Por Ricardo Abramovay
Em 2007, um professor de Direito do Massassuchets Institute of Technology (MIT), que hoje está na Universidade de Yale, chamado Yochai Benkler escreveu um livro fundamental chamado A riqueza das redes. Esse livro depositava muita esperança em que a revolução digital permitiria superar vários dos problemas da sociedade contemporânea, e sobretudo permitiria que as relações de confiança entre as pessoas ultrapassassem seus limitados círculos de convívio. Com a internet, poderíamos ter mecanismos para estabelecer relações de confiança — econômica e não econômica — com uma quantidade imensa de gente. Isso permitiria que a cooperação humana fosse elevada a um grau absolutamente inédito. A internet aparecia, então, como um vetor da emancipação social inédito desde a queda do Muro do Berlim.
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A internet pode ser considerada o mais importante bem público já criado pela inteligência humana, talvez só comparado às cidades, com a diferença de que as cidades não foram uma invenção de ninguém. A internet, sim: foi inventada por pesquisadores em um laboratório, e quando ela se torna uma rede, esse laboratório teve a oportunidade de privatizá-la, como se fosse a linha telefônica. Mas os criadores da internet decidiram que ela seria um bem público. Algumas experiências pareciam muito promissoras nessa direção, como a Wikipedia e os softwares livres.
Mais que isso, havia a expectativa de que essa possibilidade de redução de custos de transação não se limitasse ao mundo dos bits e dos bytes, e chegasse ao nível do átomo, com as impressoras em três dimensões e os cortes a laser. Assim, os custos de escala e os dilemas da eficiência seriam eliminados. Se cada um de nós tem em mãos dispositivos com poder computacional crescente, funcionando em rede, isso permitiria resolver problemas de produção material, acesso de energia e uma série de outras coisas.
Eram promessas fantásticas. E é preciso reconhecer que algumas dessas promessas se materializaram em inovações que trouxeram consequências socioambientais fundamentais. Os acordos climáticos de Paris teriam sido impensáveis sem a revolução digital. Em 2009, em Copenhague, a China e a Índia não assinaram o acordo porque não havia alternativa ao carvão. Em 2015, sim, surgiu uma alternativa ao carvão, e isso tem a ver com revolução digital, com internet. No entanto, o que aparecia como uma imensa promessa de cooperação social acabou se convertendo exatamente no contrário: talvez no mais importante vetor de concentração de renda, de aceleração de desigualdades, de ameaça à privacidade dos indivíduos e à democracia no mundo contemporâneo.
O ano de 2017 não ficará marcado apenas como o ano em que Donald Trump tomou posse como presidente dos Estados Unidos. Ficará marcado como o ano em que as sociedades contemporâneas e as elites contemporâneas começaram a se dar conta dos riscos incrivelmente grandes representados pela revolução digital. Quando eu falo “elites contemporâneas”, estou me referindo a matérias publicadas pela Economist, pelo Financial Times, pelo New York Times e pelos mais importantes jornais, que estão alarmados com o que está acontecendo.
A Economist, por exemplo, soltou em maio deste ano um editorial cujo título era “Os dados são o novo petróleo”. No texto, ela diz que, em 1929, quando as autoridades para a livre concorrência nos Estados Unidos propuseram a divisão da gigante petrolífera Standard Oil, nós da Economist, como liberais consequentes, fomos contra, porque o mais importante para o liberalismo é o consumidor, e não importa que a Standad Oil seja um gigantesco monopólio: o que importa é que ela conseguia oferecer petróleo a preços mais baixos do que se houvesse várias empresas disputando mercado.
No caso dos gigantes digitais, porém, chegamos a um ponto em que as ameaças para a sociedade são tão grandes que não podemos deixar as coisas do jeito que estão. A própria Economist lançou esse alerta. Quais são os dados a respeito desse poder? A lucratividade de empresas como Google, Microsoft, Amazon e Apple é muito maior do que a lucratividade média das empresas que compõem o capitalismo contemporâneo, e essa lucratividade não para de crescer. Com isso, essas empresas acabam tendo um poder econômico global e um grau de concentração de riquezas impressionantes.
A modernização do capitalismo contemporâneo, de meados do século 19 até início dos anos 1970, se apoiou em inovações tecnológicas que não exigiam dos trabalhadores um alto grau de qualificação: baseou-se fundamentalmente em habilidades neutras do ponto de vista da formação do trabalhador. Assim, o trabalhador que migrava do campo para a cidade, para trabalhar em uma indústria, não precisava ter uma baita formação para se adaptar a essa mudança. Agora não. Agora, o tipo de modernização que a economia digital traz é enviesada pelas habilidades. A consequência disso é que a quantidade de trabalhadores que de fato entra como trabalhador qualificado na economia digital é extremamente baixa. A maioria adentra a economia digital como trabalhadores precarizados.
Houve, portanto, uma dualização do mercado de trabalho que fez com que, em vez de as curvas de produtividade e salário caminharem mais ou menos na mesma direção, como ocorreu entre 1929 e 1970, se criasse uma “boca de jacaré”, em que a produtividade vai lá pra cima e os salários, lá pra baixo. Isso vai ser muito agravado pelo fato de que a economia digital contemporânea está destruindo os trabalhos de baixa qualificação, particularmente no comércio, porque o “efeito Amazon”, já observado nos Estados Unidos, vai se generalizar, e é absolutamente devastador, não só porque as pessoas deixam de comprar as coisas nas lojas, mas porque as lojas que a Amazon está instalando são lojas sem trabalhadores.
A quantidade de valor gerado por trabalhador da General Motors, uma empresa típica do século 20, era de mais ou menos 290 mil dólares. A quantidade de valor gerado por trabalhador do Facebook é cem vezes maior. Isso significa que, para a mesma quantidade de valor, você vai precisar de cem vezes menos de trabalhadores. O setor de fast-food também está sendo computadorizado. Nos Estados Unidos, há máquinas que já fazem hambúrgueres “mais higiênicos” do que os trabalhadores. Nas 35 mil lojas que tem espalhadas pelo mundo, o McDonald’s emprega quase dois milhões de pessoas. Veja os efeitos que isso vai ter. No Japão, já há sushi feito com máquina e servido em uma esteira, em que o trabalhador é dispensável. Não é à toa que o próprio Bill Gates está propondo um imposto sobre a robotização, que seria usado para fazer um retreinamento dos trabalhadores para se readaptarem à nova economia. Mas não vai ter a que se adaptar, porque essa economia não é uma economia geradora de emprego.
Contudo, o mais importante elemento dessa economia digital está no modelo de negócio. O fundamental para Uber, Amazon, Google etc. são os dados que elas obtêm pelo fato de que somos dependentes das plataformas que criaram — e que usamos. O mais importante pra essas empresas é a capacidade de fazer com que os dados que elas obtêm a partir da observação dos nossos comportamentos on-line alimentem seus computadores em direção à formação de algoritmos e da inteligência artificial. Na Universidade de Stanford há um laboratório voltado a isso, e uma disciplina chamada captologia, que estuda como você capta a atenção das pessoas na internet e as torna dependentes de dispositivos digitais.
Eu teria constrangimento de falar tudo isso pra vocês não fosse a quantidade de jovens que tinham vinte e poucos anos na década passada, quando trabalharam no Facebook e no Google, e que hoje, com trinta e poucos anos, casados e com filhos, estão pondo a mão na cabeça e dizendo: “Eu ajudei a criar um negócio monstruoso”. Há uma reportagem no jornal britânico Guardian citando alguns desses jovens. Isso tudo parece teoria da conspiração, mas o que estou dizendo está baseado em depoimentos de engenheiros que trabalhavam nessas empresas.
Aqui um exemplo claro: a Tesla vendeu 75 mil carros no ano passado, e seu valor de mercado é superior ao da General Motors. Por quê? Porque o mais importante no carro elétrico é o fato de que ele é um produtor de informações que poderá viabilizar o carro autônomo. A estimativa da literatura especializada é que o carro autônomo vai produzir 100 gigabytes de informação por segundo. Essas informações estão concentradas em um pequeno punhado de empresas, e existe inclusive a proposta de um pesquisador bielorrusso chamado Evgeny Morozov dizendo o seguinte: não adianta a gente criticar essas empresas pelas ideias de combate aos monopólios, como se fez e ainda se faz atualmente, como quando a Google recebeu uma multa de 2,7 bilhões de euros dos órgãos antitruste da União Europeia. Isso não é nada para a Google, porque a Google não precisa mais ter monopólio das buscas.
O conhecimento que essa empresa tem de nós e de nosso comportamento não depende mais das buscas que fazemos na internet. Há um artigo do Edward Snowden dizendo que nosso comportamento é transmitido às empresas mesmo quando nossos celulares estão em modo avião. O modelo de negócios consiste nessa captação e processamento desses dados. A proposta do Morozov é a seguinte: se os dados que a gente fornece são tão importantes, não é o caso de esses dados pertencerem a um fundo público, e as empresas que quiserem utilizá-los terem que pagar por isso, com toda a transparência? Não sei se a proposta é boa. O que quero dizer é que existe um movimento social muito interessante e promissor em defesa da privacidade das pessoas e da soberania sobre as informações que elas transmitem para a rede. Essa é uma pauta fundamental para a sociedade civil.
Ricardo Abramovay é professor-sênior do Programa de Ciência Ambiental do Instituto de Energia e Ambiente da Universidade de São Paulo (USP). Foi professor titular da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da USP. É autor de Muito além da economia verde e coautor de Lixo zero: gestão de resíduos sólidos para uma sociedade mais próspera, ambos publicados pela editora Planeta Sustentável. Mantém o site: www.ricardoabramovay.com e o Twitter @abramovay.