Um caso com pelo menos doze mortos é digno de recordação? Depende. Se você é editor de um veículo da mídia, terá de se colocar frente a algumas ponderações. As vítimas eram ricas? No caso, não – então, as chances de publicação caem 50%. Há alguma maneira de dizer que Lula e José Dirceu têm culpa pelo caso? Hum, a gente poderia inventar mais essa, chefe, mas não será fácil – pois então as probabilidades são reduzidas em mais 25%. O caso se passou nos bairros nobres de São Paulo, Rio de Janeiro ou Brasília? Não? Sinto muito, é melhor procurar outro veículo. E terá sorte se encontrar.
As doze pessoas mortas há exatos vinte anos na fazenda Santa Elina, em Corumbiara, não conseguiram preencher os requisitos necessários para que fossem aceitas nas páginas, nos áudios e nos vídeos de boa parte da mídia brasileira. São pobres: dois policiais, um rapaz não identificado e nove sem-terra, entre os quais havia uma criança, Vanessa, assassinada com tiro na barriga. Morreram em Rondônia, estado que não diz nada para gente — e muitos jornalistas. E pertencem a um grupo político capaz de despertar náuseas nos donos e nos principais anunciantes. “Morte de sem-terra? Em Roraima? Qual é?”, terá dito um editor. “É Rondônia, na verdade”, responderia o repórter. “Qual a diferença?”
Ao decidir ignorar o caso conhecido como “massacre de Corumbiara”, os meios de comunicação tradicionais — e também a chamada mídia alternativa — dão mais uma demonstração de descolamento entre a defesa do interesse público e sua realidade pré-fabricada. Algum grande jornal preferiu, neste 9 de agosto, relembrar os 30 anos do lançamento de Rambo II, com Sylvester Stallone matando vietnamitas, a recordar um dos casos mais significativos da transição incompleta do Brasil à democracia.
O curioso é que, à época, veículos de São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília enviaram correspondentes aos locais dos fatos. Folha de S. Paulo, O Estado de S. Paulo, O Globo e Veja debateram a fundo o tema, em vários momentos dando razão à visão dos sem-terra. Em 1995, cumpriram um papel importante à memória do episódio. Depois de duas décadas, é impensável que tornem a fazê-lo.
As redações estão mais desinformadas e muito menores: toda a memória oral garantida por jornalistas da velha guarda foi perdida pelas levas de demissões dos últimos anos. Estão menos interessadas no Brasil como um todo: o que importa é aquilo que pode ser usado contra um partido, uma figura pública, um grupo. E aprofundaram uma trajetória de preconceito que resulta na escolha do assunto de acordo com a renda do envolvido ou o interesse do anunciante em determinada questão.
Deixa-se passar em cinzentas nuvens um episódio central para discutir o presente. Olhando apenas para a questão agrária, o caso de Corumbiara é rico em desdobramentos. O país não avançou nada em termos de desigualdade rural e ainda há muitas mortes de líderes populares: apenas entre janeiro e junho de 2015, foram 23, nos cálculos da Comissão Pastoral da Terra.
Visto de modo mais amplo, o episódio leva a reflexões sobre a privatização de uma narrativa que deveria ser pública e sobre o desinteresse estatal em trabalhar pela construção da memória. O momento que o país vive, farto em exemplos de como a falta de conhecimento histórico provoca a repetição de erros, mais do que justifica que se recorde esta passagem do Brasil pós-ditadura.
Ao mesmo tempo, a indiferença da mídia tradicional faz crescer a importância de iniciativas como a Editora Elefante, que colocam a relevância social, política e cultural de um tema à frente das possibilidades de lucro. A frenética mudança no cenário da comunicação e do jornalismo nos coloca diante da necessidade de incentivar projetos capazes de contar histórias sem se preocupar em proteger privilégios de uns poucos ou interesses dos mais inconfessáveis.
O silêncio da imprensa brasileira em relação ao “massacre de Corumbiara” só não foi mais ensurdecedor porque lançamos Corumbiara, caso enterrado, um grande trabalho de investigação jornalística do repórter João Peres, com fotos de Gerardo Lazzari. Nos seus primeiros vinte dias de existência, o livro vem cumprindo seu papel: dar a conhecer, da maneira mais ampla possível, a história e os desdobramentos do conflito agrário ocorrido em Rondônia há vinte anos.
Se o massacre, em si, não despertou interesse dos jornais e jornalistas do país, o lançamento de Corumbiara, caso enterrado chamou a atenção de muitas pessoas – e garantiu que vários veículos registrassem, embora lateralmente, essa tragédia brasileira: Pública, Outras Palavras, Fórum, Amazônia Real, Carta Capital, Le Monde Diplomatique, entre outros, dedicaram resenhas e entrevistas à aparição do livro. Na mídia tradicional, CBN e El País abordaram o assunto com competência na semana do lançamento. Além, é claro, da imprensa de Rondônia, que todos os anos recorda o episódio.
O trabalho da Editora Elefante rapidamente se transformou em instrumento para os que desejam abordar o assunto. Foi importante para que muitas pessoas se lembrassem do caso, e para que outras tantas o conhecessem. Já fomos convidados para debates em universidades de Rondônia, São Paulo e Minas Gerais. Vamos, assim, somando uma rede movida por bons interesses, disposta a unir forças contra o esquecimento — e contra as injustiças e desigualdades que provoca Brasil afora.