Fé e identidade: o pertencimento religioso no combate ao racismo

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Por Paulo Silva Junior
Elefante na Sala

Não se trata de analisar a religião em si, seus rituais, significados, liturgias. Nem os porquês que levam uma pessoa a aderir determinado regime de crença. Mas sim pensar como é que alguns líderes religiosos estabelecem a questão da identidade negra, ou seja, como que esses atores, nesses espaços, lidam com o preconceito, a discriminação e as ações afirmativas, seja no contexto evangélico, católico ou das religiões de matrizes africanas. Estamos falando de A cor da fé: “identidade negra” e religião, livro de Rosenilton Silva de Oliveira, que é tema deste episódio de número 12 das conversas com autores aqui no Elefante na Sala, o podcast da Editora Elefante.


O Elefante na Sala é o podcast da Editora Elefante, disponível no player acima, nos tocadores, no YouTube e no nosso site. Esse é o episódio 12 de nossas conversas com autores. Rosenilton Silva de Oliveira é doutor em Antropologia Social e professor na Universidade de São Paulo. Desenvolve pesquisas nessa área de educação, religião e políticas públicas, com recorte étnico-racial.

Rosenilton, você apresenta seu trabalho deixando claro que não se trata de uma análise sobre a fé, mas sim desse recorte específico, de como líderes e espaços religiosos se relacionam com a identidade negra. Qual é a nuance, a dificuldade, o perigo de se propor isso na realidade brasileira? Porque só de pensar na sua proposta, no seu desejo nessa pesquisa, já nos parece muito clara a complexidade desse debate.

Acho que essa é uma pergunta bastante importante para a gente pensar, talvez, dois movimentos. Um que é para dentro e outro que é para fora da própria academia.

Esse é um livro derivado de uma pesquisa no campo da antropologia da religião. E isso já nos direciona, de algum modo, a uma forma de produzir e de conduzir a pesquisa. Tem alguns enquadramentos teóricos e metodológicos específicos. Talvez, se eu estivesse fazendo uma pesquisa, por exemplo, na teologia ou na ciência da religião, eu iria ali para um outro caminho. Então a pergunta central é justamente tentar entender como que esses dois campos — o campo da religião, pensando a atuação de lideranças religiosas, e o campo da produção das políticas públicas, pensando os agentes públicos e não os agentes religiosos — dialogam a partir de um tema específico, que é o combate ao racismo.

Acho que é por esse aspecto que a minha atenção não se volta para olhar para as liturgias, para as explicações teológicas, mas para essa atuação, digamos, política, que está, obviamente, conectada à questão do pertencimento religioso. E penso que uma das dificuldades ou um dos pontos de atenção na hora de construir esse tipo de pesquisa é justamente pensar na própria reputação das pessoas. Ou seja, essas pessoas que estão atuando nesses grupos, nesses coletivos no interior das igrejas, elas estão fazendo algum tipo de enfrentamento.

São pessoas que são religiosas, que comungam das diretrizes religiosas, das instituições nas quais participam, mas que têm alguns posicionamentos críticos com relação a certos aspectos dessas mesmas instituições. E isso as expõe de algum modo, alguma espécie de crítica ou mesmo de censura. Isso pode ocorrer. A pesquisa precisa ter esse cuidado de, ao mesmo tempo em que ela apresenta, descreve um fenômeno, faz uma análise, no caso aqui uma análise antropológica, ela deve cuidar para que não haja ali a construção de um tipo de narrativa que seja um juízo de valor, que de algum modo possa prejudicar essas pessoas.

Um segundo aspecto também como ponto de atenção, e ele está atrelado a essa dificuldade de propor isso no contexto brasileiro, é que a gente está falando de uma sociedade em que cerca de 96% das pessoas dizem que creem em algo ou alguém. E cerca de 86% da população brasileira é vinculada a alguma instituição cristã, seja ela católica, de alguma igreja evangélica, pentecostal, do protestantismo histórico. E tratar desse tema, de alguma forma, também é tratar, tocar, em alguma medida, nas próprias crenças dos sujeitos, e da forma individualizada como os sujeitos se relacionam com o conteúdo da crença. Embora não seja essa esse o objetivo especificamente, às vezes isso pode ocorrer.

E aí pensar no tempo presente, em que a gente tem uma ampliação no espaço público, do modo como as pessoas estão relacionadas ou estão acionando os seus pertencimentos religiosos, os seus valores de crença, para fundamentar certos posicionamentos públicos, sobretudo mais conservadores, no sentido de se opor a uma determinada agenda atrelada aos direitos humanos, com todas as contradições que isso possa ter. Obviamente que uma pesquisa em que está discutindo temas como o racismo, a valorização de expressões culturais de matrizes africanas no contexto religioso, ela pode sim apontar algumas contradições presentes no campo religioso. Mas, ao mesmo tempo, a gente pode pensar que essa pesquisa também é uma grande oportunidade para visibilizar outras duas coisas.

De um lado, a complexidade e a diversidade ou a pluralidade presente no próprio campo religioso, ou seja, por mais que eu tenha certas instituições religiosas que sejam publicamente lidas como mais conservadoras, no seu interior a gente tem movimentos mais, digamos, progressistas ou que tensionam justamente essa posição. Embora possa ser minoritária, embora não seja tão visível, mas isso está presente. E um segundo aspecto é justamente ver como que a temática racial e o racismo atravessan todos os sujeitos na sociedade brasileira, independentemente dos seus pertencimentos, seja de classe, de gênero e, neste caso, especificamente religioso.

É muito interessante, de fato, essa complexidade. Entrando um pouco em cada caso, você começa no contexto das religiões afro-brasileiras, chamando ali a primeira parte do livro de ‘De terreiro a território tradicional africano’. E eu queria saber o que você percebeu sobre essa certa responsabilidade, demanda, que esses espaços têm de trabalhar com o que a gente poderia chamar aqui de forma bem geral de memória, de cultura, de resistência. O que de certa forma é inerente à própria existência desses espaços. Como que isso foi se dando até a gente chegar no contexto de hoje?

Sim, isso é bastante interessante. Talvez a gente pudesse expandir de forma mais geral que é essa relação entre a adesão a um regime de crença (vamos usar aqui a categoria antropológica) e como essa adesão apresenta uma grade de compreensão da realidade e estabelece algumas diretrizes de ação. Isso até para a atuação individual, pessoal, a relação do sujeito com o contexto em que ele vive, inclusive encontrando respostas diante de situações bastante desafiadoras, como o desemprego, a violência, nesse caso especificamente o racismo. Então, esse é um aspecto que de algum modo vai atravessando obviamente os pertencimentos dessas pessoas.

Mas um outro aspecto, e aí mais particular, e aqui eu gostaria de chamar a atenção, é pensar essas pessoas adeptas das religiões de matrizes africanas, que são muitas — no livro eu trato mais diretamente do candomblé, e um pouco da umbanda. E ao tratar aqui do candomblé, também eu estou olhando para um conjunto de pessoas negras, porque no contexto das religiões de matrizes africanas a gente tem também pessoas brancas, pessoas indígenas, enfim. Então é pensar esse duplo pertencimento, ser uma pessoa negra e ser uma pessoa negra de uma religião de matriz africana.

Esse duplo pertencimento, ou esse pertencimento interseccionalizado, já possui alguns enquadramentos sociais, ou seja, quando uma pessoa negra, numa sociedade que se movimenta a partir da ideia de raça e hierarquiza as diferenças a partir dessa ideia de raça, e ao hierarquizar justamente estabelece situações de privilégio para algumas situações e subalternização para outras, portanto uma sociedade racista como a sociedade brasileira, esse sujeito negro já é lido a partir desse enquadramento, em todos os espaços em que ele se movimenta, independente dos seus pertencimentos de gênero, de classe. Esta marcação, portanto, faz com que o sujeito lide com o racismo cotidianamente de um modo específico. O pertencimento religioso a uma religião de matriz africana, de algum modo, possibilita justamente um outro movimento, que é um movimento que passa justamente pela valorização dessas matrizes africanas que estão presentes, não só na constituição da própria religião, mas da própria sociedade brasileira. De algum modo, essa pessoa que participa de uma religião de matriz africana se vê conectada e tem também um aprendizado que se dá no cotidiano da vivência da religião com esses princípios epistemológicos, filosóficos, de modo geral culturais, de matriz africana.

Então tem uma conexão aí, seja com a região onde hoje é a Nigéria, o Benin, ou mesmo na região da África Central, como Angola. E inclusive o contato com outras línguas, seja do tronco banto, iorubá, fon, ewe, e faz com que esse sujeito, portanto, tenha esse conhecimento, digamos, ampliado. Um outro aspecto é justamente o modo como as expressões religiosas africanas foram recepcionadas no contexto nacional. Eu vou detalhando um pouco mais isso no livro, porque até o censo demográfico de 1980 não constava como possibilidade de enunciação de pertencimento religioso o candomblé. Só aparecia o espiritismo. E o espiritismo foi utilizado como uma das categorias de pessoas que eram do candomblé ou da umbanda, mas que não podiam se dizer dessa religião, porque não tinha essa categoria, e também não queriam se dizer católicas.

Então, historicamente no Brasil, as expressões religiosas de matriz africana, de origem africana, foram recepcionadas numa categoria, que eu vou usar aqui entre aspas, chamada de “cultura”. E uma cultura ainda tida como sendo inferior. Ao atrelar toda e qualquer expressão de matriz africana como cultura e não reconhecer como religião, impôs alguns limites no modo como essa religiosidade foi vivenciada. Ela foi vivenciada pelas margens, ou na marginalidade, até praticamente o final do século XX. Com todos os preconceitos que vão aparecendo. Do ponto de vista do Estado, por exemplo, que não vai garantindo certos direitos que existem aos outros pertencimentos religiosos. Então não tem o direito de realizar os seus cultos nos espaços e nos horários considerados adequados, de acordo com as próprias teologias. Não se tem um respeito às indumentárias e aos preceitos religiosos. Enfim, tudo isso é negado aos adeptos das religiões de matriz africana.

É durante o século XX que as lideranças religiosas e os demais adeptos vão atuando em vários espaços, em múltiplas frentes, com algumas alianças e muitos enfrentamentos. Vão construindo, portanto, o reconhecimento público das religiões de matriz africana, mas enquanto religiões, ou seja, como sendo uma forma de regime de crença tão legítima quanto as outras que já existem no país. E veja que aqui a gente está falando, portanto, de pessoas que, além de se preocuparem em vivenciar os preceitos da sua religião, precisam, a todo momento, publicamente, se valer, justificar esse próprio pertencimento. Convencer o outro de que aquilo que está fazendo é, de fato, algo legítimo. Isso é algo que não está presente no contexto cristão. Uma pessoa católica não precisa, a todo momento, justificar publicamente porque ela é católica. Ela pode ter outros enfrentamentos, mas não necessariamente justificar de que o catolicismo é uma religião e que não é uma religião que está querendo fazer algo para prejudicar diretamente alguém.

E outro aspecto atrelado a isto são as estratégias de sobrevivência. Então, como que uma população como a população africana vai sobreviver num contexto tão adverso que foi o contexto da escravização durante quase quatro séculos, de racialização, de subalternização, a impossibilidade de acessar a escolarização formal, a impossibilidade de ter assegurado direitos básicos de cidadania e ter, entre eles, o direito à crença? Ela vai criando estratégias. Essas estratégias, justamente, estão atreladas à própria valorização desse discurso, dessas matrizes ou dessa expressão religiosa enquanto cultura. Veja aqui a ambiguidade, portanto. Pensar que, sim, as expressões, os terreiros, de modo geral, de candomblé, eles se constituíram como locus da cultura negra, das heranças africanas no Brasil. Isso muito bem documentado em inúmeros trabalhos. E, portanto, esses espaços, os terreiros, estão conectados com outros espaços e desenvolvendo outras atividades. A própria relação com as escolas de samba, a relação com a capoeira, a relação com outras expressões culturais presentes no país e tensionando, inclusive, a manutenção de outros aspectos relacionados à cultura nacional, como a culinária, a nossa língua, a música. Enfim, quando a gente olha para a sociedade brasileira e olha para os princípios que constituem a sua identidade cultural nacional eles são majoritariamente afro-indígenas. O modo como a gente fala, a nossa culinária, etc.

É a partir desse reconhecimento mais alargado, a partir da década de 1930, quando se reconhece o samba como música nacional, a capoeira como dança nacional, com uma contradição, porque embora a capoeira seja o esporte nacional, ela continua sendo perseguida, os capoeiristas continuam sendo perseguidos, ainda há muito preconceito com relação aos sambistas, enfim. Mas é dentro dessa movimentação de reconhecimento do candomblé como espaços legítimos de conservação das heranças africanas no Brasil que se tem, portanto, uma possibilidade de certa respeitabilidade no contexto da sociedade brasileira.

E aí, por outro lado, talvez até extremo, mesmo correndo o risco de ser um tanto genérico aqui ao usar esse termo, a gente tem diversas lideranças evangélicas que se notabilizaram por exatamente se afastar, se opor, condenar qualquer coisa que venha de um ambiente de matriz afro-brasileira. Como que se dá isso? A igreja evangélica tem valorizado a presença de uma população brasileira — negra, portanto — e tem o interesse de uma expansão, ao mesmo tempo que se contrapõe a própria cultura afro-brasileira e tudo isso de forma muito verborrágica, sempre com frases muito fortes, com impacto discursivo muito marcante.

Pois é, essa é uma das grandes, eu diria, mazelas da sociedade brasileira, ainda fruto desse racismo que vai se constituindo ao longo do tempo na nossa sociedade. Se a gente olha um pouco do ponto de vista histórico, as igrejas protestantes, que a gente costuma chamar de igrejas evangélicas desse tronco protestante (que o IBGE vai chamar de igrejas de missão, essas que chegam aqui no final do século XIX, batistas, medodistas, presbiterianos, calvinistas, enfim, aquelas igrejas que surgem durante a reforma protestante lá no século XV ou que são derivadas dela), boa parte delas chegam no Brasil a partir de missionários estadunidenses. Alguns italianos, alguns alemães, mas sua grande maioria é estadunidenses. E aí a relação mais direta com as religiões de matriz africana é quase de indiferença, porque o grande embate estava justamente com a igreja católica. A grande maioria desses missionários acreditava que o Brasil não era um país cristão, era justamente um país que carecia ainda passar por um processo missionário de conversão ao cristianismo.

Então não havia um enfrentamento direto às religiões de matriz africana, tal como a gente percebe depois, a partir da década de 1970, porque justamente era uma ideia de indiferença a esses pertencimentos. Nem se considerava a possibilidade desse pertencimento religioso. Mas obviamente vai se valer do preconceito que já está presente na sociedade brasileira e das ações do Estado brasileiro que trazia obstáculos à atuação ou à vivência dessa expressão religiosa, o candomblé, a umbanda, de forma livre no Brasil.

Esse quadro passa a mudar justamente com a emergência das igrejas evangélicas pentecostais e neopentecostais, sobretudo neopentecostais, a partir da década de 1980. Qual é essa grande virada? É justamente que a igreja neopentecostal, como os estudos demonstram, tem uma novidade com relação aos outros que é, para além da ênfase nos milagres, na cura, na prosperidade, o enfrentamento ou uma luta contra o mal. Esse mal que está presente no mundo e que impede que o fiel possa viver de forma plena e de forma abundante. E aí, nesse processo de construção desse mal que está no mundo, esse demônio que está aí tentando destruir as vidas das pessoas, elas localizam esse mal nas religiões de matriz africana. Esse combate ao mal passa a ser um combate às religiões de matriz africana e tudo aquilo que ela representa. Por extensão, passa a ser um combate também a tudo aquilo que é de origem africana, mesmo que não seja diretamente atrelado ao contexto religioso.

E vai se assentar numa interpretação, eu diria, racista dos textos bíblicos, e com uma certa leitura equivocada dos textos bíblicos, sobretudo do livro do Gênesis, em que a origem do mal no mundo estaria atrelado ao continente africano e à cor escura das pessoas. Veja como vai se voltando a certas leituras depreciativas que estavam presentes no evolucionismo, lá nos séculos XVIII e XIX, que é reatualizada em outros termos no contexto da segunda metade do século XX. E isso vai se valer no contexto brasileiro do preconceito que já está presente na sociedade brasileira.

Se tem ali uma junção de um racismo que já está presente na sociedade brasileira, agora com uma tentativa de justificativa a partir dos textos bíblicos. E aí, justamente, uma perseguição não só às religiões de matriz africana, ela mais diretamente, mas também a tudo aquilo que está atrelado ao contexto africano. Os atabaques vão ser considerados instrumentos demoníacos, os ritmos percussivos também serão atrelados a isso. Você vai ter um processo mais geral de demonização. E, paradoxalmente, com um grande apelo litúrgico justamente a essas formas de expressão e vivência da fé, muito próxima a essa experiência de fé que passa pelo corpo e do transe que está presente no contexto das religiões de matriz africana. Nesse sentido, o Vagner Gonçalves da Silva, num texto chamado Intolerância religiosa, faz uma análise muito interessante mostrando como no contexto das igrejas neopentecostais tomar as religiões de matriz africana, especialmente o candomblé e a umbanda, como destinatário de ataques intolerantes demonstra que há certas aproximações litúrgicas entre esses dois sistemas, embora, teologicamente, elas sejam completamente distintas.

E aí a gente tem, num determinado grupo, sobretudo das igrejas batistas, algumas igrejas desse protestantismo histórico, algumas ações de valorização do sujeito. Não pelo pertencimento religioso, mas pensando certas gerações que foram alfabetizadas no contexto da igreja, de uma valorização desses sujeitos enquanto pessoas, quase como um contraponto ao racismo presente na sociedade. Embora, no contexto religioso, essas pessoas não ocupavam espaços de liderança. Por esse motivo é que a gente observa a emergência do movimento negro evangélico de forma mais sistemática a partir dos anos 1990, localizados no contexto das chamadas igrejas evangélicas de missão, batistas, metodistas. E esse movimento negro evangélico vai se dar a partir dessas pessoas negras que estão presentes nessas igrejas evangélicas, que reconhecem, portanto, que a estrutura racista presente na sociedade brasileira também está sendo reproduzida no contexto religioso. E passa, portanto, a estabelecer algumas ações de combate ao racismo no interior das religiões.

Isso alcança pouco as igrejas neopentecostais, sobretudo essas grandes denominações. Porque ali ainda perdura o discurso de demonização das religiões de matriz africana. E é interessante perceber que nesse processo de construção das religiosidades do movimento negro evangélico há uma valorização do pertencimento racial, sem que haja necessariamente uma depreciação das religiões de matriz africana. Mas também não há uma aproximação, como a gente vê no caso da igreja católica, de construção de uma relação de diálogo mais profundo entre as igrejas evangélicas ou esses sujeitos do movimento negro evangélico com as religiões de matriz africana.

É muito mais pensar justamente que ser negro é apenas uma variação, digamos, da criação divina, e que, portanto, deve ser valorizada nesses próprios termos. E aí não precisa ter uma demonização das expressões culturais africanas ou de matrizes africanas, mas também o sujeito não precisa necessariamente ser do candomblé ou da umbanda.

E para fechar, quando a gente pega seu livro, a gente acaba pensando, claro, num contexto político mais macro, dos candidatos que fazem acenos de campanha em contextos religiosos, por exemplo, coisa que acontece desde sempre, mas hoje tem esse impacto de rede social, de imagem, de registro. Queria te ouvir um pouco sobre isso, juntando com o sentido também nas relações com outras organizações sociais: ambientes acadêmicos, partidos políticos, pontos de cultura, sindicatos de trabalhadores… Esses atores da sociedade civil estão mais atentos a essa relação com os espaços religiosos, como você aponta em seu livro?

Vou começar do final: diria que sim. Talvez a grande novidade desse tempo presente seja o fato de que o pertencimento religioso tem sido acionado como sendo um marcador legítimo para a disputa de certos temas públicos. Ou seja, nos últimos anos, mais diretamente a partir do período republicano, quando o Brasil deixa de ser um Estado confessional com o catolicismo como religião oficial, se começa ali a se produzir uma laicidade muito específica — porque a igreja católica continua ocupando um lugar de muito destaque na sociedade brasileira, não só de espaços de poder, mas também de conferir certa moralidade e legitimidade públicas, de forma muito demarcada no Judiciário. Mas com todas as contradições da igreja católica, porque é sempre bom lembrar que temos as pastorais sociais, a pastoral afro, da criança, do menor, ou mesmo junto às comunidades indígenas, uma atuação forte no direito às pessoas em situação de rua (a gente vê o padre Júlio Lancelotti, por exemplo), mas também movimentos extremamente conservadores.

Mas fato é que no tempo presente a gente tem visto as pessoas virem a público e enunciarem seu pertencimento como uma forma legítima de atuação pública. É só lembrar do ex-presidente quando disse que um dos critérios para a indicação de um ministro no STF era o fato de ele ser evangélico. Do ponto de vista da laicidade do Estado, não está previsto no nosso ordenamento jurídico que o pertencimento religioso seja um dos critérios. Mas quando o presidente vem a público e diz isso, embora haja voz contrária ao discurso, de algum modo há uma aceitação por parte da sociedade brasileira, de que, sim, precisamos de um ministro evangélico. Na verdade não precisamos, mas esse pertencimento é acionado.

Isso vale para cargos públicos, quando o sujeito vai se candidatar e acionar esse pertencimento religioso, com o consórcio de lideranças religiosas. Mesmo que haja movimentos contrários. Nesse momento a gente tem um debate na Câmara da construção de uma bancada cristã, como se o pertencimento religioso fosse um marcador fundamental de cidadania para a atuação política.

Esse tipo de enfrentamento, que é uma novidade pensando num Estado laico, é uma diferença deste nosso tempo, que marca essas polarizações. É interessante ver que durante o enfrentamento da ditadura a criação de certos partidos políticos ali no final da década de 1970 estava justamente atrelado a contextos religiosos. O Partido dos Trabalhadores nasce bem dessa relação entre sindicalistas, intelectuais e lideranças católicas da atuação nas questões sociais. Mas sem dizer que era um partido da igreja católica. Como a gente vê outros partidos políticos se valendo justamente da sua relação seja com a Universal, com as Assembleias de Deus, quase que numa simbiose entre certas instituições e certos partidos.

No campo da academia, isso tem começado a aparecer, mas na educação básica isso é muito forte, esse tensionamento de certa perspectiva religiosa atravessando ou tentando disciplinar determinados conteúdos e estratégias didáticas da educação básica a partir da própria discussão religiosa. Se vê muito mais a imposição de certa moralidade religiosa que inclusive contraria o próprio direito das crianças. Por exemplo, o direito à proteção quanto à violência sexual que está muito presente, infelizmente.

Enfim, eu diria que hoje o grande desafio, e aí a contribuição da pesquisa do livro, é justamente mostrar que os sujeitos atuam na esfera pública também motivados pelas crenças religiosas, e isso pode levar para atuações mais progressistas, como o livro demonstra. De alguma forma o livro é otimista ao expor as fraturas e a complexidade da sociedade brasileira mas mostrar a emergência da atuação do movimento negro evangélico, a atuação do movimento negro católico e a atuação das lideranças de religiões de matrizes africanas na proposição de uma sociedade mais justa e igualitária a partir do enfrentamento do racismo. Expandindo as conclusões do livro, ele permite, junto de outros trabalhos, olhar para a sociedade brasileira compreendendo que as atuações dos sujeitos são em grande maioria atravessadas por seus pertencimento religiosos. E aí eu volto ao dado do Censo Demográfico: cerca de 86% da população brasileira tem alguma conexão com o cristianismo, e quase 94% da população está atrelada a algum regime de crença. Isso é bastante significativo quando a gente vê essa relação entre o exercício da cidadania e o pertencimento religioso.

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