A covid-19 e as livrarias

Autor de Contra Amazon, lançamento da Elefante em junho, escreve sobre o impacto da pandemia sobre as livrarias e as ameaças das grandes empresas de tecnologia, e conclama: "É preciso reagir".

Por Jorge Carrión
Tradução: Tadeu Breda

 

Este 23 de abril — dia de São Jorge, dia da rosa e do livro na Catalunha, dia em que há 404 anos morreram Cervantes e Shakespeare, Dia Internacional do Livro — será o mais estranho de nossas vidas. Porque o livro e as flores com que costumamos nos presentear, as livrarias que se espalham pelas ruas e a festa que agita os corpos e as cidades pertencem ao mundo sensorial e comum, o mundo dos abraços e das multidões. O 23 de abril de 2020 acontecerá em páginas da internet e redes sociais, telefones celulares e telas de computador. Algumas pessoas terão a sorte de trocar beijos e dar e receber livros dentro de casa. Mas muitos estarão fisicamente isolados. Se alguém pensa em recorrer a um entregador de aplicativo para conseguir sua rosa ou seu livro, pode perguntar a si mesmo, antes de apertar o botão: realmente quero lembrar que essa rosa e esse livro chegaram até mim pelas mãos de uma pessoa com luvas e máscara que se viu obrigada a colocar a saúde em risco em troca de um salário miserável?

Minha resposta foi “não”, e por isso comprei meus livros diretamente no site das minhas livrarias preferidas. Passarei para pegá-los assim que acabar o confinamento. Acredito que sempre recordarei esse momento de reencontro com meus livreiros, assim como sei que recordarei a primeira vez que voltarmos ao parque ou à praia. Por meio dessas compras, investimos no hoje para que exista o amanhã.

Com as livrarias fechadas por motivo de força maior, todos os agentes da indústria do livro mostraram sua importância. As melhores iniciativas de apoio aos livreiros que vi foram as das editoras Comanegra, de Barcelona, ou Nórdica, de Madri, em cujas páginas na internet se pode encomendar livros e indicar a qual livraria você deseja destinar 30% ou 35% do valor da compra. “Adote uma livraria”, diz a editora barcelonesa. “Saudades de vocês, livrarias. Queremos que voltem. Todas”, complementa a editora madrilenha.

Menos acertados foram os projetos #LlibreriesObertes [#LivrariasAbertas], do estúdio de design Mortensen e do grupo editorial catalão Som, e #YoApoyoALasLibrerías [#EuApoioAsLivrarias], do grupo internacional Penguin Random House. Porque ambas campanhas levantam suspeitas razoáveis.

A página www.llibreriesobertes.cat, ao mesmo tempo que ajudou muitas pequenas livrarias catalãs a vender livros antecipadamente e a conseguir um pouco de liquidez, retém a metade do dinheiro da venda até que os estabelecimentos voltem a abrir as portas e fica com todos os dados das transações. Com uma boa narrativa (cujo conceito central é o altruísmo), conseguiu uma considerável injeção de capital e de Big Data (de milhares de leitores em língua catalã).

E a Penguin Random House, enquanto organizava um generoso serviço de distribuição especial para que as livrarias pudessem vender e entregar os títulos de selos como Lumen, Reservoir Books ou Grijalbo, também impulsionava a venda direta em sua página na internet. A contradição é evidente. Ao entrar em www.megustaleer.com [www.eugostodeler.com] e encontrar o livro que interessa a você, aparecem seis opções de compra: o próprio site, TodosTusLibros.com, Amazon.es, CasaDelLibro.com [uma grande rede de livrarias espanhola], Fnac [rede francesa de livrarias e produtos eletrônicos] e El Corte Inglés [uma grande rede de lojas de departamento espanhola]. Talvez porque, para o gigantesco grupo editorial, todas essas opções sejam igualmente válidas — e embora tenha mantido o sorteio de cupons no valor de 10% da compra para serem usados nas livrarias quando estas voltassem a abrir as portas —, a corporação fez com que desaparecesse do Twitter a hashtag #YoApoyoALasLibrerías, limitando-se à acertada #YoMeQuedoEnCasaLeyendo [#EuFicoEmCasaLendo], que sem dúvida se ajusta mais à sua realidade.

A campanha #LlibreriesObertes poderia ter apoiado diretamente as livrarias catalãs que dispõem de um site preparado para o comércio eletrônico. A Penguin Random House poderia ter feito o mesmo com páginas como TodosTusLibros.com, que aglutina toda a informação necessária para se comprar livros de várias livrarias espanholas. Na hora da verdade — que é a da pandemia que estamos vivendo —, nem as grandes empresas nem os responsáveis pelas políticas culturais nos mais altos níveis estão sabendo enfrentar as circunstâncias; e receio que as livrarias também não, já que, nem mesmo nestes tempos, nos quais sua existência está ameaçada, estão se organizando ou se unindo.

Algumas entregam livros na casa dos leitores, outras não; algumas continuam se comunicando com sua comunidade por meio do Instagram, ou passaram a transmitir seus eventos on-line pelo Zoom — como a madrilenha Rafael Alberti ou a barcelonesa Nollegiu, mas muitas outras não; umas poucas se atreveram a lançar um financiamento coletivo — como a 80 Mundos, de Alicante — ou deram início a uma campanha de associados — como a Caótica, de Sevilha —, para conseguir fundos que as ajudem a atravessar este período, mas a imensa maioria não fez nada parecido.

Embora a pandemia tenha chegado à Espanha duas semanas antes de aterrissar nos Estados Unidos, as poucas livrarias espanholas que organizaram campanhas de arrecadação ou lançaram gritos de socorro só o fizeram depois da City Lights, a mítica livraria beat fundada em 1953 por Lawrence Ferlinghetti — poeta que, aliás, completou 101 anos de idade no dia 24 de março. A City Lights conseguiu meio milhão de dólares. No final de 2019, o livreiro Lam Wing-kee, de Hong Kong, amealhou 180 mil euros, também através de um financiamento coletivo, para inaugurar sua nova livraria em Taiwan. Lam foi um dos cinco livreiros detidos pelo governo chinês em Hong Kong em 2015 por vender — e enviar — “livros proibidos”. Na ocasião, trinta policiais invadiram sua livraria, a Causeway Bay Books. Neste 25 de abril, ele inaugurará seu novo projeto. Não haverá festa, porque o governo taiwanês recomenda evitar aglomerações.

Por que há pessoas que dão dinheiro para as livrarias Caótica, 80 Mundos, City Lights ou Causeway Bay Books? Porque creem no significado de suas marcas e de suas narrativas. Os estúdios de design, as agências de publicidade e os departamentos de marketing que utilizam a palavra “livraria” em suas campanhas sabem muito bem disso: trata-se de uma excelente marca. Os especialistas em reputação corporativa sabem que uma marca nunca deve ser associada a uma outra de menor prestígio, que toda parceria deve ser pelo menos igualitária. Quando você vincula sua marca com a palavra “livraria”, você ativa os receptores emocionais de muitíssima gente e recebe automaticamente a atenção dos meios de comunicação e das redes sociais. As livrarias, que são patrimônio, também viralizam.

Quem primeiro se apropriou da legitimidade, da relevância e do significado do livro e das livrarias foi o criador da Amazon, há exatos 25 anos. O que, para Jeff Bezos, em meados da década de 1990, era um nicho de mercado, um espaço de vendas que ainda não havia sido detectado por nenhuma empresa de comércio eletrônico, para milhões de pessoas era, pelo contrário, uma cultura, uma pátria intelectual e sentimental. O Google Books chegou dez anos depois com o mesmo afã de se apropriar desse capital cultural e simbólico de valor extraordinário. Apesar da multiplicação de livros e filmes sobre livreiros e livrarias, da viralização das fotografias de espaços livrescos e de instantes de leitura nas redes sociais e da transformação de vários desses espaços em ícones turísticos, as livrarias não parecem ter percebido que sua marca é poderosíssima, muito mais que as dos grandes grupos editoriais ou das distribuidoras que as atendem ou das instituições políticas que as regulam — muito maior, inclusive, que a do Google Books ou da Amazon. Contudo, é preciso reagir. As grandes corporações tecnológicas estão ganhando muitíssimo dinheiro nestes tempos de catástrofe, e estão investindo em estratégias para tornar-se ainda mais supostamente imprescindíveis. Cada dia são mais numerosos os cérebros monopolizados por Jeff Bezos, para os quais sua empresa logística não é a opção “prime”, mas a única opção.

Não há dúvidas de que no mundo hispano-americano não existem as estruturas de apoio à cultura que encontramos em outros lugares. No Reino Unido, a The Book Trade Charity [Fundo para o comércio de livros] vem apoiando livreiros há 180 anos e acaba de arrecadar 50 mil libras a serem distribuídas como auxílio para os profissionais afetados pela pandemia. No dia 23 de março de 2020, três editores londrinos lançaram um financiamento coletivo para ajudar as livrarias. O objetivo inicial era alcançar o montante de 10 mil libras, mas, alguns dias depois, após receberem o apoio da Booksellers Association [Associação de vendedores de livros] e da — voilà — Penguin Random House, a meta subiu para 100 mil libras.

Mas me recuso a pensar que em nossas culturas não existem estruturas de solidariedade, criatividade e inovação. A famosíssima atriz chinesa Yao Chen reenviou aos seus 83 milhões de seguidores na rede social Weibo a postagem emocionada do diretor da cadeia de livrarias chinesa OWSpace, em que confessava que corria o risco de ir à falência em seis meses: “Nossa esperança é que cada pessoa e cada livraria possam, finalmente, sair da solidão e abraçar a primavera”. E a amante das livrarias Aakanksha Gaur, que mantém o perfil Shelfjoy no Instagram, criou o aplicativo Save Your Bookstore, no qual é possível encontrar milhares de livrarias de todo o mundo e fazer compras com um clique.

Nestes momentos, em que somos milhões os cidadãos em prisão domiciliar que têm saudades das livrarias, em que somos milhões os leitores isolados e mascarados que (embora nos comuniquemos pelo WhatsApp, trabalhemos pelo Skype e vejamos filmes e séries pela Netflix ou HBO) encontramos ideias, evasão e, sobretudo, consolo em nossos muitos livros, as livrarias devem reagir urgentemente. Reapropriar-se da cultura do livro. Tomar consciência de seu prestígio, de seu poder. Fazer valer sua marca e sua narrativa. O que está em jogo é o futuro delas — que, em grande medida, é também o nosso.

 

Artigo publicado no jornal La Vanguardia, de Barcelona (Espanha), e que faz parte do livro Contra Amazon e outros ensaios sobre a humanidade dos livros, de Jorge Carrión, com tradução de Reginaldo Pujol Filho e Tadeu Breda, a ser lançado pela Elefante em junho de 2020. Livro em pré-venda na campanha “adote uma pequena livraria”.

Também pode te interessar