Políticas do amor: bell hooks e o direito de amar

Mergulho nas reflexões de hooks nos mostra que há várias outras formas de amor para além da ideia de amor romântico, alvo único de proteção do Estado

Por Paulo Fernando Soares Pereira
Publicado na Carta Capital

 

A morte de bell hooks nos enlutou, mas a pensadora deixou um legado importante e pouco problematizado por juristas: o direito de amar diante das políticas de desafeto das quais a população negra costuma padecer. Em Tudo sobre o amor: novas novas perspectivas, hooks informa que o amor tem um caráter de transformação social.

Quando se pensa em sujeitas/es/os subalternizados, que estão na zona do não ser, o amor geralmente é perspectiva distante, permeada pela desrealização. Obviamente, na zona do ser, o amor romântico é afagado pelo Direito, sobretudo o Civil e sua contratualização e securitização dos afetos. Logo, àquelas/es que nada têm (propriedade ou outros bens mercantilizáveis, como o próprio corpo e suas escriturações de raça, capacidade, gênero, biologicidade etc.), o amor é permeado pela precariedade de garantias jurídicas. Como nos ensina Byung-Chul Han, em Agonia de Eros, na sociedade do desempenho, o amor deixa de ser ação, narração, sequer é drama, não passando de emoção ou excitação inconsequente.

Isso ocorre porque a visão prevalecente sobre o amor é bem engendrada pelo Direito. Porém, essa proteção é o amor romântico, perspectiva que despreza outras formas de amar. Da leitura do livro Por que amamos? O que os mitos e a filosofia têm a a dizer sobre o amor, de Renato Noguera, compreendemos de como a construção de vários direitos, vida, liberdade, família etc., têm ligação com as garantias que o sistema jurídico dá implicitamente à forma de amor hegemônica: ocidental, branca, monogâmica, cis heteronormativa, capacitista e etarista.

Nesse contexto, hooks, em Tudo sobre o amor, evidencia outras formas de amar e que o amor romântico, essa clausura que somos ensinados a toda hora a apreender, sem nenhuma proteção jurídica quanto aos seus malefícios, precisa ser debatido.

Um dos argumentos mais fortes quando se discute o amor é que não se pode problematizá-lo em demasia, pois seria algo que apenas se sente. Ora, isso é uma forma de despolitizar o amor e interditar sua reinvindicação jurídica. O amor romântico é pouco questionado por ser baseado em privilégios e concebido para atuar junto às opressões estruturantes de raça, gênero, classe etc. hooks ensina que é preciso colocar o amor em palavras, pois definições são pontos de partida fundamentais para a imaginação e o que não pode ser imaginado não pode vir a ser realizado.

Na perspectiva romântica, as múltiplas e dissidentes formas de amar se tornam perigosas ou criminalizadas (amores precários), pois desestabilizam a sua universalidade afetiva, cujo sistema de complexidade foi reduzido por uma gramática jurídica que sedimentou categorias opressivas validadas como as únicas possíveis.

Se pensarmos o amor em perspectiva política que envolve afetos e o direito de não se afetar inclusive, percebe-se que há espaço para fissuramentos do sistema jurídico, com novas possibilidades que impactem as políticas que negam o exercício do afeto e solidificam a solidão de mulheres negras e pessoas LGBTQIA+, por exemplo, ou que validam a masculinidade tóxica e seus privilégios jurídicos patriarcais.

Juridicamente, talvez o mais interessante não seja dar uma nomeação ao amor e suas múltiplas formas. Pela gramática prevalecente que temos, provavelmente continuaríamos a privilegiar as formas opressoras de afetar e ser afetada/o. Sugere-se, porém, que as discussões jurídicas sobre o/os amor/es passem a ter agenda tão relevante quanto outros direitos, pois se o amor é um anseio tão legítimo quanto à própria vida, o Direito não pode se omitir quanto a isso.

Em uma sociedade desencantada, onde supostamente há a fruição de tantos direitos, deve haver espaço para se discutir o direito de amar, de entender que amar não se funda em forma única e universal. Em Niklas Luhmann, em El amor, o amor não tem pretensão de universalidade como a verdade e, por isso, é capaz de constatar um mundo próximo concreto, o mundo do outro. Também, não se trata de assunto metafísico apenas: amar é dar encantamento à realidade, cujo sentido deve estar ao alcance e e decisão de todas/es/os.

À medida que tomamos conhecimento de sua multiplicidade, passa-se a questionar a monetarização do amor romântico, fiel aliado de sociedades que promovem o cansaço para gerar consumo, através da eliminação da alteridade (hooks alerta que o desamor é uma benção para o consumismo), e a reivindicar proteção às outras formas que escolhemos para amar.

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