Sempre fomos modernos
Pode parecer, à primeira vista, que o que pensaram e fizeram alguns influentes intelectuais ingleses do século XVI nada tem a ver com a realidade brasileira, hoje. Mas essa suspeita se desfaz logo nas primeiras páginas de Discurso filosófico da acumulação primitiva, em que Pedro Rocha de Oliveira demonstra a imensa atualidade das ideias desenvolvidas, naquele então, no país que inventou o capitalismo — e, claro, de sua aplicação prática, pela força, ao resto do mundo. Para isso, o autor mergulha na obra dos três principais pensadores do Renascimento inglês: Francis Bacon (1561-1626), considerado o inventor do método científico; Thomas More (1478-1535), criador do termo “utopia” e tornado santo pela Igreja; e Thomas Smith (1513-1577), quem primeiro cunhou o termo “civil society”.
Mas Pedro Rocha de Oliveira não se limita aos escritos dos pais fundadores da modernidade: aborda também a trajetória biográfica de cada um e revela o contexto político, econômico e social em que viveram. E é por isso que este livro é relevante para além dos círculos acadêmicos de especialistas: ao juntar as dimensões filosóficas, sociológicas e históricas que circundaram o universo de Bacon, More e Smith, o autor escapa às armadilhas em que, antes dele, caíram outros estudiosos, cujo entusiasmo pelas ideias revolucionárias desses pensadores fez com que ignorassem — ou omitissem — aspectos no mínimo constrangedores de suas vidas.
Como se estivesse voltando no tempo com o slogan “o pessoal é político” debaixo do braço, Discurso filosófico da acumulação primitiva faz questão de lembrar que Francis Bacon supervisionava torturas, que Thomas More tinha um pelourinho no quintal de casa e que Thomas Smith era um entusiasta da submissão do povo irlandês. Todos eram favoráveis à expansão colonial inglesa e abominavam qualquer ideia de igualdade. Longe de tomar tais fatos como mera anedota, desvios de percurso de homens presos aos valores de seu tempo, Pedro Rocha de Oliveira argumenta exaustivamente no sentido de sinalizar a imensa coerência entre a vida e a obra desses filósofos tão festejados pelo brilhantismo com que idealizaram um mundo novo.
Ou seja, desde suas origens, e propositalmente, a modernidade capitalista sempre exigiu que uma grande parcela da população fosse descartável: os camponeses expulsos de suas terras na Inglaterra para dar espaço às ovelhas cuja lã movimentaria o primeiro impulso da industrialização; os vagabundos mandados para a prisão ou para povoar os territórios do além mar; os nativos das possessões europeias ao redor do mundo. Nenhum desses ilustres pensadores se opôs às barbáries cometidas em nome do progresso e da civilização que defendiam em seus escritos; pelo contrário, tiveram envolvimento direto em decisões que levaram à morte e à miséria populações inteiras, dentro e fora da Inglaterra.
Longe de ser um mero acidente ou desvio de percurso das ideias inovadoras que alardeavam, tais acontecimentos se mostraram necessários para os seus objetivos políticos e intelectuais. A figura do cinocéfalo, o homem com cabeça de cachorro que ilustra a capa da edição de Discurso filosófico da acumulação primitiva, representa bem essa ideia: ele oferece, com as mãos, os argumentos e o diálogo, e, com os dentes afiados, obriga seus interlocutores a se submeterem, caso contrário enfrentarão as consequências.
Este aprofundado estudo é acompanhado de um posfácio em que Pedro Rocha de Oliveira mobiliza suas conclusões sobre as origens da modernidade para interpretar a ascensão da chamada nova direita no Brasil, pontuando as diferenças que guarda em relação aos partidos e movimentos políticos tradicionais, conservadores ou progressistas, todos herdeiros e perpetuadores das principais ideologias excludentes da modernidade. Uma das grandes inovações desse setor político em ascensão é expandir os limites da guerra civil, ao incluir entre os alvos do sistema setores da população que até então eram considerados cidadãos, como a classe média branca, artistas e intelectuais.
Assim, a leitura de Discurso filosófico da acumulação primitiva amplia a compreensão da profunda crise que vivemos, descartando a efetividade de qualquer possibilidade de mudança que não passe por um rompimento total e definitivo com as prerrogativas da modernidade desenhadas pelos pensadores do século XVI e ainda tão em voga da esquerda à direita do espectro político.