
O Oscar e o cinema vivido e pensado por bell hooks
Por Paulo Silva Junior
“O cinema produz magia. Modifica as coisas. Pega a realidade e a transforma em algo diferente bem diante dos nossos olhos. Em geral, quando critico algum filme do qual muitas pessoas gostam, elas me dizem: ‘Ele é apenas uma amostra de como as coisas são. É a realidade’. E ninguém quer ouvir quando digo que mostrar a realidade ao público é tudo que um filme não faz. O cinema oferece uma versão reimaginada, reinventada da realidade. Pode parecer familiar, mas, na verdade, é um universo à parte do mundo real. É isso que torna os filmes tão atraentes.”
O texto de bell hooks, logo no início de Cinema vivido: raça, classe e sexo nas telas, é oportuno neste final de semana histórico ao cinema brasileiro. Nunca um filme do país teve tamanho investimento e engajamento numa campanha por um prêmio do Oscar, cuja cerimônia acontece na noite deste domingo, 2 de março. Nesse embalo, batemos um papo com Joyce Prado, diretora, roteirista e produtora audiovisual que assina o texto do prefácio desta edição do livro da intelectual estadunidense.
Não se trata de supervalorizar o evento da indústria cinematográfica gringa, mas sim refletir sobre seu contexto e pensar em suas reverberações. Uma grande notícia, por exemplo, é o interesse do público num drama político local: Ainda Estou Aqui já superou a marca de cinco milhões de ingressos vendidos no Brasil, o bastante para se meter num seleto grupo histórico, coisa de menos de vinte filmes segundo os dados oficiais, sendo uma maioria de comédias ou as recentes histórias religiosas produzidas pela Record. Houve quem duvidasse que isso voltaria a acontecer depois do baque da pandemia e de Bolsonaro.
Ainda estamos em tempo de reafirmação das políticas para a cultura. A Cota de Tela, lei de reserva de espaço para filmes brasileiros nas salas de cinema, havia expirado sua vigência de duas décadas em 2021, e foi retomada no governo Lula. E a regulamentação das plataformas de streaming, principal pauta do setor hoje, também está, finalmente, sendo tratada como urgente pela Secretaria do Audiovisual do Ministério da Cultura (que, aliás, precisou ser recriado em 2023 depois de extinto primeiro por Temer, depois por Bolsonaro).
Segue a conversa com Joyce Prado:
Joyce, você diz no prefácio de Cinema vivido que, “seja você uma espectadora buscando desenvolver um olhar mais crítico, seja você uma ‘cineasta que ainda sonha’, a leitura de bell hooks pode nos conduzir a um cinema que provoque a transformação da própria realidade”. Como bell hooks te inspira, ou te ajuda, a olhar para um cinema que provoca essa transformação?
Eu penso que a bell hooks é muito provocativa, e principalmente como uma intelectual negra que está produzindo crítica sobre realizações artísticas e culturais de protagonismo negro. Essas análises estão mais dentro de um âmbito de uma cultura negra estadunidense, mas também muito demarcado pelo trauma transgeracional, coletivo e comunal que é a escravização, que é um trauma que pessoas negras da diáspora, principalmente pelo tráfico transatlântico, compartilham. E ter contato com essas análises a partir de um viés das relações afetivas é uma das coisas que me provocaram muito, e que me inspiraram muito, dentro do trabalho audiovisual que realizo. É algo que deslocou inclusive minha maneira de olhar minha própria família. Nesse livro ela também vai para a análise dos estereótipos em relação às pessoas negras, e é muito interessante que a gente pense o cinema como essa arte muito disseminada, com muitos perfis de produção, e que ao mesmo tempo muitas vezes vemos as pessoas isentando o cinema da responsabilidade social e política que ele tem. Ele se torna uma referência sobre como lidar com determinada situação. Então, bell hooks me estimula a pensar esse imaginário a longo prazo, e como o cinema pode ser precursor de referenciais de comportamentos e consciências.
Na conversa que bell hooks tem com o diretor Charles Burnett, ela fala sobre como artistas negros precisam também se impor e saber vender seu trabalho, citando por exemplo a capacidade que Spike Lee teve e tem de propagar seus filmes. Como você vê hoje o espaço para tal diversidade no cinema no Brasil, com gente para além de diretores homens e brancos buscando alcance e repercussão na carreira?
Eu penso para onde os locais com poder de decisão e financiamento estão olhando quando se fala de cinema brasileiro. Quais os nomes e produções que são colocados em espaço de relevância. A gente tem o Kasa Branca, do Luciano Vidigal, que é um cineasta que participa de formações no Nós do Morro, da regravação do 5x Favela, que vem com curtas muito expressivos nos festivais e que agora chega com seu primeiro longa, de uma maneira muito compromissada com a narrativa, a perspectiva e o fundamento desse cinema. E a dificuldade de gerar um engajamento de crítica, de espaços especializados de cinema, para esse perfil de narrativa protagonizada por pessoas jovens negras e, no caso do protagonista dele, uma pessoa gorda. Então acredito que, para conseguir movimentar as realizações de pessoas não brancas e que não sejam homens, precisamos pensar como nosso setor e nosso mercado deslocam também seus olhares. E ao mesmo tempo, enquanto realizadora negra, eu fico pensando sobre quais tensionamentos vamos precisar fazer para que se mostre a relevância, se chame a atenção. Porque também o êxito do trabalho do Spike Lee, por exemplo, está diretamente ligado ao engajamento que a população negra estadunidense faz em torno dessas narrativas que ele propõe, e como ele consegue evidenciar para a indústria de cinema como essas pessoas estavam sedentas por essas temáticas, como Malcolm X, como Faça a Coisa Certa.
Queria te ouvir sobre a proporção de Ainda Estou Aqui junto ao Oscar. Para além dessa euforia bem brasileira, que transforma qualquer participação em evento internacional numa espécie de Copa do Mundo, que consequências uma repercussão deste nível, com certeza a maior de um filme brasileiro em termos internacionais em muito tempo, pode trazer para nosso cinema?
Enquanto uma pessoa de produção executiva, vou falar de um aspecto objetivo e prático. Quando um filme como Ainda Estou Aqui tem toda essa repercussão, eu vejo mais possibilidades de acordos de coprodução no geral. É como se abrisse o olhar de produtoras de diversas parte do mundo, principalmente Europa, que é com quem o cinema de arte brasileiro mais coproduz, para de novo serem mais cuidadosas, atentas, interessadas no que pode vir junto com produtoras do Brasil. Porque essa campanha puxa, movimenta a indústria, movimenta a maneira como uma pessoa acaba decidindo realizar uma reunião com um possível coprodutor brasileiro ou não. Com uma campanha exitosa de um filme brasileiro, vem um interesse de descobrir o próximo hit, o próximo filme de destaque que pode vir do Brasil. Foi anunciado que o Brasil é o país convidado, o país de honra, dentro do Marché du Film em Cannes [evento de mercado do prestigiado festival francês], e isso já é oportunidade de negócio. Então movimenta e tem potencial de retorno, desde financiamento até distribuição.
Ainda Estou Aqui também se torna um ponto atípico dentro do cinema brasileiro em geral, primeiro porque não foi realizado com recursos públicos, segundo porque o nível de investimento na campanha é completamente histórico, muito acima de qualquer possibilidade, por exemplo, de Marte Um, do Gabriel Martins, há dois anos. Como a gente faz para projetos outros, menores, mais diversos, também alcancem tamanho status?
Primeiro uma informação de uma fala pública de um dos diretores da Ancine é que o Ainda Estou Aqui não está atualmente contando com recursos públicos, mas o desenvolvimento do roteiro fez parte de um dos núcleos criativos financiados pelo FSA [Fundo Setorial do Audiovisual], isso na década passada. E ao longo do processo a produção executiva decidiu pagar a multa para o FSA e encerrar a relação. Então teve recurso público na fase de desenvolvimento. E a partir daí tem dois lugares. O Walter Salles enquanto diretor com filmografia relevante em que existe parte da crítica, da imprensa e das curadorias aguardando um próximo lançamento, a relação que ele teve ao fazer On The Road já no contexto de Hollywood, com apoio do Coppola… Então esse lugar do contato que ele está construindo desde seu primeiro longa, Terra Estrangeira, isso não pode ser ignorado. Tem essa continuidade e essa permanência, o cinema como essa artesania que precisa de constância, lembrando que existem dados que revelam que no Brasil a maioria das pessoas que lança um primeiro longa depois não consegue lançar o próximo. Então o Walter Salles, por várias questões e por ser um homem branco de uma família com muitas posses, tem uma forma de conseguir permanecer realizando cinema e investindo nos filmes e campanhas, não só agora, mas nos anteriores, para circular, estar presente e construir rodas de contato. E tem outro aspecto que é essa comercialização e distribuição muito massiva, como o que vai ser comentado na mídia – não só publicar, mas comentar mesmo, você abrir as redes sociais e ter postagens em quatro, cinco perfis diferentes de redes especializadas o tempo todo. O financiamento principal com possibilidade de ser privado vai ser um diferencial nessa circulação toda, por exemplo realizando cabines [sessões fechadas] em diversos lugares do mundo. É um homem bilionário, e tem isso, não é exclusivamente sobre relevância e a qualidade do filme enquanto estética e narrativa, mas também bastidores que definem muitas coisas.
Tem um trecho da bell hooks no livro que eu gosto muito: “Quando critico um filme que muitas pessoas gostam, dizem: ‘Ele é só uma amostra de como as coisas são. É a realidade’. Ninguém quer me ouvir dizer que mostrar a realidade é tudo que um filme não faz. O cinema oferece uma versão reimaginada, reinventada da realidade”. Queria saber sua opinião sobre a construção de Ainda Estou Aqui, nessa espécie de unanimidade que um filme de muita repercussão acaba ganhando em meio à torcida pelo prêmio, e o que ele nos provoca sobre o Brasil de ontem e de hoje.
Pensar de onde está partindo essa unanimidade. Vi críticas que foram muito rechaçadas, por exemplo, do perfil do Chavoso da USP, e também gente na indústria do audiovisual muito incomodada por falas como a figura de um realizador muito rico dentro desse projeto e dessa repercussão. Então nos provoca a pensar que ainda hoje o Brasil quer falar sobre os momentos políticos com ausência de pessoas negras, indígenas e pobres. Então essa unanimidade que percebo aqui é dentro do perfil de pessoas brancas e pessoas brancas realizadoras. Em rodas com pessoas negras ou pessoas fora de uma classe tão alta, o filme já não é tão unânime — e isso tem a ver com o que a bell hooks fala: trata-se de uma versão reimaginada, reinventada da realidade. Interessante uma entrevista com os roteiristas do filme em que eles dizem que foram trazendo outras perspectivas e roupagens para a Eunice Paiva virar a protagonista que ela é. Que entre o roteiro e o livro há uma mudança no posicionamento dela enquanto protagonista. O cinema tem essa possibilidade de pegar uma biografia, se inspirar em uma pessoa, e trazer isso de uma forma para que se funcione numa contação de história de uma hora e meia, em média. E quais artifícios o cinema vai trazer, e que características vai ressaltar, para que as pessoas se tornem mais atraentes, possam gerar mais engajamento e despertar mais emoções na gente? Em pouco tempo, sair da sala admirando a protagonista. E o cinema trabalha nisso, e por isso essa citação da bell hooks em Cinema vivido é muito boa. Ao mesmo tempo minha família está desse lado da história em que a gente ainda não viu a perspectiva negra sobre o Brasil de ontem, e estamos lutando para que o Brasil de hoje seja mais retratado, contado, criticado. É um desafio que a gente tem ainda, e por muito tempo, de conseguir sair dessa narrativa da história oficial, do recorte reinventado da realidade, para depois ir para o campo das artes compreendendo que escolhas estão sendo feitas com ausências de pessoas que também fazem parte da sociedade brasileira.
Foto: Faça a Coisa Certa (1989), de Spike Lee