A simpatia historiográfica pela modernidade

Por Pedro Rocha de Oliveira
Trecho da introdução de Discurso filosófico da acumulação primitiva

A historiografia sobre a origem do capitalismo esteve desde sempre marcada, a um só turno, pelo ímpeto crítico e por uma profunda simpatia pelo progresso. Chamam a isso de dialética, e, em geral, a expectativa é de que esse termo técnico caçoe das tentativas de responder se, afinal, essa civilização vale ou não vale a pena e substitua tal pergunta por alguma avaliação sutil que, no fim das contas, afirme que vale a pena, sim — e muito. Evocam-se as instituições modernas, o ideal republicano, o Estado laico, sem esquecer o progresso técnico, e relacionam-se todas essas coisas realmente existentes a um futuro mais ou menos longínquo no qual, aí sim, existirão em seu estado pleno. É a ideologia progressista que, nos dias de sol, pede que a destrutividade moderna — a origem colonial genocida, a criação monstruosa do monopólio de poder pelo Estado, a generalização da mercadoria e do trabalho assalariado como formas de administrar uma escassez socialmente produzida — seja mui dialeticamente deixada de lado. Com isso, a historiografia vira, na prática, a fala daqueles que advertem sobre a necessidade dos sacrifícios porque não tiveram de perecer em nenhum deles. A crítica ao capitalismo — que foi, afinal, a motivação para sua historicização — torna-se, em vez disso, a celebração de seus supostos potenciais ainda por realizar. E tudo isso se dá numa época, ademais, em que os progressistas precisam ser fundamentalmente conservadores: no combate à indiferença generalizada diante das verdades mais básicas da ciência, evoca-se a reverência à autoridade científica, e, na esfera política, tudo que se pode fazer é tentar evitar a decadência do Estado de direito e daquilo que se reconhece como conquistas da burguesia do século xix, as quais desde sempre só tiveram aplicabilidade metafórica numa sociedade de massas. É um quadro de esgotamento civilizatório, em que o apego aos resquícios de civilidade moderna se deve apenas ao desespero e ao hábito, os quais a historiografia usual a respeito da modernidade acaba substituindo pela convicção. O presente texto dirige-se contra essa substituição, estimulando a imaginação a libertar-se do ideário moderno através da rememoração de algumas boas razões para odiá-lo.

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Como dizíamos, a historiografia sobre a origem do capitalismo esteve desde sempre marcada, ao mesmo tempo, pelo ímpeto crítico e por uma profunda simpatia pelo progresso. Karl Marx, tanto no Manifesto comunista quanto em O capital, situou os problemas dessa historiografia num lugar privilegiado. É do primeiro texto que data a ideia de que a revolução burguesa, por um lado, e o desenvolvimento técnico capitalista, por outro, abriram uma temporalidade especial que possuía o atributo único na história da humanidade de poder sepultar para sempre a luta de classes, a exploração do homem pelo homem e a necessidade material. Marx era, afinal, tributário do entusiasmo típico da modernidade pela própria modernidade (Berman, 1988 [1986]). Uma expressão particularmente bizarra desse entusiasmo é o elogio de Marx à colonização britânica da Índia como “a maior e, para dizer a verdade, a única revolução social de que se tem notícia na Ásia” (Marx, 1853 [1992]), num artigo para o New York Daily Tribune que não é insensível às violências imperialistas, mas termina com uma citação de Goethe sobre o bem que o sofrimento faz à alma humana…

Já no famoso capítulo 24 do livro I de sua ópera magna, Marx é menos dúbio em sua denúncia dos horrores da “assim chamada acumulação primitiva”, o processo brutal através do qual a agricultura de subsistência começou a ser substituída pelo capitalismo agrário-mercantil na Inglaterra (Marx, 2013, cap. 24). O autor nos legou ali um relato contundente de como a civilização moderna foi inaugurada pela violência da expropriação; de como os trabalhadores da Era Moderna, “livres como pássaros” (Marx, 2013, p. 805), se originaram de populações relutantes em abandonar seu modo de vida pré-moderno, e que foram coagidas através dos subterfúgios jurídicos do Estado moderno nascente, das torturas de políticas penais desumanas e do brutal projeto pedagógico das workhouses. A acumulação primitiva é retratada por Marx como um período de violência econômica e extra econômica explícita. Ali, a ação dos setores sociais interessados no desenvolvimento do capitalismo nascente tem muito pouco do potencial civilizatório da sociedade burguesa plena, cuja atmosfera de permeabilidade política é evocada no Manifesto ou nas “Exigências do Partido Comunista na Alemanha”, que fala de planos para o grande dia em que os socialistas, finalmente eleitos pelo proletariado organizado, obteriam a maioria parlamentar (Marx & Engels, 1848).

Ao longo do século XX, contudo (e mesmo nos tempos que correm), grande parte da historiografia sobre a origem do capitalismo ou sobre a alvorada da sociedade moderna aceitou o conceito de acumulação primitiva e, ao mesmo tempo, manobrou ao seu redor, optando, direta ou indiretamente, pela compreensão da ascensão da burguesia e das instituições modernas como marcas de um progresso civilizatório positivo, um ganho perante as trevas do passado. Exemplo paradigmático dessa abordagem foi a “ortodoxia” da Segunda Internacional, que apresentava a sociedade burguesa como etapa necessária entre os tempos sombrios do “feudalismo” e a emancipação socialista futura. E, se a crítica a essa ortodoxia cuidou de combater o mecanicismo de tal compreensão, não se desviou da avaliação essencialmente positiva a respeito da sociabilidade moderna. É o que se vê, por exemplo, no trabalho de Robert Brenner, que foi o pivô dessa crítica no que tange à historiografia sobre o berço do capitalismo, a Inglaterra dos séculos XVI-XVII.

Num trabalho publicado em 1976, intitulado “Agrarian Class Structure and Economic Development in Pre-Industrial Europe” [A estrutura de classes agrária e o desenvolvimento industrial na Europa pré-industrial], Brenner procurava chamar atenção sobre a dimensão política da ascensão do capitalismo. Opondo-se a uma leitura vulgar da “contradição entre forças produtivas e relações de produção” e a um retrato da derrocada da sociedade feudal resultante sobretudo de fenômenos puramente econômicos, o autor argumentava ser fundamental compreender a atuação política específica dos setores interessados na emergência do capitalismo agrário-mercantil, em especial dos terratenentes não nobres e dos mercadores. Sem o protagonismo desses grupos e a imposição de seus interesses econômico — ou seja, sem a luta de classes —, o “desenvolvimento econômico de longo prazo” seria impensável, assim como a “transição do feudalismo para o capitalismo” (Brenner, 1976, p. 32).

Brenner, portanto, não abandonava a perspectiva do “desenvolvimento “. O emprego dessa terminologia traía algo em comum com a ortodoxia marxista que o autor vinha criticar: a apreciação positiva do processo histórico que dá origem à modernidade. Assim, Brenner (1976, p. 62) fala de “capitalismo ou desenvolvimento econômico bem-sucedido”. Analisa a “parceria” entre os novos terratenentes capitalistas ingleses do século XVI e os camponeses que, depois de espoliados, precisavam se engajar em processos mercantis de lida com a terra, de modo a “liberar [os terratenentes], deixando-os livres para implementar as inovações técnicas […] e para fazer os investimentos de grande porte […] que eram em geral impraticáveis nas fazendas pequenas, não cercadas (unenclosed), geridas pelos camponeses” (Brenner, 1976, p. 64). Fala, ainda, de “aprimoramentos” (improvements) nas terras, repetindo um termo evidentemente valorativo popularizado pelos apologistas do cercamento dos campos do século XVI— ou seja, pela gente que havia perpetrado os horrores da acumulação primitiva discutidos por Marx.

Num estudo posterior (Brenner, 2003),4o autor mudou seu foco para a atuação político-econômica dos mercadores londrinos nos séculos XVI-XVII, período que, aliás, recebeu comparativamente menos atenção de Marx no capítulo sobre acumulação primitiva, concentrado nos eventos cronologicamente mais próximos à eclosão da Revolução Industrial. Nessa obra, Brenner antepõe as classes mercantis, parlamentaristas e puritanas à aristocracia tradicional, antiparlamentarista e católica. Relaciona as transformações políticas tipicamente moderna — o enfraquecimento dos bispos, o controle parlamentar sobre os recursos públicos, a formação de um exército nacional regular e o declínio da autoridade monárquica — à atuação das classes mercantis, ou das alianças em que elas estavam presentes. Chama a atenção para o caráter “relativamente democrático” (Brenner, 2003, p. 710) da instituição parlamentar e dos mecanismos de campanha e petição empregados pelas “classes parlamentares”. O “antiabsolutismo”, segundo ele, teria sido fortalecido pelos “desenvolvimentos socieconômicos” do século XVII, à medida que “o capitalismo agrário se consolidou crescentemente e o aprimoramento da agricultura acelerou” (Brenner, 2003, p. 711).

Assim, de costas para os horrores da acumulação primitiva, Brenner é tributário de uma concepção de progresso econômico que, devido às relações de classe nele implicadas, envolveria um progresso político que apontaria para uma suposta abertura das possibilidades históricas contidas nas instituições burguesas. No entanto, é digno de nota que essa possibilidade é avaliada conforme a brutalidade do processo de acumulação primitiva desaparece por trás de um discurso sobre os “aprimoramentos” econômicos da alvorada do capitalismo. Como fica o “caráter relativamente democrático” das instituições modernas diante dos “momentos em que grandes massas humanas são despojadas súbita e violentamente de seus meios de subsistência” (Marx, 2013, p. 787) — as crianças perdendo os membros no avançado maquinário fabril, os trabalhadores dormindo em pé, os vagabundos famintos sendo marcados a ferro — dos quais nos fala Marx no capítulo sobre a acumulação primitiva? Há uma espécie de afã moral em enaltecer as possibilidades civilizatórias da modernização burguesa, que cinde a consciência histórica, reprime a conexão necessária entre a brutalização das pessoas comuns e aquilo que supostamente deve ser elogiado no passado. O notável — na verdade, o intolerável, de um ponto de vista historiográfico responsável — é que Brenner não tenha sequer levado em conta a questão sobre tal conexão para formular seus juízos promissores a respeito da sociedade moderna. 

Em grande parte, a historiografia posterior sobre a alvorada da modernidade inglesa teve a obra de Brenner como baliza, mas, mesmo quando isso não aconteceu, em geral não conseguiu (na verdade, nem tentou) escapar da referência progressivista, da apreciação positiva do processo de modernização e do bizarro (porém usual) silêncio diante da relação entre essa apreciação e a violência originária do capitalismo. Com isso, a consciência dos terríveis custos humanos envolvidos na ascensão da modernidade, despertada pelo capítulo de Marx sobre a acumulação primitiva, foi historiograficamente recalcada […]

 

Quem é Pedro Rocha de Oliveira?

 

Pedro Rocha de Oliveira é carioca, professor do ensino público federal, psicanalista, e pós-doutor em filosofia. Tentando dar uma voz mais ou menos organizada à sensação de colapso onipresente na experiência contemporânea, estuda as origens e os limites da civilização moderna, entendida simplesmente e rigorosamente como socialização capitalista. É coautor de Até o último homem: visões cariocas da administração armada da vida social (Boitempo, 2013), autor de Dinheiro, mercadoria e Estado nas origens da sociedade moderna: estudo sobre a acumulação primitiva de capital (Editora PUC-Rio, 2018) e de vários estudos, artigos e capítulos sobre estética moderna, política penal, psicanálise e história do pensamento moderno, através dos quais tem buscado manter os olhos sempre fixos nas razões para odiar o caminho mortífero em que, desde o advento moderno, a humanidade foi metida. Suas principais referências teóricas são Paulo Arantes, Peter Linebaugh, Theodor Adorno, Sándor Ferenczi e David Graeber. Na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, geralmente leciona crítica da economia política, pensamento brasileiro e filosofia da cultura.

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