Por Regina Célia Lima Xavier
Publicada na Revista Afroasia
Nos idos anos 1988, a Revista Brasileira de História publicava uma tradução da narrativa de Mahommah G. Baquaqua e discutia novas abordagens sobre a escravidão no Brasil, em um diálogo profícuo com a historiografia norte-americana. Ao se destacar o protagonismo dos escravizados, a narrativa de Baquaqua seria sublinhada como uma oportunidade de se adentrar no “mundo da escravidão pelas mãos de alguém que a havia experimentado na própria pele”. Com a publicação de documentos, buscava-se demonstrar a riqueza das fontes históricas, apesar de termos, diferentemente da historiografia estadunidense, uma “escassez de testemunhos escravos diretos” sobre a escravidão no Brasil. A narrativa de Baquaqua, única conhecida no contexto brasileiro, teve na ocasião um grande impacto. De lá para cá, os estudos sobre este tema, principalmente sob a ótica da história social, percorreram um longo caminho, com pesquisas cada vez mais inovadoras no quadro da expansão dos cursos de pós-graduação.
É nesta tradição e no interior destes debates que podemos inscrever o livro de Rafael Domingos Oliveira. Em seu prefácio, o historiador Jaime Rodrigues soma acertadamente a esta tradição historiográfica a importância do vínculo deste debate acadêmico a outras redes de discussão, recuperando a força do debate público sobre o tema. Essa perspectiva, sem dúvida, no contexto político em que vivemos, representa a primeira contribuição importante do livro aqui resenhado, ao analisar as autobiografias de escravizados para o leitor brasileiro conectando-as, inclusive, à luta contra o racismo.
A escolha feita por Oliveira é corajosa, tendo em vista a complexidade do tema, principalmente no âmbito da pesquisa para uma dissertação de Mestrado, que esteve na origem deste livro e que em geral resulta de um prazo reduzido de investigação. Isso, no entanto, não prejudica o alcance e a maturidade da abordagem. O autor percorre com segurança as discussões intrínsecas ao tema na bibliografia dos Estados Unidos e do Brasil, inscrevendo sua análise em uma perspectiva atlântica. E não podemos deixar de mencionar, ainda, a qualidade da escrita, clara e ao mesmo tempo erudita. Estou certa de que, ao oferecer um texto de fácil e de prazerosa leitura, traz uma outra grande contribuição que é tornar mais acessível os estudos deste campo para um público ampliado. O livro, por fim, é muito bonito e bem editado. O livro é apresentado por Marco Farias e prefaciado por Jaime Rodrigues. Conta com uma introdução, quatro capítulos e “palavras finais” (conclusão). Soma, ainda, dois cadernos, um contendo um repertório biográfico dos autores e autoras das autobiografias e outro iconográfico.
No primeiro capítulo, o autor apresenta seus objetivos e as justificativas dos recortes com os quais opera. Não deixa de ser surpreendente que, consciente da vasta bibliografia sobre o tema, ele escolha um certo número de autobiografias para discutir: ao lado das experiências de Baquaqua no Brasil e de Manzano em Cuba, apresenta outras dezenove autobiografias no contexto dos Estados Unidos e da Inglaterra, em um período de longa duração, 1770 a 1890. Segundo nos explica o autor, os títulos escolhidos priorizaram esta amplitude temporal e espacial porque ele quis enfatizar mais o contexto de produção deles e suas transformações do que fazer a exegese de seus conteúdos ou uma classificação temática. Ainda assim, parece importante destacar como as narrativas escritas em determinados períodos compartilharam algumas preocupações, tais como a conversão religiosa, eixo central nas narrativas de 1770 a 1820, o abolicionismo, nos anos 1820 a 1860, ou o fim da escravidão e a reconstrução nacional, no período subsequente. Ao citar essa dimensão, o autor pondera que a classificação e recortes cronológicos, se por um lado auxiliam a organizar os textos, por outro, não devem limitar a leitura a uma análise interna, estrita, das narrativas, sob o risco de desconectá-las de seus significados históricos mais amplos.
Certamente por ser motivado por essa perspectiva, sobretudo nos dois primeiros capítulos, o autor se distanciou do campo da crítica literária e se dedicou a tecer uma fina relação entre os textos e os contextos históricos que lhes deram origem. Embora desta perspectiva seja justificável este distanciamento, por outro lado, ela resultou em algumas dificuldades. Ao não se restringir a análises que dissequem as narrativas em suas estruturas e/ou na abrangência de seus temas, correu o risco de apresentá-las de forma pontual, fragmentada. Levando em conta que, segundo o autor, as narrativas, em geral, são pouco trabalhadas pela historiografia brasileira e praticamente desconhecidas do grande público, isto poderia ser um obstáculo importante para um maior descortino delas por parte dos seus leitores. A solução encontrada está no final do livro, no caderno em que apresenta um repertório das autobiografias analisadas. Ali se tem uma brevíssima síntese delas, juntamente com a referência bibliográfica. Este recurso, embora não esgote a questão, é muito bem utilizado, inclusive por não quebrar o ritmo dos capítulos.
O livro se ressente, contudo, do uso econômico de notas explicativas. Cito, apenas como exemplo, a famosa trajetória de Sojourner Truth analisada no segundo capítulo e ausente daquele repertório final. Em casos como este, uma nota poderia esclarecer melhor o leitor sobre a publicação e/ou debates mais amplos em torno da trajetória citada. Decerto, as notas poderiam, ainda, assinalar outros temas e debates não enfatizados na análise ao longo do livro, mas presentes na bibliografia especializada, como forma inclusive de indicar ao leitor futuras possibilidades de pesquisa.
Ao analisar um número expressivo de autobiografias e ao percebê-las como um gênero literário, tendo em vista algumas características que elas têm em comum, Oliveira destaca que, não obstante, não as analisa como se compusessem um conjunto documental homogêneo, pois elas são percebidas a partir da relação necessária entre texto e contexto, no que ele chamou de um “processo social” de produção da escrita. Dentro desta perspectiva, alguns pontos se tornaram essenciais à sua análise: a forma como os sujeitos se constituíram nas autobiografias; como, através das narrativas, autores e autoras atuaram no mundo real; como as autobiografias estavam conectadas a projetos de vida, percepções sociais e programas políticos e, por fim, como elas se inseriram em campos ideológicos em disputa. Premissas como estas norteiam a análise do segundo capítulo e abrem caminho para investigações temáticas mais pontuais desenvolvidas nos dois capítulos seguintes.
Um bom exemplo é a análise da autobiografia de Solomon Northup, 12 anos de escravidão, na qual a relação entre narrativa e contexto foi desenvolvida. Oliveira descreve um quadro de mudanças econômicas estruturais, o processo de industrialização, de crise moral, a ascensão da campanha abolicionista, mudanças na percepção dos sentidos da escravidão e debates contra o tráfico transatlântico de cativos. Ao analisar autobiografias como a de Northup, o historiador pontua o quanto elas revelaram para um público leitor branco, sensível a este contexto de mudanças conjunturais, personalidades negras que através de suas experiências de vida terminavam por construir representações que incidiam diretamente no combate aos estereótipos que as teorias raciais construíam a respeito delas. Auxiliavam, assim, na construção de um discurso que recuperava suas humanidades e potencializava suas demandas por igualdade. As autobiografias historicizavam os sujeitos negros ao inscrevê-los de forma diferenciada nos embates sociais.
As experiências desses negros, por sua vez, foram diversas. Entre as autobiografias conhecidas, por exemplo, são relativamente poucas aquelas escritas por mulheres. Compreender as trajetórias específicas delas complexifica todo este quadro analítico. Oliveira não se esquiva desse desafio ao mencionar suas vivências e transcrever textos fortes de Sojourner Truth e Harriet Ann Jacobs. Em sua análise, o autor destaca questões de gênero e raça, e o quanto a escrita daquelas autobiografias esteve entrelaçada com a ação política no interior das demandas do movimento por direitos das mulheres, tematizando a especificidade das mulheres negras escravizadas. Mais uma vez, o engajamento social, a construção dos sujeitos e o alcance das autobiografias na história são problematizados. Vale ressaltar, ainda, que a abordagem de Oliveira, ao abrir o tema à reflexão, incentiva o aprofundamento do debate em pesquisas futuras. Instiga, indiretamente, o leitor mais interessado a densificar questões que permaneceram em aberto, tais como a sexualidade, a violência masculina, a maternidade, o protagonismo das mulheres e suas escolhas na construção de laços afetivos e familiares, entre outros aspectos.
A iconografia como linguagem, citada ao longo do livro e destacada em um de seus cadernos ao final do volume, reforçam o debate sobre campos ideológicos em disputa, aprofundando a questão de gênero, além de outras, tais como a autenticidade e a veracidade das autobiografias. Apresenta, por fim, a iconografia como fonte para novas pesquisas.
A íntima relação entre texto e contexto é também sublinhada a partir da própria construção dos relatos, uma vez que muitos deles foram ditados pelos escravizados ou libertos a abolicionistas e editores brancos, ou foram por estes transcritos, prefaciados, editados.
Neste ponto, Oliveira enfrenta o longo debate, desenvolvido tanto pelos estudos literários quanto pela historiografia, relativo à autenticidade das autorias ou mesmo dos fatos narrados. E o faz de duas formas. A primeira, ao estabelecer um diálogo crítico com a noção foucaultiana que circunscreve a constituição do sujeito a um processo de consciência de si, essencial para a formação do indivíduo moderno. Se este conceito o auxilia a compreender elementos pertinentes à autonarratividade, por outro lado, ele se distancia bastante desta perspectiva ao pensar um sujeito que constitui sua identidade a partir, primordialmente, da ação social. Desta feita, Oliveira tensiona a relação entre a constituição do indivíduo e sua relação com a coletividade. Neste ponto, acrescentamos a segunda forma com a qual Oliveira enfrenta este debate: ao se referir à “ilusão de verdade” ele evita cair na armadilha de sugerir uma correlação direta e não mediada entre as experiências narradas e a realidade.
Duas narrativas embasam de forma exemplar seus argumentos. Ao citar a autobiografia de William Grimes, defende a ideia de que ali o relato da resistência à escravidão extrapolava a especificidade das vivencias individuais e só ganhava sentido na medida em que era capaz de ser compartilhado socialmente. Este sujeito e suas ações, forjados nesta relação com o outro, inscrevia a escravidão, por exemplo, em um processo de construção social que, a seu turno, combatia qualquer tentativa de essencialização do sujeito escravizado. Esta perspectiva analítica fica mais clara quando Oliveira menciona o debate em torno da auto-biografia de Olaudah Equiano, no qual Vincent Carretta e Marcus Rediker discutem sobre a veracidade da origem de Equiano na África. A autenticidade, para Oliveira, deixa de ser central ao se considerar que esta narrativa pode conter o relato de experiências e memórias compartilhadas pelo narrador com outros escravizados. Neste sentido, os textos são percebidos como escrituras concebidas na pluralidade de vozes, o que não diminui os sentidos sociais que adquiriram, inclusive no embate contra o tráfico e a escravidão.
Esta forma de compreender os relatos foi primordial para a análise nos dois capítulos finais. A África surge no capítulo 3 como objeto de representações distintas e muitas vezes em conflito. Se seu território já era conhecido no mundo branco ocidental, as representações dela eram diversas na medida em que foram alimentadas por descrições de missionários, aventureiros, comerciantes, entre outros, que a descreviam muitas vezes vincu-lada à natureza exuberante, ao mundo selvagem, a populações dispersas e desorganizadas socialmente, resultando num julgamento bastante negativo dos povos africanos. Essas representações tendiam, por sua vez, a se confrontar com uma África, até certo ponto também imaginada, cons-truída pelos africanos em uma plura-lidade de vozes e na intersecção de vivências diversas, tais como narradas nas autobiografias. Ao enquadrar as percepções sobre o continente nessa perspectiva, Oliveira evita mais uma vez a “ilusão da verdade” ao politizar os textos e a ação dos sujeitos. Afinal, como explica ele, nas autobiografias os autores descreveram sociedades africanas organizadas, hierarquizadas, reguladas por sistemas de justiça, com usos e costumes próprios, nas quais existiam inclusive distintas formas de escravização. Para além da materiali-dade de seus relatos, manejavam-se ali linguagens e argumentos capazes de serem entendidos nos confrontos e/ou negociações com a sociedade branca dominante. Ao oferecer imagens alter-nativas, tendo em vista as acepções negativas construídas pelo colonizador branco, terminavam apresentando uma poderosa arma de combate político e uma forte denúncia do poder devastador do tráfico e da escravidão atlânticos nas sociedades africanas. No mesmo movimento, tensionavam as categorias étnicas nas quais os africanos eram enquadrados a partir do tráfico, resga-tando através da memória suas origens, suas identidades, sua humanidade. Neste sentido, as autobiografias representam um forte aporte à reflexão sobre a história da África e da escravidão.
O segundo tema tratado neste capítulo refere-se à descrição do processo de escravização ainda na África e o tráfico transatlântico. Mais do que nos capítulos precedentes, Oliveira oferece ao leitor uma rica descrição dessas experiências, apresentando de forma mais detalhada aquelas vividas por Mahommah Baquaqua, Olaudah Equiano, Venture Smith, Jeffrey Brace, James Gronniosaw e Ottobah Cugoano. Ao analisar estes temas, revela dinâmicas complexas, nas quais atuavam, em uma relação de forças desigual, sujeitos distintos dentro do contexto da colonização. Desta forma, o leitor se depara com a violência colonial dos processos de escravização e com os horrores da travessia atlântica, perpassada por doença, fome, morte. Dentro desse quadro, conhece ainda o protagonismo dos povos africanos, suas diversidades sociais, culturais, linguísticas. Ao evitar perspectivas simplificadas ou dicotômicas, Oliveira recupera sentidos próprios e históricos da atuação das elites africanas frente à intervenção europeia, problematizando, inclusive, o papel que elas desempenharam no tráfico. Tema este trabalhado com grande sensibilidade, trazendo uma perspectiva atlântica complexa, centrada tanto nas mediações sociais e políticas, quanto em uma cultura de resistência forjada na experiência da escravização e do tráfico.
O protagonismo expresso nas autobiografias foi retomado no último capítulo, no qual Oliveira discute os significados da liberdade e seus impactos no processo de reconstrução da nação norte-americana. Ao descrever tormentos tais como a ruptura de laços familiares, maus tratos, fugas recorrentes e lutas para escapar do cativeiro, o historiador sublinha o quanto trajetórias individuais foram marcadas por articulações e organizações coletivas. Neste quadro, descreve as iniciativas na formação de irmandades e associações de auxílio mútuo, na atuação nos debates públicos, nas publicações na imprensa, nas articulações com associações e movimentos abolicionistas. Este aspecto é importante para Oliveira na medida em que havia significados próprios de liberdade, igualdade, direitos sociais e políticos que, por sua vez, imprimiam percepções e pautas específicas relativas à inclusão, deles e de seus projetos de nação, nas disputas políticas em curso. Exemplar, neste sentido, foram os poderosos discursos de Frederick Douglass, transcritos neste capítulo. Resguardar nas trajetórias de seus autores os significados de liberdade e de nação complexifica a relação entre autobiografia, movimento abolicionista e reconstrução nacional, principalmente após guerra civil nos Estados Unidos.
Certamente o leitor encontrará neste livro muitos outros aspectos aqui não observados e poderá se inspirar na força das autobiografias. Elas contêm muitas vozes, entrelaçam condições sociais, cores, etnias, gêneros, identidades, em um universo sempre passível de ser (re)descoberto. Engana-se quem pensa que as narrativas escravas remetem apenas à história estadunidense. A negociação entre tradições orais e escritas, a importância da memória e a conquista do letramento, a possibilidade de interpor e (re)criar tradições, a luta contra a escravidão, enfim, a capacidade de revelar a potência das ações humanas frente às mudanças sociais, na forma como interagem e transformam as estruturas, dentro do contexto da escravidão e da liberdade, são dimensões importantes que possibilitam às autobiografias extrapolarem recortes estritos. Elas aproximam Baquaqua, Equiano e outros de personagens como o Alufá Rufino, para citar apenas este exemplo. Afinal, nas autobiografias, ao nos confrontarmos com tradições africanas, americanas, caribenhas, podemos ao mesmo tempo estranhar e reconhecer-nos nesses relatos. Ao aguçar nossa percepção sobre quem somos, esse exercício constitui a última contribuição do livro de Oliveira que quero sublinhar.