Brasil e Mapa da Fome: ‘o espetáculo do pobre é comer’

O Brasil não está mais no Mapa da Fome, anunciou o governo federal a partir dos dados atualizados pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO/ONU) no final de julho, referentes à média do triênio 2022-23-24. O novo resultado colocou o país abaixo da linha de 2,5% da população em risco de subnutrição (ou o que se chama de falta de acesso à alimentação suficiente), numa correção de rota depois de voltar ao mapa em 2022.

O espantoso é pensar como que uma potência agropecuária ainda tem tanta gente vivendo em estado de insegurança alimentar. É por aí que parte Da fome à fome: diálogos com Josué de Castro, que volta ao legado do intelectual pernambucano para, em 27 ensaios, apontar como o desmonte das políticas públicas intensificado com a retirada de Dilma Rousseff da presidência fez a fome voltar no país — motivo muito mais importante que a pandemia de covid-19 ou a guerra na Ucrânia, como se apontava em 2022.

Geografia da Fome: o dilema brasileiro: pão ou aço, o clássico de Josué de Castro, foi publicado em 1946. Num marco de 75 anos, foi realizado um seminário na Universidade de São Paulo, em 2021, que deu origem a este livro. Reproduzimos abaixo o texto “O maior espetáculo do pobre da atualidade é comer”, de Douglas Belchior e Adriana Moreira, da Uneafro Brasil e da Coalizão Negra por Direitos. Ainda que vários indicadores hoje estejam melhores que quatro anos atrás (o desemprego, por exemplo, caiu no segundo trimestre de 2025), a reflexão segue atual.

Duas das artistas que mais densamente contribuíram com a cultura nacional tiveram tanto a vida quanto a obra atravessadas profundamente pela fome: Elza Soares e Carolina Maria de Jesus, duas mulheres negras. Elza Soares, nascida e criada nos morros cariocas, viveu também a experiência da maternidade, bem como a da perda de um filho por desnutrição. Sua renda no emprego de doméstica não supria as necessidades básicas da família. Foi aí que resolveu participar do programa de calouros apresentado por Ary Barroso, que, ao tentar ridicularizá-la em meio a gargalhadas, lhe perguntou: “De que planeta você veio, minha filha?”. Ela respondeu: “Do mesmo planeta que o senhor, seu Ary. Do planeta fome”.

Ary Barroso, obviamente, não se dava conta de que vivia no planeta fome — afinal, ele fazia parte de um grupo de pessoas, formado por brancos e de origem europeia, que sempre teve acesso à boa alimentação. Elza Soares sabia muito bem disso. A segunda, Carolina Maria de Jesus, nasceu na cidade mineira de Sacramento. Por duas vezes foi presa injustamente. Na primeira, acusada de bruxaria por policiais, por estar lendo um livro espírita. Na segunda, por supostamente roubar dinheiro de um padre. Depois da prisão, foi escorraçada da cidade natal. Carolina seguiu viagem para São Paulo a pé, tendo a fome como fiel e ingrata companheira na vida e como tema de seu fazer literário.

Antonio Candido, quando busca refletir sobre a relação entre literatura e direitos humanos, afirma que a literatura e as artes de maneira geral oferecem as oportunidades para quem pode não apenas produzi-las mas também carregá-las de humanização. Nesse sentido, as produções intelectuais de artistas, pensadores e acadêmicos negros no Brasil sempre foram demarcadas pela temática da fome. Elza Soares, Carolina Ma-ria de Jesus, Lima Barreto, Nelson Cavaquinho, Cartola, Geraldo Filme, Abdias do Nascimento, Guerreiro Ramos, Lélia Gonzalez, Beatriz Nascimento, Lia Ferreira, Esmeralda Ribeiro, Dinha (Maria Nilda de Carvalho Mota), Clóvis Moura, Milton Santos e tantos outros. Todos esses, em alguma medida, expressaram suas preocupações e tinham elaborações acerca da problemática da fome no Brasil. Em todas essas produções, uma mesma constatação: a fome no Brasil tem cor, e é negra. Ignorar esse elemento durante a formulação de estratégias para a erradicação da fome no Brasil é algo pouco inteligente, ineficaz e hipócrita. Mais do que isso, é a reafirmação da lógica racista que organiza a sociedade brasileira.

A Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (Rede Penssan) desenvolveu o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, o Vigisan. A pesquisa identificou que 43,4 milhões de pessoas no país não tinham alimentos em quantidade suficiente para sobrevivência, e que dezenove milhões de brasileiros passaram fome no último trimestre de 2020. A maioria das famílias em situação de insegurança alimentar era chefiada por mulheres com baixa escolaridade. Os dados apresentados pela pesquisa também revelam que famílias negras (10,7%), quando comparadas a famílias brancas (7,5%), sofrem mais com a insegurança alimentar.

Nesse mesmo cenário, o desemprego também aumentou, porém de maneira desigual. Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) Contínua, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), no último trimestre de 2020 a taxa de desemprego da população negra no país era de 17,2%, enquanto a da população branca era de 11,7%. Já as taxas de desocupação, isto é, pessoas que estavam havia dois anos ou mais sem trabalho, aumentaram para negros e brancos, embora continuassem desiguais, respectivamente, com índices de 3,87% e 1,41%. Os dados da realidade traçados anteriormente não são novidade. Organizações do movimento negro brasileiro denunciam há décadas as penosas condições de vida dessa população. As lideranças eleitas e, em especial, o próprio Estado brasileiro jamais reconheceram a humanidade das populações não brancas no país. Pelo contrário, esses gestores, salvo raras exceções, operam no sentido de viabilizar, por meio dos mais diversos expedientes, a garantia dos interesses da hegemonia colonial.Isso significa dizer que o projeto colonial que construiu o sistema de dominação racial branca no Brasil consolidou zonas territoriais, psíquicas e emocionais nas quais o Estado de direito jamais existiu.

Consolidaram-se territórios em que as violências físicas, simbólicas e psíquicas de um estado de exceção se naturalizaram como regra sobre corpos negros em favelas, periferias, quilombos e prisões. Isso também implicou a domesticação da ordem dos afetos da sociedade brasileira. Por outro modo, como entender a dificuldade que temos para mobilizá-la em torno de toda sorte de violações sofridas sistematicamente pela população negra? Como compreender a apatia, a ignorância, a hipocrisia cristã brasileira diante do que Abdias do Nascimento denominou de genocídio do negro brasileiro? O Brasil consolidou sua independência e construiu sua República sem ao menos reconhecer que a escravidão negra e indígena representou um dano a essas populações e ao país. Na verdade, o país remodelou suas políticas internas no sen-tido de manter e aprofundar os processos de desumanização dessas populações, sempre tendo na fome e na morte os signos da relação do Estado brasileiro com a população negra e os povos indígenas.

Passados 75 anos da publicação de Geografia da fome, de Josué de Castro, um marco político e científico nacional paraa compreensão não apenas das tipologias como também dossignificados das dimensões da fome em amplos aspectos, é de fundamental importância que a sociedade brasileira produza políticas que sejam fruto das vivências daqueles cujas vidas sistematicamente estão em risco, cujos saberes ancestrais foram vilipendiados e que se encontram, hoje, à margem das esferas dos poderes institucionais.

Nestes anos fúnebres, em que a iniquidade colonial está articulada à democracia liberal, o movimento negro se apresenta como impulsionador do campo dos direitos humanos, do campo popular e das esquerdas no sentido de potencializar a reflexão sobre a hegemonia branca e de considerar que talvez tenha chegado o momento de serem levadas em conta as formulações políticas que Abdias do Nascimento e Beatriz do Nascimento nos legaram, o quilombismo, que é a práxis do fazer político do povo pelo povo em seu segmento majoritário.

Discutir o combate à fome no Brasil significa aprofundar políticas de redistribuição de renda, como o Bolsa Família, que levavam uma quantia mensal fixa a muitas famílias e entregavam recursos nas mãos de mulheres; garantir a permanência de crianças e adolescentes na escola; ampliar o número de postos de trabalho e aumentar a renda dos trabalhadores adultos; construir oportunidades para que esses trabalhadores possam voltar a estudar, ingressar no ensino técnico e na universidade; repensar trajetórias da juventude negra e periférica, sempre jogada às pressas no trabalho, com poucas oportunidades de construir uma existência na qual a vida laboral seja um espaço de realização pessoal conjugado com o ganho para subsistência — isso só se realiza franqueando oportunidades educacionais a todos.

Por fim, a fome jamais será superada no Brasil enquanto a questão agrária não for realmente enfrentada. Hoje, existem no país mais de cinco mil comunidades quilombolas, três mil delas localizadas na Amazônia Legal, como guardiãs da floresta. Ademais, outras tantas comunidades são produtoras agrícolas e sofrem profundamente com a redução dos subsídios para a agricultura familiar. Os quilombos desenvolveram tecnologias centenárias não apenas para a produção de alimentos e a lida com a terra mas para algo que o racismo epistêmico nos tem impedido, a todos, de observar: mesmo após o processo de reconhecimento e titulação de terras, o paradigma legal não é a propriedade individual nem a tutela do Estado, é o princípio quilombista da coletividade.

Carolina Maria de Jesus escreveu: “O maior espetáculo do pobre da atualidade é comer”. E continua sendo.

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