Colonialismo verde: as COPs se convertendo em cúpulas de negócios

A Elefante está lançando a coleção Capitalismo verde, em dois volumes — v. 1, Geopolítica e transições ecossociais, e v. 2, Justiça energética e climática nos países árabes. O Intercept traz uma entrevista com Breno Bringel, organizador de um dos livros e autor de um dos artigos da edição, onde ele fala dos principais pontos do conceito e dos debates levantados pela coleção.

Por Alice de Souza e Felipe Sabrina
Publicado em Intercept Brasil

A transição energética é um território em disputa. Por trás da aparente boa vontade de alguns setores e das tecnologias emergentes vendidas por empresas e governos como soluções para a crise climática, há discursos bem montados e uma dinâmica que reproduz métodos de apropriação e crescimento ilimitado de um velho conhecido nosso: o imperialismo.

A poucas semanas da realização da COP30 em Belém, no Pará, quando muitas dessas soluções ganharão as vitrines midiáticas e políticas, esse é o alerta dado por Breno Bringel, cientista político, membro do Pacto Ecosocial del Sur e professor associado do Instituto de Estudos Sociais e Políticos, o IESP, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, a UERJ.

Pesquisador das transformações do ativismo e dos movimentos sociais contemporâneos, e da geopolítica das transições socioecológicas, Bringel é um dos organizadores, junto a Miriam Lang e Mary Ann Manahan, do livro “Colonialismo verde, v. 1, Geopolítica e transições ecossociais”.

Já publicada em outros idiomas como inglês, espanhol e alemão, a obra lançada pela Editora Elefante chega ao Brasil em português às vésperas da COP, que será realizada entre os dias 10 e 21 de novembro. O livro esmiúça, expõe e debate como a busca por frear o colapso climático se transformou numa oportunidade de negócio, ancorada pela repetição histórica das dinâmicas de poder colonial e seu DNA extrativista. Em artigos, mostra como, sob a justificativa verde, corporações e empresas do Norte global capitalizam em cima da defesa do meio ambiente reproduzindo desigualdades e opressões no Sul Global.

Esses métodos passam pela sofisticação do chamado colonialismo verde, uma dinâmica de poder que explora os recursos naturais ao mesmo tempo em que violenta populações e territórios, usando para isso o selo da sustentabilidade. Em entrevista ao Intercept Brasil, Bringel alerta que, no século 21, as estratégias têm sido a descarbonização e o mantra de que, para salvar o planeta, é preciso recorrer aos princípios,  linguagens e dinâmicas financeiras.

A descarbonização, exemplifica Bringel, se traduz em mercado de compensação, investimento em tecnologias que perpetuam desigualdades ou aumento de produção de matérias-primas verdes.

De acordo com o pesquisador, as soluções ofertadas dentro desse jogo têm três semelhanças: a expansão da fronteira de commodities, com a lógica de sempre ampliar monoculturas ou ampliar o extrativismo em larga escala; a transferência desigual dos custos e benefícios, onde os impactos sociais e ambientais são assumidos por nós, no Sul Global, enquanto o Norte Global e as corporações transnacionais se apropriam dos lucros da legitimidade climática; e a financeirização, em que tudo vira especulação.

Confira a entrevista completa:

Intercept Brasil – Os dois livros estão sendo lançados às vésperas da COP30 no Brasil e quando também se tem falado muito sobre soluções para enfrentar a crise climática. Por que trazer à mesa o debate sobre o colonialismo verde neste momento? 

Breno Bringel – Tem a ver com a importância política e simbólica de a COP ser realizada na Amazônia, porque isso permite a gente problematizar várias das soluções que estão sendo propostas como promessas que não são neutras, que estão reproduzindo padrões históricos de extração, de despojo, de desigualdade entre o norte e o sul.

O livro tem uma função importante no sentido de visualizar numa perspectiva mais global, mais geopolítica, tudo isso que os movimentos têm denunciado como falsas soluções. Tanto o primeiro como o segundo volume deslocam o foco às vezes das discussões mais técnicas e gerenciais da COP para uma base social. Eles vão mostrando como essas soluções que estão sendo propostas na agenda dominante da COP vão também reorganizando territórios, relações de poder, formas de acumulação.

Nesses tempos tão difíceis que nós estamos vivendo, é fundamental termos um diagnóstico global mais preciso da crise ecológica, que é algo que nós não temos nesses debates da COP. Os diagnósticos são cada vez mais superficiais. Existem certos consensos mínimos, mas as causas estruturais, os problemas de fundo não estão sendo discutidos. As COPs estão se convertendo cada vez mais em cúpulas de negócios. Nunca se fala em deixar o petróleo no subsolo, nunca se fala nas soluções reais propostas pelos povos, pelas comunidades.

O que é o colonialismo verde?

O colonialismo verde não é um fenômeno novo. É um padrão histórico de poder colonial e expansão capitalista. O extrativismo está no DNA do colonialismo. A questão mais paradoxal do colonialismo verde é a seguinte: foi a destruição ecológica causada pelo colonialismo o que permitiu séculos atrás, a partir de meados do século 17, a criação de uma preocupação colonial pela preservação ambiental.

Desde então, as potências coloniais, na sua expansão imperial, foram aprimorando suas estratégias. Continuavam destruindo a natureza, extraindo o máximo de riquezas possível, mas ao mesmo tempo começaram a elaborar políticas e discursos ambientais e conservacionistas.

Por exemplo, o colonialismo verde britânico primeiro destruiu as florestas da Índia e culpava a população local por isso, para depois criar uma política de controle das paisagens florestais. Eles argumentavam que era importante manter e ampliar o domínio estatal sobre a natureza para controlar o clima, o sistema de irrigação, para melhorar o bem-estar da população.

Então, o colonialismo verde sempre tem essa dupla face, por um lado, de dinâmica extrativista, de violência colonial contra os territórios, a população e os ecossistemas, mas ao mesmo tempo usando diferentes tipos de justificação e legitimação ao redor da conservação e da questão ambiental.

A questão distintiva do colonialismo verde hoje, no século 21 e nesta última década, é que ele utiliza um dispositivo de legitimação mais sofisticado, associado à descarbonização. Salvar o clima, descarbonizar a economia, se tornaram mantras hoje.

Essa tensão histórica entre preservação, conservação e destruição segue muito presente. Só que os mecanismos de controle digital, de controle territorial, são cada vez mais sofisticados. Em meio a esse processo, essa nova face do colonialismo verde está reproduzindo as relações do colonialismo histórico, buscando uma nova legitimação social em torno da ideia de descarbonização, porque quem vai ser contra a descarbonização? Essa é a questão.

A COP, enquanto conferência em si, vem sendo muito criticada nos últimos anos. Ela também opera dentro dessa lógica do colonialismo verde?

Sim, em parte porque a COP não deixa de ser um espaço que foi criado décadas atrás como um espaço do multilateralismo na busca de soluções climáticas. O que acontece é que na última década nós estamos vivendo um contexto não só de emergência, mas de consolidação, de normalização dos autoritarismos, de guerras e militarização. Estamos vivendo um contexto de retrocessos em direitos, de uma perda de agenda propositiva das esquerdas, dos movimentos sociais, dos setores mais críticos.

Nesse âmbito multilateral, a própria lógica da geopolítica faz com que todos os espaços de governança e de deliberação e discussão política sobre a questão climática, ecológica e outros temas sejam muito menos relevantes em termos multilaterais. Nós temos um crescimento do negacionismo climático. Por outro lado, temos uma janela cada vez maior de conversão mercantil da questão climática.

No livro, vocês mencionam que o colapso climático virou também uma oportunidade de negócio transnacional. Qual o ponto de virada na história recente que fez o mercado se apropriar da narrativa sobre o clima? 

É importante localizar tudo isso nesse cenário da última década. Tem toda essa mudança geopolítica, mas também tem uma questão econômica e geoeconômica associada ao que aconteceu no mundo depois da crise de 2008, que é a busca de novas formas de acumulação e financeirização que começou a dar lugar central à financeirização da própria natureza.

As empresas, do lado do capital financeiro, das grandes corporações, começaram a financiar, padronizar, comerciar serviços ecossistêmicos. Começaram a padronizar os créditos, a pensar toda essa lógica da engenharia financeira, narrativa técnica, que no fundo busca sempre alianças público-privadas, promessas de biotecnologia, de armazenamento de carbono. E tudo isso foi avançando tanto ao longo da última década que a COP virou um dos espaços fundamentais de negociação de tudo isso, já não de negociação de autonomia política dos governos, dos estados, mas um espaço no qual os governos são parte desse jogo.

Por trás de tudo isso, estão as empresas energéticas e de tecnologia, os fundos de investimento, as empresas da mineração, os bancos multilaterais, as consultorias, as ONGs corporativas, ou seja, todos os atores que promovem mercados e instrumentos financeiros como solução central para a crise climática.

O que é que está faltando na discussão sobre soluções para a transição energética? 

Nós temos que recuperar o espírito crítico que tínhamos na mudança do século 20 para o século 21, no qual sempre quando havia um grande evento, como é o encontro do Banco Mundial, o encontro do FMI, o encontro da OMC, nós fazíamos não só a Cúpula dos Povos, que estava tentando reagir às agendas dominantes, mas fazíamos contra-cúpulas com nossas próprias agendas.

O momento hoje é um momento reativo, é um momento defensivo. E esse momento defensivo está fazendo com que boa parte das nossas formas de entender o mundo, nossas formas de luta, sejam basicamente respostas à agenda que está sendo colocada pelo mercado, pela extrema direita, pelos atores que, de fato, estão enquadrando tudo isso. Mas o que nós podemos fazer em termos não só de crítica a isso, mas também de recolocar propostas, de recolocar alternativas? Isso é central.

Qual o papel de países do Sul Global e seus governos, como o Brasil, na consolidação de estratégias do colonialismo verde que beneficiam os países ricos? 

Nossos governos acabam operando como correias de transmissão do colonialismo verde. Nós não podemos pensar que o colonialismo verde seja simplesmente uma imposição de fora para dentro, do norte para o sul.

Existe também algo que eu venho chamando de colonialismo verde interno, que é como nós – nós, digo, nossas elites coloniais com mentalidade colonial – acabamos reproduzindo todos esses quadros, servindo como mediadores dessa lógica, porque nós criamos leis, nós subsidiamos indústrias, nós favorecemos os grandes produtores em nome da competitividade internacional.

Mas a gente faz isso reforçando uma lógica de subordinação, de integração subordinada, que, em última instância, serve aos interesses do norte. Então, tudo isso não pode ser chamado de transição, é atualização da dependência [verde].

E qual deveria ser o papel desses governos?

Os governos podem ou estar mais próximos de uma perspectiva de transição energética corporativa, que está propugnada fundamentalmente pelas elites empresariais, pelas grandes corporações e pelo próprio mundo das empresas fósseis, ou podem ser atores que mediem mais com a sociedade civil, com as experiências das comunidades, com as alternativas de transição que existem de fato, alternativas que já estão sendo construídas no dia a dia e que estão dando respostas à questão energética, à questão da mobilidade, à questão da alimentação.

O que nós não vemos hoje são governos assumindo esse papel do estado com o planejamento, de pensar a transição no sentido estratégico da planificação com, obviamente, mais crítica ao mundo corporativo e com uma abertura aos espaços dos movimentos, das organizações, da sociedade civil. É como se nós tivéssemos cada vez mais uma captura corporativa dos estados na agenda climática.

É possível, hoje, falar em redução da produção de commodities e mesmo em decrescimento?

Se continuarmos pensando a transição energética com a mesma lógica do crescimento econômico, com a mesma lógica da perspectiva produtivista, o planeta não aguenta. Esse é um consenso científico. O que nós estamos vendo é o contrário de tudo isso. É um expansionismo. Nós não estamos vendo hoje no mundo uma transição energética. Nós estamos vivendo uma diversificação das fontes energéticas.

Estamos vendo um agravamento da crise climática, uma aposta contínua pela economia fóssil. E, de fato, a discussão sobre escala é fundamental e tem sido praticamente nula. E nós precisamos discutir isso por muitos motivos. Por um lado, porque está associado à lógica mais global de como vamos buscar alternativas.

O decrescimento é um tipo de alternativa, talvez fundamentalmente para a Europa e para os países do norte, que precisam mudar seu modo imperial de vida, precisam repensar a lógica do consumo. Tudo isso foi feito a partir de uma dívida ecológica e de diferentes tipos de dívida com o sul global. Essa é uma das dimensões fundamentais que nós precisamos reparar em termos de colonialismo verde.

Mas o fundamental para avançar numa lógica de discussão sobre escalas é pensar a centralidade de um outro tipo de paradigma que possa orientar nossas ações, e eu acho que esse paradigma é o do pós-extrativismo. A única forma de sair de tudo isso, de sair dessas estruturas do colonialismo verde, é com um paradigma que não pense nos mesmos moldes de crescimento econômico, de possibilidade de expansão infinita. Se há algo que nós temos clareza hoje, é não só a finitude dos recursos, mas também a finitude do planeta.

Um dos artigos do livro aborda a questão da linguagem das mudanças climáticas. Ela é hoje um entrave para que a sociedade entenda a dimensão do problema que vivemos?

Com certeza. É parte do problema em dois sentidos. Primeiro porque se criou uma linguagem muito especializada, que assusta as pessoas e que cria uma distância entre a população que está sofrendo as consequências da crise climática e deveria se politizar por isso, e as soluções que são colocadas como as possíveis para crise climáticas. Elas seriam soluções que somente os especialistas entendem, podem discutir, porque estão vinculadas a métricas, a linguagens hiper especializadas, etc.

Mas o segundo problema tem a ver com uma linguagem que despolitiza o problema, transformando decisões centrais sobre a terra, o território, o trabalho, a soberania, em problemas de engenharia, de contabilidade. Isso faz com que essa linguagem seja também uma linguagem funcional às soluções de mercado e torna invisível as responsabilidades históricas. Essa linguagem da descarbonização, das mudanças climáticas, está criando um léxico que funciona como instrumento que oculta escolhas políticas e conflitos de interesse.

Há caminhos para escapar dessa financeirização de soluções em torno das mudanças climáticas?

Nós não podemos esquecer que coexistem visões e perspectivas muito diferentes sobre a transição energética. O que está prevalecendo hoje é a visão defendida pelos representantes do capitalismo verde, das grandes multinacionais, da mineração, da indústria do petróleo, não é a visão das instituições e dos movimentos ambientalistas, dos povos indígenas, daqueles que estão construindo transições e processos de transformação nos territórios.

Essa transição energética corporativa está marcada por um consenso capitalista reducionista, que restringe a análise das causas da crise climática às emissões de gases do efeito estufa e vão deixando de lado outros elementos, no âmbito ambiental, como a poluição, a redução da biodiversidade, e no social, como o consumo, as desigualdades, a violação de direitos.

Os caminhos que nos apontam para escapar de tudo isso hoje estão pelo menos em dois níveis. O primeiro é pensar medidas políticas institucionais urgentes que pudessem regular de forma estrita ou proibir determinados tipos de prática de compensação que mascaram emissões. É proteger jurídica e territorialmente os direitos das comunidades tradicionais, direitos indígenas, direitos da natureza.

É pensar medidas políticas associadas a investimento público direto em energias renováveis, eficiência energética, infraestrutura, com perspectiva de democratização, políticas urgentes de reparação e de justiça climática. E uma abertura de diálogo com os movimentos, com os povos indígenas, com sindicatos, com cientistas críticos, com todos os atores que estão construindo e possuem uma visão de fato ampla de quais são os caminhos alternativos.

É falso isso de que não há alternativas. O que falta é uma imaginação política que permita pensar que a única forma de construir justiça climática e transição energética é com justiça social e justiça ambiental, e não com especulação verde.

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