Por Antonio Lino
Fotografia Araquém Alcântara
Como aconteceu durante os sete anos em que trabalharam juntos na Venezuela, dr. Jorge Chaves e dra. Yudaimi Vera voltam a deixar o Buick Oldsmobile vermelho e branco, ano 55, estacionado em Cuba. O dobermann de estimação também não veio. Como consolo, o casal de médicos adotou um tigre de pelúcia, enorme, que descansa deitado sobre as patas, ocupando os dois lugares do sofá da sala.
Na cozinha, a dona da casa prepara o congrí, uma espécie de baião-de-dois caribenho, acrescido de bacon na mistura de arroz com feijão preto. E enquanto não sai o jantar, na varanda do apartamento, admirando a vista do quarto andar, brindo uma cerveja com o dr. Jorge. Lá fora, desde a tarde, o município de São Gabriel, no interior do Rio Grande do Sul, segue tomando uma boa ducha fria.
Persistente, a chuva do domingo deságua na terça-feira. No bairro Élbio Vargas, por volta das oito da manhã, a faxineira empunha um rodo contra as poças cheias à entrada do posto de saúde. Pontualmente, os médicos cubanos chegam para começar o expediente.
Passando ao largo da plaqueta amarela, aberta como advertência sobre o piso molhado, dr. Jorge e dra. Yudaimi cumprimentam a moça da limpeza, desejam bom dia às recepcionistas, se misturam à roda animada dos agentes comunitários de saúde, trocam gracejos afetuosos com as enfermeiras, e assim seguem juntos pelo corredor, distribuindo cordialidades aqui e ali, até que se despedem com uma bitoca, entram em seus respectivos consultórios, porta-a-porta um com o outro, e tomam assento para receber os pacientes… que não vêm.
À espera da estiagem, muita gente faltou aos agendamentos ou aguentou o mal-estar em casa. A meteorologia operou o inusitado: médicos aguardando sua vez de atender. Dra. Yudaimi, que em média realiza entre dez e quinze consultas antes do almoço, aproveita o recesso incomum para despachar um formulário deitado desde ontem sobre sua mesa.
Dedos floridos seguram a Bic: como ornamento, sobre as unhas azuis da doutora, a manicure pintou margaridas minúsculas. Os cabelos pretos, lisos, escorrem até os ombros, emoldurando o rosto maquiado naturalmente por um tom moreno. O batom rosa claro destaca seus lábios finos: sem exagero, as cores da vaidade não chegam a macular a austeridade branca do jaleco.
Eu é que atrapalho a concentração da médica, debruçada sobre o relatório clínico. Apontando os talonários empilhados ao seu lado, pergunto-lhe sobre a burocracia brasileira.
– Estou acostumada. Na verdade, em Cuba a gente preenche mais papel que aqui. Os prontuários lá são grossos assim, tem registro até do nascimento do paciente. Aqui, tem gente abrindo ficha só agora, já com idade.
É o caso de Amadeu Brabos. Aproveitando que o dilúvio amansou à condição de garoa, o senhor de 70 anos (“e quatro meses”), um “guri da terceira idade”, segundo o próprio, chega ao posto de saúde procurando o dr. Jorge. A anamnese é rápida. Amadeu havia se consultado na véspera. O retorno é só para trocar o curativo.
– Bah, de ontem pra hoje melhorou setenta por cento. Voltei até a mexer os dedos do pé, olha só.
Ao lado da maca, dr. Jorge observa a enfermeira desenrolar as bandagens usadas em volta do tornozelo esquerdo do garçom aposentado, que nos anos 1970 trabalhava de fraque e luvas brancas, com uma mão equilibrando a bandeja de prata e a outra nas costas, “estilo diplomata”, servindo nacos de faisão à elite carioca, em banquetes de gala no Iate Clube.
No Hotel Luxor, Amadeu aprendeu idiomas para melhor atender os hóspedes estrangeiros. Tendo viajado “o Brasil inteiro”, o gaúcho grisalho e conversador, natural de Rosário do Sul, admite que já foi “muito agitado”, mas garante que não fuma nem bebe mais:
– Depois de velho, tomei tenência no corpo.
É quando a enfermeira termina de desmanchar o curativo. No mesmo instante, dou um passo involuntário para trás, desvio o olhar. E, pela primeira vez desde que nos conhecemos, vejo uma expressão de contrariedade se instalar no semblante invariavelmente bonachão do dr. Jorge. O motivo é o tornozelo de Seu Amadeu, quase todo rodeado pelas carnes expostas de uma ferida profunda.
Para reter a atenção do paciente inquieto, o médico cubano dirige um olhar firme para dentro dos óculos de Seu Amadeu, e repete as prescrições da véspera como uma indisfarçada reprimenda, reforçando a importância da renovação periódica das gazes, da disciplina em relação à dieta, da obediência ao repouso absoluto e da correta administração dos medicamentos, para que a circulação periférica ganhe fluência, a úlcera perca sua voracidade atual e, se Deus quiser, para que as veias grossas e rígidas que afloram na panturrilha direita não estourem em nova ferida, passando a lhe carcomer também a outra perna.
Seu Amadeu agradece os cuidados teatralizando uma mesura subserviente, evocada como galhofa de seus tempos de garçom. Então, ao saber da minha profissão de escriba, reforça o ar solene, e faz votos de que, como o arcanjo mensageiro, patrono municipal, eu também remeta ao mundo as boas novas que vim buscar em São Gabriel.
Em seguida, baixa a perna direita da calça esportiva, de tactel preto, escondendo o curativo novo. Abre o guarda-chuva. E sai mancando de volta à rua.
*
Dirceu Santos impermeabilizava o fundo do bote quando o piche quente respingou no seu pé descalço. A pele borbulhou. E durante quase um mês, a queimadura resistiu a cicatrizar. Diante daquela ferida teimosa pegando (literalmente) no pé do paciente, o dr. Yunior Carralero Perez aventou uma suspeita, e pediu os devidos exames para confirmá-la. Dias depois, de dentro do envelope do laboratório, sai a sentença vitalícia:
– Dirceu, você é diabético.
O diagnóstico não parece preocupar muito o areeiro de 62 anos que, durante a semana, se mete na água com uma pá nas mãos, e enche seu bote com o fundo do rio Vacacaí, matéria-prima boa para reboco e tijolo. Dirceu já convive em casa com a doença, que também adoça o sangue de Luiza Marlene, sua esposa. No sofá da sala, decorada com porta-retratos dos guris e emblemas que dividem a família entre o Inter e o Grêmio, o casal combina o novo regulamento da rotina doméstica. Além de reduzir o estoque de farináceos na despensa, Luiza pretende colar uma tabelinha na porta da geladeira, para evitar confusão e não perder a conta dos dois comprimidos diários de metformina 850mg, dose que, a partir de agora, cabe tanto a ela quanto ao marido:
– Você toma o seu que eu tomo o meu.
Dando sequência à dupla consulta domiciliar, dr. Yunior lê na contraluz a chapa mais recente da dona da casa. O quadro inspira cuidados: uma bronquite se infiltra outra vez nos pulmões defumados de Luiza, que segue tentando abandonar o vício que a consome desde os 14 anos.
– Hoje, quando dá vontade, quando vem aquela loucura, eu bebo um copo d’água.
Dirceu, por sua vez, recebe uma prescrição de exames e remédios paliativos para as dores lombares: um peso antigo do ofício, que o areeiro vai suportando por conta própria, a base de analgésicos, já que precisa completar mais três anos de trabalho para, enfim, descansar as costas na aposentadoria. Em seguida, o médico cubano se despede, formal. E sem demorar como a enfermeira e o agente de saúde no rame-rame da saída, chega primeiro ao carro que levará a equipe para a próxima visita.
Além da camisa cinza abotoada até o pescoço, dr. Yunior traja uma feição geralmente fechada, que à primeira vista me pareceu até alguma antipatia. A aparente sisudez, no entanto, é só a fachada de um profissional reservado e lacônico, difícil de entrevistar. No posto de saúde, por exemplo, são as enfermeiras que mais me contam sobre o trabalho do médico, exaltando seu caráter sempre prestativo, e revelando que ele chega até a pagar voluntariamente o táxi do próprio bolso, quando decide visitar algum paciente aos finais de semana. Sentado, espreitando a conversa por detrás das lentes dos óculos, o médico cubano se manifesta apenas para minimizar os casos e diluir o verniz de virtude com que as moças lhe pintam. O recato sobressai à sua personalidade. E fica ainda mais gritante, por contraste, quando confrontado com o jeito brincalhão de Dona Otacília:
– Pode entrar, gente! Vem que tem chazinho pra todo mundo.
Assim, de cara, pelas primeiras impressões do encontro, não dá para perceber. Aos poucos, no entanto, a senhora bem-humorada, prestes a completar 77 anos (“No dia 02 vou matar uma galinha”) vai deixando entrever os sinais da tristeza, que explica sua cabeça quase nua. Uma isquemia rapou os cabelos de Dona Otacília (“Tinha os cabelos por aqui assim, passava a mão caia tudo no chão”). Restou-lhe apenas uma penugem grisalha e um chumaço no cocuruto, que ela prende com uma fivelinha vermelha para não arrepiar (“Levanta um galho aqui pra cima, parece um garnisé”). A perda capilar, aparente, reflete outra, mais profunda: a morte recente do marido.
– Me deu um nó.
Valter era técnico de laboratório do Departamento Nacional de Estradas e Rodagens. O companheiro de Dona Otacília media, em porções de caçamba, cada um dos ingredientes necessários para a adequada composição do asfalto. A família cresceu pelos caminhos que o pai pavimentava: dos quatro filhos do casal, dois rapazes nasceram em Canoas, a guria em Porto Alegre e o caçula em Santa Maria. Ao se aposentar, Valter encostou em São Gabriel, às margens da BR-290, numa casa de madeira, ao lado de outras idênticas, situadas na vila DNER, bairro construído pela empresa aos seus funcionários. Há um mês, Dona Otacília vive sozinha sob o teto que o casal compartilhou por 40 anos. Penso em Lobo Antunes: “Morrer é quando há um espaço a mais na mesa afastando as cadeiras para disfarçar…”.
Apontando um retrato enquadrado na parede, que mostra o marido ao lado de um fusca azul marinho (“Era um homem grande, nunca se queixou de nada”), Dona Otacília conta que, nos últimos tempos, Valter vinha acusando dores abdominais. Os médicos do plano de saúde creditaram o incômodo a sequelas do Parkinson, mal que o combalia há cinco anos. Ao conhecer o caso, dr. Yunior decidiu averiguar melhor. Mas já era tarde: feroz, e aparentemente incubado nos rins, o câncer logo se espalhou para o fígado, o estômago e, uma semana depois, corrompeu todo o intestino do marido de Dona Otacília. Desde então, uma vez por semana, o médico cubano vem à vila DNER conferir a saúde da viúva.
– Aqui o doutor sempre demora. Que é uma chorumela de doença.
Além da isquemia que lhe custou os cabelos, da pressão arterial exaltada e das dores nas mãos e nos joelhos, Dona Otacília tombou de seu alto-astral costumeiro, e precisou dos comprimidos de amitriptilina para se levantar da depressão. Após três semanas de tratamento, no entanto, a septuagenária começa a dar provas de que seu ânimo já recupera o vigor de sempre. Natural de Livramento, neta de dois uruguaios e uma argentina que não entendia português, Otacília logo aprendeu a falar e escrever em espanhol (“No colégio trocava o ipeloj, era aquela borração”). Enquanto dr. Yunior lhe apalpa as articulações, cumprindo os exames de praxe, a paciente bilíngue aproveita a oportunidade para desengavetar o castelhano. E também para cutucar a timidez do doutor:
– No queria puxar la barra, mas ele tá acertando comigo. Buenomédico, mui buenomédico. E no precisa avermelharse!
Depois de se divertir pelo rubor que conseguiu instalar nas bochechas do cubano, Dona Otacília prossegue:
– Estoyprocurando me arrumar, dentro de losconformes. Que é pra mim chispar lamula.
Às voltas com a papelada obituária do marido, a viúva aguarda apenas os derradeiros carimbos para viajar. O primogênito sugeriu sua mudança para Porto Alegre, de modo que a mãe não ficasse sozinha naquela casa engrandecida pela ausência do pai. Mas Dona Otacília só topou passar uma temporada com a filha em São Paulo. Só uma temporada, ela frisa:
– Meu canto é aqui.
Ao final da visita, dr. Yunior lhe deseja boa viagem, caso a ida a São Paulo se confirme mesmo na semana seguinte, antes da próxima consulta. Então, os dois se despedem. Ela o acompanha até a porta. E quando o visitante já está a meio caminho do portão da rua, a anfitriã ergue a voz para chamá-lo:
– Dotor,dotor, me esqueci una cosa… quanto laconsulta?
Sem dizer nada, dr. Yunior lhe dá as costas, escondendo o sorriso tímido. E retoma o passo apressado em direção à saída, enquanto Dona Otacília, com ar maroto, acena de longe:
– É o único que falou em dinheiro ele sai correndo.
*
Desde que dr. Jorge e dra. Yudaimi ajudaram a regular sua tireoide e a içaram da depressão, Carmen Ferraz passa quase todos os dias no posto de saúde, só para deixar uma térmica de café e uns pedaços de bolo, como regalo aos seus “amigos estrangeiros”:
– Eles cuidam de mim, eu cuido deles.
Além dos mimos calóricos de Carmen, responsáveis diretos pelo sobrepeso de seis quilos que dra. Yudaimi incorporou desde sua chegada ao Brasil, os médicos cubanos contam também com a generosidade espontânea de outros pacientes. Hoje, por exemplo, ao final do expediente, o casal leva para casa um pote de doce de abóbora, uma banda de queijo meia cura, um brinco com pingentes dourados e uma capa de almofada tricotada. Entre dar e receber, em nossa despedida, acaba que eu é que ganho um presente dos médicos: um chaveiro com as cores da bandeira de Cuba. Entregamos ao acaso um futuro reencontro, indefinido mas desejado. E então pergunto aos dois sobre seus planos, depois que cumprirem este último ano que lhes resta de missão em São Gabriel:
– Queremos muito trabalhar na África. Mas antes, vamos parar por um tempo em Cuba. Já estamos com 39, hermano. Chegou a hora de termos um filho.
Estacionado em frente ao posto de saúde, o motorista da Prefeitura aguarda nossos últimos cumprimentos para conduzir os médicos de volta para casa, no centro da cidade. Dr. Jorge abre a porta de trás para a esposa. E quando se posiciona para sentar no banco da frente, de súbito, se detém mais um instante do lado de fora do carro, erguendo novamente a cabeça: passando pela rua, Seu Amadeu Brabos lança um aceno ao médico. O doutor ergue a mão como resposta. E assim, impávido, sem demonstrar nenhum sinal de constrangimento pelo encontro que o flagra no pulo, descumprindo o repouso que lhe foi prescrito pela manhã, o “guri da terceira idade” logo segue adiante, com o curativo já meio sujo no tornozelo, andando pelo bairro de bicicleta.