A Palestina na imaginação colonial do século XIX

por Rafael Domingos Oliveira 
Organizador de Gaza no coração

Quando Richard Robert Madden publicou, em 1829, Travels in Turkey, Egypt, Nubia and Palestine, a simples presença da palavra Palestine no título já carregava implicações políticas e historiográficas decisivas. Em pleno século XIX, sob domínio otomano, a região era reconhecida na Europa como Palestina, o que desmonta as teses negacionistas — forjadas mais tarde pelo sionismo — de que não existiria um povo palestino nem uma terra historicamente designada como tal.

Ainda assim, o relato de Madden integra a tradição oitocentista de literatura de viagens, de forte caráter orientalista, responsável por consolidar no imaginário europeu uma representação do “Oriente Médio” como espaço de exotismo, ruína e sacralidade bíblica. Sua descrição da Palestina, centrada sobretudo em Jerusalém e Belém, combina devoção religiosa e curiosidade iluminista: os lugares santos cristãos ocupam o foco narrativo, enquanto os habitantes locais surgem como tipos etnográficos (árabes, camponeses, beduínos) observados em seus trajes, rituais e modos de vida, mas raramente reconhecidos como sujeitos históricos.

Nesse enquadramento, a Palestina aparece congelada no tempo, reduzida a cenário das Escrituras e desprovida de agência contemporânea. Madden elabora uma imagem que, ao mesmo tempo em que documenta práticas religiosas e convivência entre diferentes perspectivas confessionais sob o Império Otomano, apaga a historicidade palestina, transformando seus habitantes em pano de fundo da paisagem. Trata-se, como destacou Edward Said, de um discurso que não apenas descreve, mas produz realidades: a Palestina não é representada tal como é vivida, mas como objeto de consumo do olhar europeu.

Essa operação discursiva teve efeitos de longa duração. Os relatos de viagem do século XIX, longe de serem registros neutros, foram instrumentos de fabricação do imaginário colonial, inscrevendo a Palestina em uma narrativa que a convertia em “terra santa” ou “terra vazia”. É nesse terreno discursivo que o sionismo moderno encontrou respaldo: ao ser concebida como espaço sem povo ou como território atrasado e necessitado de regeneração, a Palestina foi tornada passível de colonização. Madden, portanto, não é apenas um viajante curioso, mas um elo na genealogia da produção simbólica que permitiu a expropriação material da Palestina.

Lido criticamente hoje, seu Travels apresenta um duplo valor. Por um lado, é uma fonte histórica que documenta aspectos da Palestina otomana, as convivências inter-religiosas, práticas cotidianas e descrições urbanas. Por outro, é um testemunho da construção discursiva sobre o chamado “Oriente” que invisibilizou os palestinos como povo e naturalizou sua exclusão. A obra mostra como, antes mesmo do surgimento do sionismo político, a Europa já produzia as condições de possibilidade simbólicas para sua expansão: a transformação da Palestina em objeto de disputa teológica e arqueológica, em vez de pátria de uma comunidade viva. Nesse sentido, o sionismo, como um movimento europeu, é o sucessor imediato dessa perspectiva colonial.

Assim, o livro de Madden deve ser lido não apenas como registro de viagem, mas como parte de um arquivo do colonial, em que a Palestina é simultaneamente afirmada, pelo nome, e negada pela representação. É nesse paradoxo que se inscreve a longa história de silenciamento e apagamento do povo palestino.

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