Por Melisa Molina
Publicado em Página12
A Elefante abriu as pré-vendas de 2023 com o livro A ofensiva sensível, do cientista político e militante argentino Diego Sztulwark. Os textos que serviram de ponto de partida para o livro foram escritos entre 2016 e 2018, período que o autor define como o “auge fugaz e da decadência prematura da chamada ‘nova direita’ democrática”, não apenas na Argentina, mas em várias outras nações latino-americanas. Para trazer um pouco mais sobre o contexto dessa publicação, trazemos uma entrevista do autor para o jornal argentino Página12 por ocasião do lançamento do livro em seu país de origem, em 2020.
“O neoliberalismo é um grande aparato que opera sobre o desejo e as maneiras de viver”, afirma o cientista político e militante Diego Sztulwark em entrevista ao Página12. Em seu livro A ofensiva sensível, Sztulwark questiona as diferenças entre as vidas ligadas aos automatismos do mercado e vidas que não se encaixam porque assumem sua existência como uma pergunta: “Seja porque adoecem, porque são vulneráveis, rebeldes, obscuros, ou porque tiveram uma experiência que os levou a desviar-se da norma”, explica.
Stulzwark reflete sobre aqueles que, para viver, têm que inventar linguagens, alianças e novos grupos, e por isso entram em processos de politização: aí ele destaca os movimentos feministas, as comunidades indígenas e os movimentos de trabalhadores precarizados que, aponta, formam “o reverso da política”, sem os quais seria difícil entender fenômenos-chave na crise do neoliberalismo vivenciado por grande parte da América Latina. Nesse sentido, adverte que os governos populistas não têm conseguido propiciar um modo de vida diferente do que propõe o mercado.
A que se refere quando diz no seu livro que “o modo de vida de direita é tão triste como irrefutável”?
Tomo este conceito de uma tese elaborada por Silvia Schwazbök: ela diz que, depois dos anos 1970 e do pós-ditadura [na Argentina], só existem vidas de direita. É irrefutável porque é uma descrição correta e permite compreender muito sobre o presente, mas é triste porque não permite ver a existência de momentos em que há uma tensão diferente, em que os corpos aparecem articulados com a linguagem de outra maneira, em que há uma pesquisa sobre a própria vida e uma não adaptação com o que é o mundo neoliberal. Acho triste todo pensamento que se limita a fazer uma descrição do inimigo sobre nós e que sanciona uma realidade derrotista. É triste e também não é verdadeiro, já que oculta toda uma dimensão que eu chamaria de “a verdade por deslocamento”, que se cria deslocando o que é imposto, criando resistências, e que não aceita o mundo como ele é.
Em seu livro, você contrapõe “modo de vida” e “forma de vida”. Qual é a diferença entre ambos conceitos?
Chamo “modo de vida” a toda maneira de viver articulada em relação automática com o mercado, a tudo o que é dado. O neoliberalismo é um grande aparato que opera sobre o desejo e as maneiras de viver. Precisei distinguir “modo de vida” e “forma de vida”, que seria a daqueles que assumem sua vida como uma pergunta e não se enquadram diretamente nesse automatismo, seja porque adoecem, são vulneráveis, rebeldes, obscuros, ou porque tiveram alguma experiência que os levou a se desviarem da norma. Minha pergunta é: o que fazemos com aqueles que, para viver, têm que inventar linguagens, alianças e grupos novos e, por isso, entram em processos de politização? As esquerdas não pensam sobre isso porque têm a ideia de que o único possível contra o neoliberalismo é um partido revolucionário que “algum dia poderemos criar”. Mas o partido dos revolucionários não será nada sem o partido dos sintomáticos e daquilo que não cabe nos “modos de vida” e que se dá no reverso da política. Sem isso, fica difícil entender uma série de fenômenos que ocorrem nas diferentes crises do neoliberalismo.
Que importância têm os movimentos indígenas, feministas e de trabalhadores precarizados na construção de outras “formas de vida”?
O indígena é importante porque tem elementos comunitários, de resistência, de marcas de uma guerra perdida. De forma coletiva fazem exercícios existenciais que os distanciam das premissas de obediência que o neoliberalismo impõe à vida. Em relação às terras que ocupam não se dá o mesmo, o capital as quer para fazer negócios e suas formas de vida necessitam colocar um limite nessa forma de especulação. Por isso não se pode evitar a politização. Outro eixo fundamental é o que ocorre com o trabalho precário. Na Argentina, há uma longa história do movimento de precarizados. Na crise de 2001, o movimento piquetero foi a irrupção autônoma de uma resistência a partir da precariedade contra as formas de dominação neoliberais. Grande parte das pessoas que trabalham na ultrainformalidade já tiveram experiências de organização sindical, social, política e de luta. O sujeito denominado “trabalhador precarizado” estará no centro das dinâmicas de conflito. E o terceiro movimento a observar são os feminismos populares. Eles são capazes de radiografar a economia a partir de baixo e perceber todas as formas de exploração informalizadas que recorrem ao campo social e que implicam desde denunciar a dívida como mecanismo financeiro de submissão até entender como a construção de masculinidades violentas faz parte da dinâmica de especulação.
O ex-vice-presidente boliviano Álvaro García Linera disse, em 2015, que um dos erros dos governos populares da América Latina foi que conseguiram uma ampliação do consumo, mas sem a politização das pessoas. Como analisa esse fenômeno à luz do que acontece hoje na Bolívia e em toda a região?
Tomo García Linera como o intelectual que melhor processa discursivamente a versão que os governos populistas dão de si mesmos. O balanço que ele fez é que houve um paradoxo em que governos populistas incluíram os setores historicamente excluídos no consumo e, posteriormente, esses setores populares votaram em governos neoliberais. Linera disse que faltou, nessa inclusão, esclarecimento político. Essa leitura é inocente porque, se você perceber que o modo de consumo produz modo de vida, não poderá reduzir o problema a uma relação de consciência que se resolve via pedagogia ou propaganda. Os processos práticos de subjetivação não vão ser corrigidos com uma aula de sociologia. Uma das fortes críticas a estes processos é que privilegiam a ocupação do Estado em detrimento da ocupação da sociedade e sua transformação. Devemos questionar as experiências de consumo, e produzir novas formas.
Diante as mobilizações no Chile, vemos uma parte importante da juventude que, cansada do modo de vida neoliberal, sai às ruas, e que, como resposta, o Estado mostra sua cara mais repressiva, atirando contra seus olhos e deixando-os cegos?
Estive no Chile e participei das manifestações, assembleias, e dei um curso na universidade. É uma barbaridade o que estão fazendo os carabineros [policiais]. Enquanto estive lá havia 217 jovens com os olhos feridos. Quando os equilíbrios do neoliberalismo se esgotam, aparece um ódio imenso a tudo o que se move, ao que não se adequa. Um ódio fascista que estava sendo incubado e que vemos geopoliticamente na figura de Bolsonaro, que se expressa no ódio destilado pelas forças de segurança, no desprezo pelas burocracias, no racismo e sexismo dos meios de comunicação. No Chile aconteceu algo formidável, que são milhares de pessoas durante dias nas ruas, decididas a derrubar o regime pós-pinochetista. O descontentamento é amplo porque é contra a forma como a vida neoliberal é reproduzida. Há um reverso da política que explode, que não tem representação no regime convencional e que pede para discutir do zero a constituição do Estado.
Qual a importância do diálogo entre as novas e velhas gerações para lutar a partir do campo do sensível e construir subjetividades diferentes daquelas propostas pelo mercado?
Quando comecei a militar nos anos 1990, Eduardo Luis Duhalde nos deu um curso de formação, quando estávamos no ensino secundário, e me presenteou com dois livros: Os condenados da terra, de Frantz Fanon, e História e consciência de classe, de Gyorgy Lukács, e me disse: “Nós, militantes, nos deprimimos cada vez que há uma derrota histórica, mas lemos estes livros e seguimos. Por isso somos militantes”, depois me esclareceu que “só há militantes entre ciclo e ciclo de luta”, e que “o militante serve para comunicar ao novo ciclo os saberes conquistados no anterior”. Militante não é quem dirige, ou tem clareza disso, porque seus saberes são anacrônicos. Porém, toda geração busca, como diz Walter Benjamin, um encontro perdido com as gerações anteriores. E, embora seja um encontro que não se concretizará, não podemos deixar de procurá-lo. Toda geração tem o poder de apropriar-se do passado para seus propósitos, redimi-lo, mas se trata de saberes que só as gerações que atualmente precisam lutar e fazer suas perguntas saberão como usá-los.