Por Leonardo Neiva
Publicado em Revista Gama
Quando falamos em traição, uma das primeiras coisas que vem à mente é um namoro ou relacionamento monogâmico em que uma das partes acabou pulando a cerca. Embora o tema ainda seja cercado de estigmas e tabus na sociedade brasileira, uma pesquisa recente do app Gleeden mostrou que o país está no topo do ranking de traições da América Latina, com oito em cada dez brasileiros confessando já ter botado chifres no companheiro em algum momento da vida.
O que configura uma traição, no entanto, vem se tornando algo cada vez mais difícil de definir conforme o próprio status e as regras dentro dos relacionamentos vão se tornando mais flexíveis. E é na discussão desses dilemas sobre o que funciona e não funciona, o que é certo e o que é errado em formas alternativas de se relacionar que a escritora e educadora sexual estadunidense Janet W. Hardy, 68, foi pioneira.
Ao lado da amiga Dossie Easton, terapeuta especializada em sexualidades alternativas, ela publicou em 1997 o livro “Ética do Amor Livre” (Elefante, 2019), um guia para navegar pelas particularidades de relacionamentos abertos e poliamorosos numa época em que quase ninguém tocava no assunto. “Pouquíssimas pessoas reconheceram a palavra poliamor, tiveram qualquer experiência com relacionamentos abertos ou outro tipo de não-monogamia consensual”, relembra Hardy em entrevista a Gama.
Envolvidas com o universo BDSM — sigla para práticas como bondage, dominação, submissão e sadomasoquismo —, tema sobre o qual escreveram uma série de livros em parceria, elas perceberam que precisavam abordar relacionamentos alternativos à monogamia ao entender que formas mais abertas de se relacionar ainda assustavam muita gente.
A própria Hardy, apesar de ter sido uma autodeclarada promíscua no período da faculdade, chegou a viver por mais de uma década um casamento heterossexual e monogâmico nos moldes tradicionais. “Depois de 12 anos de casamento, descobri que eu não queria mais ser monogâmica, e ele sim. Então nos separamos como amigos e continuamos amigos até hoje”, conta a escritora.
Depois disso, nunca mais se comprometeu com a monogamia, embora diga que tem seus períodos mais e menos ativos sexualmente. Hoje, ela tem dois filhos adultos, é casada e se define como alguém que transgride gêneros e sexualidades, sem se limitar a uma única descrição.
Na conversa com Gama, Hardy trata da onipresença do pensamento monogâmico, da noção de cuidado dentro de comunidades poliamorosas e maneiras de iniciar a difícil conversa sobre abrir um relacionamento.
G |A sociedade ainda tem muita dificuldade para lidar com relacionamentos abertos e poliamorosos? Ou isso mudou?
Janet Hardy | Mudou muito. A primeira edição do “Ética do Amor Livre” saiu em 1997. Naquela época, quase ninguém sabia do que estávamos falando. Pouquíssimas pessoas reconheceram a palavra poliamor, tiveram qualquer experiência com relacionamentos abertos ou outro tipo de não-monogamia consensual. Nesse quarto de século, virou parte da cultura e do diálogo. Antes, a maioria dos nossos leitores eram pessoas que não estavam no mainstream, alguns hippies mais velhos e membros da cultura geek. Hoje, nosso público é composto por pessoas de todas as idades, raças e classes. E, claro, há mais informações disponíveis agora do que há 25 anos.
G |Para você, foi desafiador se libertar do pensamento monogâmico? Pode falar desse processo?
G |Você assumiu conscientemente o papel de porta-voz da não-monogamia? Como isso aconteceu?
G |Com tantos tabus e constrangimentos em torno da traição, fica difícil falar de uma ética do amor livre?
G | No Brasil, a traição carrega um estigma forte que acaba moldando muitos relacionamentos. Fatores como a cultura e a faixa etária influenciam o debate?
G |Apesar dos avanços, começar uma conversa com o parceiro sobre abrir o relacionamento ainda é desafiador? O que você sugere?
JH | Se prometi ao meu parceiro que não faria sexo anal com mais ninguém e eu faço, isso é uma traição. Considero que traição é tudo aquilo sobre o que você precisa mentir para o parceiro. Pode não ter nada a ver com sexo ou romance. Se você jurou que tinha parado de fumar, mas traga um cigarrinho escondido, é uma traição. Portanto, o monogâmico pode ser totalmente fiel e o poliamoroso trair. Uma coisa não tem a ver com a outra.
G |É mais uma questão de honestidade, sinceridade?
JH | Quando as pessoas pensam em relacionamentos alternativos, nunca ocorre que podem ser consensuais. Num encontro que fizemos com escritores, uma mulher na plateia me disse que não se sentia confortável com a ideia de um relacionamento aberto porque, para ela, as pessoas estariam traindo o parceiro o tempo todo. Argumentei que, se todos os envolvidos sabem e concordam, então não há traição, algo em que ela nunca tinha pensado.
G |Como funcionam essas relações dentro de relacionamentos poliamorosos?
JH | Tenho uma teoria de que o poliamor se tornou popular nas últimas duas décadas porque começamos a reconhecer que a família nuclear não funciona muito bem em termos de comunidade. Principalmente agora que quase todos os casais têm empregos e carreiras separados. Nas culturas pré-industriais, as pessoas tinham família, vizinhos, irmãos mais velhos que não eram casados, e todos se ajudavam. Hoje perdemos isso, então é excelente ter uma ajuda extra. Dossie sofre de problemas sérios na coluna e passou por duas cirurgias que a deixaram de molho por meses, mas ela não ficou sozinha nem um minuto. Seus amantes, os amantes de seus amantes e até os amantes de seus filhos se revezaram para garantir que alguém estaria lá para ajudá-la a subir e descer escadas, tomar os remédios, entre várias outras coisas. Esse é um potencial da não-monogamia que não vemos com tanta frequência, mas é uma das maiores vantagens.
G |No livro, vocês dizem que trair é algo relativamente comum e nem sempre um sintoma de problemas no relacionamento. Por que traições acontecem mesmo quando tudo está bem?
G |Pode acontecer de alguém propor abrir a relação sem estar disposto a dar a mesma liberdade ao parceiro? Relacionamentos abertos com esse desequilíbrio são comuns?
JH | Na comunidade poliamorosa, pode acontecer de o homem dizer para a parceira: você pode dormir com a mulher que quiser, só não com outro homem. Isso enfraquece a parceira na relação e precisa ser evitado. Quando ouço algo assim, me parece que o homem não acha que sexo entre mulheres conta. Tenho muitos exemplos que contrariam essa ideia. Mas relacionamentos onde apenas um parceiro tem liberdade para explorar podem funcionar. É um dos padrões mais difíceis, mas acontece de dar certo, principalmente quando há uma grande disparidade de libido. Se uma pessoa precisa de mais sexo que a outra, é uma forma de evitar que a relação desmorone. Afinal, quantos casais você conhece cuja libido evoluiu de maneira absolutamente paralela ao longo da relação? Não muitos.
G |Como conversar sobre esses ajustes na relação que parecem ficar no meio do caminho de um relacionamento aberto?
JH | Um erro que muitos cometem é pensar que vai ser uma decisão preto no branco, ou somos monogâmicos ou somos abertos. Há uma série de áreas cinzentas. O jornalista e escritor Dan Savage, criou a palavra “monogamish” para definir a relação que tem com seu parceiro. Eles ocasionalmente convidam uma terceira pessoa para a cama, mas depois voltam a ser monogâmicos. Sair com um profissional do sexo também pode ser uma zona cinzenta. Se o que você busca é um relacionamento totalmente aberto, isso não existe. Todo mundo tem seus limites.
G |E quando os dois parceiros não estão numa mesma sintonia sobre o tema?
JH | Quando a pessoa quer fazer algo mais ousado, comece com uma coisa pouco ameaçadora. Se for mais fácil ou mais difícil do que imaginava, vocês têm que sentar e conversar sobre isso e se gostariam de fazer algo diferente da próxima vez. Abrir um relacionamento exige uma quantidade enorme de conversas e reflexões. Em qualquer relacionamento, haverá uma pessoa que deseja abrir mais e outra que prefere restringir. Minha dica é dar um passo que seja ousado para o parceiro mais conservador e restrito para o menos conservador. Quando ambos estão toleravelmente desconfortáveis nessa fase, é o ideal. Se uma pessoa se diverte demais e a outra está infeliz, algo está errado. É hora de parar e reconsiderar.
G |De fato, cada relação tem suas próprias regras e definições?
JH | Fizemos um workshop antes de escrevermos o livro, em que perguntei à plateia quem se considerava monogâmico. Uma das mãos que se levantaram pertencia a uma mulher dentro da qual a minha mão tinha entrado na noite anterior. Obviamente, eu não iria expô-la na frente do público, mas fui conversar com ela depois. Descobri que ela e o parceiro só podiam ter relações sexuais de pênis com vagina entre eles. Qualquer outra coisa estava liberada com outras pessoas. Para eles, aquele era um relacionamento monogâmico.Não seria para mim, mas isso não importa. O que vale é o que funciona para os envolvidos.
G |Hoje, como são as conversas que você tem sobre o tema?