camaradas se juntam, acontecem coisas como a maré verde:
Olhe novamente, se arrepie.
#NiUnaMenos
A potência feminista acompanha a construção da greve feminista, que todo ano é puxada pelo Coletivo Ni Una Menos. Em 2016, um feminicídio especialmente brutal ocorreu logo antes da marcha e acendeu o país. Circularam convocatórias como: “Em seu escritório, hospital, tribunal, redação, loja, fábrica ou onde quer que trabalhe, pare por uma hora para exigir basta de violência machista, nos queremos vivas”.
Muitas mulheres que jamais participaram de manifestações de rua se juntaram ao movimento, que cresceu e se desenrolou. A festa da última sexta-feira nas ruas do centro de Buenos Aires e em muitas cidades do país é o capítulo mais recente desta trajetória, que neste ano colheu sua primeira grande vitória legislativa: os deputados argentinos votaram favoravelmente à descriminalização do aborto. Agora, o projeto segue para o Senado, onde se espera que também seja aprovado. E então, como dizem as militantes feministas argentinas, “será ley”.
A potência feminista, ou o desejo de transformar tudo demonstra como a greve revolveu a sociedade argentina e tornou evidentes potências e violências que seguiam veladas. Realizaram o que chama de a nova forma de cartografia prática da política feminista, mapeamento transversal que identifica inclusive aquelas mulheres que não podem parar de trabalhar para se juntar à greve.
O ajuste neoliberal tem um impacto diferenciado sobre as mais pobres, são elas que fazem malabarismos para que a comida seja suficiente, começando por si mesmas, que trabalham mais e comem menos para não prejudicar as crianças. Literalmente, oferecem seus corpos para minimizar a miséria neoliberal imposta a seus filhos.
Este tipo de análise econômica aguda é uma constante para Verónica, que também escreveu A razão neoliberal: economias barrocas e pragmática popular, um estudo das dinâmicas da economia informal e dos bairros periféricos de Buenos Aires — publicado por esta Elefante em 2018.
Desejo de transformar tudo
É inegável o realismo esperançoso que preenche a obra. Pois Verónica, em seus melhores momentos, lança clarezas como a seguinte: “Muitos são os tempos de escrita neste livro, mas o ritmo que o impulsionou é esse um pouco frenético e um pouco invencível que se abre quando se deseja, de modo coletivo, transformar tudo”.
Após a #NiUnaMenos, surgiu a #NosMueveElDeseo, que atua como guia deste livro na forma de seu subtítulo: o desejo de transformar tudo. Verónica argumenta que o desejo tem potência cognitiva, ou seja, produz conhecimento, percepção, sensibilidade e movimento. Mover-se a partir do desejo implica uma aposta na radicalidade: podemos transformar qualquer aspecto da vida.
Retomamos, então, o aborto. No livro há uma fala, de jovem não nomeada, que diz: “Em nossos bairros, instituições como as igrejas se encarregam de moralizar nossos corpos, nossas decisões, e agem para que as mulheres não tenhamos acesso ao aborto legal. Sem direitos sobre nossos corpos e nossas vidas, estamos condenadas à vulnerabilidade”.
Enquanto o moralismo tenta controlar corpos, a potência feminista se apresenta como capacidade desejante. Nas palavras de Vero: “Desejo é a força que impulsiona o que é percebido em cada corpo como possível. Este livro quer ser manifesto dessa potência que se expressa como desejo de transformar tudo”.