Legalização do aborto, triunfo da luta feminista

Em entrevista ao site Opera Mundi, a militante feminista argentina disse que projeto é uma vitória e comentou sobre seu mais recente livro publicado no Brasil pela Elefante

Por Fernanda Forgerini
Publicado em Opera Mundi

 

O projeto de lei sobre a interrupção voluntária da gravidez, enviado ao Congresso argentino pelo presidente Alberto Fernández em 17 de novembro, foi celebrado por diversos movimentos e organizações feministas no país. Para a escritora Verónica Gago, a medida anunciada é um “triunfo da luta, da militância, dos feminismos e suas mobilizações nas ruas”. A cientista social argentina e autora do livro A potência feminista, o desejo de transformar tudo, disse que o anúncio era esperado pelos movimentos do país, assim como uma “realização e conquista” das organizações feministas.

“O anúncio [do projeto] foi recebido com muita expectativa, com muita alegria, e agora o tratamento legislativo será o principal. Isso é um triunfo das lutas. Claro que muito bem feito o gesto do presidente, seu gesto histórico, mas esse momento é um triunfo das lutas, é um triunfo das militâncias das ruas, é um triunfo dos feminismos e suas mobilizações. Não podemos perder de vista que isso é uma realização e uma conquista da mobilização feminista”, disse.

Gago também comentou sobre as diversas violências que as mulheres estão submetidas, seja contra seus corpos ou seus territórios. Segundo a autora, há uma contraofensiva ensaiada entre o neoliberalismo e o conservadorismo. “O capital precisa violentar certas pessoas, certos corpos e certos territórios para estender suas zonas de valorização. Seja por que precisa desapropriar uma comunidade para fazer uma exploração em mineradora, seja desalojar uma população para construir um complexo imobiliário de luto”, declarou.

Confira a entrevista:

 

O presidente Alberto Fernández enviou ao Congresso argentino um projeto de legalização da interrupção voluntária da gravidez. Qual sua avaliação do projeto? 

Me parece que, agora, estão sendo analisadas as questões do projeto, uma análise mais pontual e de quais são os pontos críticos deste projeto, um projeto histórico da campanha nacional ao aborto legal, seguro e gratuito. A própria campanha afirmou que é um bom projeto o que foi enviado ao Congresso. Me respaldo no juízo de companheiras que estão dizendo que é um bom projeto. O importante é apontar que esse era um gesto muito esperado, de que o presidente enviasse ao Congresso um projeto do poder Executivo, o que nunca havia acontecido. Em segundo lugar, está sendo pedido um tratamento rápido no Congresso, sob o argumento de que no ano de 2018 já foi realizado todo o debate parlamentar necessário. Então, pede-se que aprove rapidamente e que seja lei antes do fim deste ano.

 

Em relação à recepção do projeto, acredita que ele será aceito? Como os movimentos feministas da Argentina reagiram ao anúncio do projeto?

O anúncio gerou uma aprovação grande, pois era uma promessa eleitoral do governo e também havia o anúncio de que seria enviado antes da pandemia da covid-19. E nos últimos meses, o movimento feminista realizou uma campanha para pressionar o governo, em uma campanha que dizia ‘Alberto, é agora’, ‘Alberto, é urgente’. Porque muitos setores, principalmente a Igreja, argumentaram que não era uma prioridade em um momento de pandemia [da covid-19], utilizaram a conjuntura contra à apresentação por parte do Executivo. E também outros setores reacionários diziam que o aborto seria um tema secundário. Então, do movimento começamos a fazer uma campanha muito forte dizendo que isso é uma prioridade e é uma urgência. E creio que essa luta nós ganhamos e agora estamos pressionando o Congresso.

O anúncio foi recebido com muita expectativa, com muita alegria, e que seja agora o tratamento principal parlamentário. Isso é um triunfo das lutas. Claro que foi muito bem feito o gesto do presidente, seu gesto histórico, mas esse momento é um triunfo das lutas, é um triunfo das militâncias das ruas, é um triunfo dos feminismos e suas mobilizações. Não podemos perder de vista que isso é uma realização e uma conquista da mobilização feminista.

 

Seu mais recente lançamento no Brasil é o livro A Potência Feminista, o desejo de transformar tudo. Do que se trata essa potência e o que seria o “tudo”? 

No livro, trato como potência feminista o que aconteceu no século recente de lutas feministas e que para mim se caracterizam por duas questões: a massividade a radicalidade. Essas lutas têm histórias anteriores, uma trajetória. Podemos dizer que há um acumulado de lutas de várias gerações. Mas há algo que sobressai e que chama a atenção no sentido da forma, que marca uma época e um ciclo.

Creio que tenha a ver com os últimos anos, em que estamos vendo um feminismo de massas e sua capacidade de mobilização, que faz com o que feminismo esteja cada vez mais presente em todos os espaços organizativos, políticos, familiares, educativos e sindicais. E creio que isso também tenha haver com a potência feminista. E nesse sentido, com a transversalidade do feminismo, de poder ser uma parte de experiências muito diversas – uma via que antes não era tão transversal, pois o feminismo era mais reduzido em certos grupos e setores.

O que vemos hoje é que essa ideia de potência feminista, esta massividade, esta transversalidade, essa radicalidade, esse desejo permanente de estar discutindo, transformando, impugnando as formas de organização da vida cotidiana e também das formas de governo se traduzem nessas diversas escalas de luta e me parece muito importante. E isso eu diria que são características mais gerais.

Podemos encontrar imagens muito concretas dessa potência nas mobilizações, nas revoltas e também nas maneiras da nova geração que, digamos, tem crescido e se posicionado ao lado dessas lutas. E isso se dá na forma de se relacionar, de enxergar seu corpo, na sua sexualidade e também sua maneira de pensar seu futuro. Então, creio que realmente o feminismo nesses anos se converteu em um movimento político, que está bate de frente em muitos conflitos, muitas lutas e, particularmente, na América Latina. Eu vejo claramente essa intervenção como movimento político e cada vez mais se aprofundando em ser mais intenso.

 

O livro aponta a greve como um instrumento de mudança e, a partir dela, você a usa para definir diversas violências. Por que propor a greve como uma “lente” catalisadora de um processo de ruptura?

Porque a organização da greve feminista é uma parte importante desse ciclo de lutas feministas e implicou construir uma luta de forças transnacionais, uma coordenação de muitos países e de muitas companheiras em todo o mundo. Porque é um processo desde 2017 até agora.

 

Wikimedia Commons
Projeto de lei legalizando o aborto foi enviado ao Congresso da Argentina na última terça-feira (17/11)

 

No livro, eu trabalho muito a ideia que a greve é um processo político e não um evento aleatório. E esse processo político também explica a massividade que vão tendo as greves em distintos lugares. E segurar essa rede transfronteiriça de organização feminista é muito importante, pois é uma primeira questão: a dimensão transnacional.

E o segundo ponto é que me parece muito importante colocar no centro da discussão e no centro da organização política o debate de quem são as trabalhadoras e o porquê, historicamente, não se reconhece o trabalho reprodutivo como um trabalho. Um debate que ademais neste ano de pandemia é fundamental. Assim como, a postura que as mulheres, mulheres trans e travestis assumiram uma maior carga de trabalho doméstico, reprodutivo, de cuidado, de ajuda nos territórios frente à emergência alimentar, econômica e social.

 

Qual balanço vocês faz de como serão possíveis as greves após a pandemia e como a pandemia afetou o movimento feminista? 

Nos afetou em uma questão muito importante, que é a impossibilidade de poder sair às ruas, de protestar nas ruas. De alguma maneira, nossa principal ferramenta é a possibilidade de estarmos juntas, nos encontrar, mas também de fazer pressão e mobilizar uma frente a certa ações e uma capacidade de justamente mostrar uma força dos feminismos. A primeira questão acredito que seja essa, nos vermos impedidas, com dificuldades, impossibilitadas de em alguns momentos poder usar as ruas, que é uma ferramenta política fundamental.

Contudo, creio que também nos afetou em uma maior demanda nos espaços de trabalho reprodutivos, de cuidado, alerta feminista frente ao aumento da violência machista por conta do confinamento doméstico. Creio que houve uma maior demanda das organizações, movimentos e redes por entender a situação de emergência. Ao mesmo tempo, na Argentina, e acredito que em muitos outros lugares, foram essas redes feministas e transfeministas as que se colocaram diante das crises, garantindo o aborto durante a pandemia, garantindo redes de alimentação agroecológica, ajudando na área da saúde, construindo locais coletivos de cuidado quando as pessoas não conseguiam trabalho, houve uma mobilização de recursos comunitários, populares e feministas para enfrentar a crise, além de pensar em como outras dinâmicas à nível de saúde, de educação, cuidado e alimento poderiam auxiliar as pessoas. Isso foi muito importante.

Pelo menos a discussão sobre os alimentos aqui na Argentina foi muito importante, ou seja utilizar essa crise para discutir qual é o modelo alimentar depois que o agronegócio e o extrativismo nos prejudicou, e como isso poderia ser confrontado. É também uma discussão de como poder criar instantaneamente outras maneiras de nos alimentarmos, outras maneiras de produzir, outras formas de distribuir esses alimentos.

Mas o mesmo aconteceu com o movimento do feminismo. Ele também realizou um debate muito forte sobre os modelos de vida, sobre dominação nas terras frente os desalojados massivamente, por exemplo, pela crise econômica que não poderia pagar suas contas. Tanto os sindicatos de moradias, quanto os movimentos feministas, disseram não ao desalojamento. Sei que no Brasil também há uma campanha muito forte contra os desalojamentos.

 

Você traz que tais violências são exploradas pelo capital para aumentar sua dominação. Como funciona essa exploração e a dominação sobre as mulheres, como você as descreve sendo uma guerra no e contra os corpos das mulheres?

No livro utilizo como referências autores recentes que tratam a guerra contra às mulheres e os corpos feminizados. E nos faz pensar que esse tipo de violência hoje tem como objetivo predileto, sobretudo em especial às mulheres pobres, de comunidades, migrantes, lésbicas. E também nos permite fazer uma ligação entre seus corpos e os territórios, não somente pensar nos corpos individuais, mas também fazer uma analogia dos ataques do capital sobre certos corpos e territórios.

Nesse sentido, analiso a lógica extrativista e predatória do capital que necessita hoje para sua valorização e, assim, avançar em mais espaços. É uma dinâmica que o capital precisa violentar certas pessoas, certos corpos e certos territórios para estender suas zonas de valorização. Seja porque precisa desapropriar uma comunidade para fazer uma exploração de uma mineradora, seja desalojar uma população para construir um complexo imobiliário de luxo.

 

Gostaria de falar sobre o Ni Una Menos. Qual a importância dessa organização ao movimento feminista e como ele surge na Argentina?

Ni Una Menos é uma organização, um coletivo que surge em 2015 e que vai mudando em distintos momentos. O mais importante é que o Ni Una Menos é um movimento e não somente um grupo de organização. Se tornou transnacional graças às greves. Começa denunciando os feminicídios, dizendo basta, e vai mais adiante nas denúncias de violência de gênero, para primeiro conectar essas violências machistas com as violências econômicas, policiais, racistas e financeiras.

Em segundo lugar, fazermos uma frente defendendo que isso não é uma vitimização. Não somente aqui na Argentina, mas em muitos lugares, estamos acostumadas com essa narrativa vitimista, na qual são inscritos tanto os feminicídios, como os casos avulsos. Eu acredito que tenha sido o movimento Ni Una Menos quem levantou questões de compreensão das violências e das lutas ativas contra essas violências.

 

A América Latina viveu um período de uma onda progressista, mas esse cenário se inverteu com a chegada de conservadores no poder. Como essa contraofensiva se portou diante do movimento feminista?

Creio que há uma contraofensiva maior por que há uma aliança entre o neoliberalismo e o conservadorismo. Esses níveis de violência que vemos neste momento é em decorrência de uma crise do capital. Temos uma crise do capital desde 2008 para cá. Mas o que vemos frente à mobilização feminista e da população migrante é justamente uma resposta de tipo neofascista, que tenta questionar a crise econômica por meio do medo e do fantasma da seguridade e constrói como inimigo interno essa população.

E se soma a esses elementos o fundamentalismo religioso. Então, creio que há um tríplice dimensão entre uma maior brutalidade econômica e estas formas, que encontram nos governos neoconservadores, de extrema direita ou neofascistas o complemento necessário para avançar contra certas resistências.

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