Crise climática: como frear a contagem regressiva?

Em O decênio decisivo, Luiz Marques aponta: o tempo das promessas vazias acabou. Só a economia da sobriedade poderá forjar outra sociedade – e reconstruir o que foi aniquilado. Sua proposta: construir uma política de sobrevivência

Por Isabel Loureiro
Publicado em Outras Palavras

 

Se você pertence à parcela da humanidade preocupada com a tragédia do colapso socioambiental e luta com os meios de que dispõe para evitar que o planeta se torne inabitável, O decênio decisivo: propostas para uma política de sobrevivência, de Luiz Marques, será sem dúvida uma ajuda preciosa. Mas, caso você faça parte da maioria indiferente (ou negacionista), este livro mostrará que é hora de abrir os olhos, refletir e mudar de atitude. Dificilmente um leitor de mente aberta não se deixará convencer pela convocação do autor de que todos os esforços são necessários para persuadir governantes e sociedades a exercerem todo tipo de pressão sobre quem toma decisões, a fim de que sejam adotadas medidas que retardem a queda no abismo. As negociações climáticas já não convencem ninguém. Elas servem apenas para manter em funcionamento um sistema econômico de expansão suicida, que usa e abusa da natureza para manter seus lucros, aumentando de forma exponencial a desigualdade entre os humanos e pondo em risco tanto o presente quanto o futuro das novas gerações.

Alarmismo, catastrofismo? Nada disso. Luiz Marques fornece dados abundantes para afastar tal suspeita, mostrando que precisamos agir, aqui e agora, antes que seja tarde demais. Para isso, opera uma sistematização rigorosa da literatura científica a respeito dos impasses ecológicos da nossa civilização, com dados indiscutíveis, como, por exemplo, no que se refere à aceleração do aquecimento dos oceanos nos últimos trinta anos, um indicador claro do aumento do aquecimento global. Numa linguagem clara e elegante, despida de retórica – de fato desnecessária, pois não é preciso exagerar nada quando a realidade já constitui o exagero absoluto –, assistimos a um desfilar de gráficos, reflexões filosóficas, políticas, sociológicas, apelos de coletivos de cientistas e ecologistas, que há décadas tentam, inutilmente, fazer com que governos e sociedades prestem atenção nos relatórios científicos alertando para o iminente colapso climático e saiam de sua letargia suicida. Ninguém poderá se queixar, depois de ler este angustiante compêndio-manifesto, de não ter sido avisado.

É consenso entre os cientistas que a década em que acabamos de entrar representa uma bifurcação, um divisor de águas para a trajetória do sistema Terra nos próximos milhares de anos. Não podemos mais adiar soluções políticas para mitigar o aquecimento global em curso, sob risco de que o planeta se torne inabitável e de que inúmeras espécies, entre elas a humana, sejam extintas. O longo prazo depende de decisões no curto prazo.

Luiz Marques busca com seu livro eliminar as dúvidas que porventura ainda possam restar quanto às consequências do desarranjo climático. Resumindo o imbróglio: todas as previsões científicas mostram que por volta de 2030 o planeta ultrapassará a temperatura média superficial em 1,5 oC acima do período pré-industrial. É crucial entender que nos últimos 50 anos a velocidade do aquecimento e do aumento de CO2 cresceu exponencialmente: “dez anos de nossa história presente equivalem agora, por assim dizer, a séculos de nossa história pregressa” (p. 48). Isso levará a desequilíbrios ecológicos que afetarão profundamente a vida humana na Terra. No caso particular do Brasil, os quatro anos do governo genocida e ecocida de Bolsonaro implicaram um grau de destruição socioambiental quase irreversível. Ou seja, vivemos uma ameaça existencial à espécie humana “mesmo na ausência de uma guerra nuclear” (p. 26), caso continuemos a seguir o mesmo caminho de destruição da natureza. Hoje não podemos saber claramente quando passaremos de um planeta hostil a um planeta inabitável; só sabemos que esse processo está avançando muito rapidamente.

A aceleração do estrago começou após a Segunda Guerra Mundial – ameaça de guerra nuclear no começo dos anos 1960; poluição ambiental e sociedade de consumo em ascensão –, tanto que na década de 1970, nos países industrializados da metrópole, já se faziam ouvir alertas quanto à destruição ambiental, assim como dúvidas quanto à identificação entre capitalismo e progresso. Porém, enfatiza Luiz Marques, existe uma diferença qualitativa entre essa época e a nossa. Há 50 anos ainda havia a perspectiva de que o futuro seria algo melhor. Hoje o futuro já está determinado pela destruição quase irreversível do sistema Terra: “nossas opções são entre um futuro pior e um futuro terminal” (p.41).

Isso posto, fica evidente que precisamos desacelerar e reconstruir o que foi aniquilado. Mas o tempo é o nosso maior inimigo, constata sombriamente Luiz Marques, que rejeita de modo enérgico as tentativas gradualistas de maquiar a tragédia em curso com a conversa mole de governos, empresas, acadêmicos e jornalistas bem intencionados sobre “economia sustentável”. De fato, o livro desmonta de maneira irretorquível as ilusões do “desenvolvimento sustentável” e/ou “capitalismo verde”, ancoradas no antropocentrismo da espécie humana, que se julga no direito de usar em seu proveito a natureza, despida de valor em si e reduzida a mero recurso econômico. Como não nos cansamos de ver, ainda que aparentemente exista boa vontade, nenhuma proposta se traduz em medidas efetivas, por uma razão muito simples: os Estados nacionais não têm poder sobre as grandes corporações que visam apenas o lucro de seus acionistas. Para tanto é preciso crescimento econômico infinito, incompatível com a noção de limite ou de uma “economia da sobriedade”, a única apta a fazer a transição para outro tipo de sociedade.

Apesar desse estreitamento de horizontes, Luiz Marques acredita não só que no decênio em curso ainda é possível tomar medidas para evitar o pior – aprender com o erro, já que “somos uma espécie com uma singular capacidade de aprendizado” (p. 42) – mas também que poderemos agir de modo radical para reverter e mitigar o que ainda pode ser revertido e mitigado e, assim, nos adaptarmos aos impactos do aquecimento climático, da diminuição da biodiversidade e da intoxicação dos organismos pela poluição químico-industrial. Essas duas apostas assentam-se em outra, a de que seremos capazes de construir um projeto de sociedade pós-capitalista, voltado para a diminuição da desigualdade e da destruição da natureza.

Essa sociedade diferente, quer a chamemos de ecossocialismo, social-ecologia ou ecodemocracia, estaria assentada em oito princípios básicos, desenvolvidos no final do livro como “propostas para uma política de sobrevivência”: redução da desigualdade; diminuição do consumo de materiais e energia; tornar a natureza sujeito de direitos; preservação e ampliação das reservas naturais, entre elas os territórios indígenas; fim da economia globalizada e transição para uma civilização descarbonizada; fim da globalização do sistema alimentar e transição para uma alimentação vegetariana; fim da soberania nacional absoluta em benefício de uma soberania nacional relativa, que permita construir um governo democrático internacional; emancipação das mulheres, a fim de que decidam livremente sobre sua função reprodutiva, o que reduziria a taxa de natalidade.

O livro é dividido em três partes que se reforçam umas às outras: a Parte I trata da biosfera; a Parte II do sistema climático; e a Parte III da desigualdade econômico-social entre os países (levando a níveis pandêmicos de adoecimento e mortes por poluição), e propõe como alternativa a formação de uma grande frente de movimentos socioambientais e coletivos de cientistas para lutar por uma “civilização de sobrevivência” (p. 424). A luta política tem por meta o controle sobre os investimentos das corporações e dos Estados nacionais nos sistemas energético e alimentar, o que só será possível por meio de um poder de Estado radicalmente democrático, visando a uma civilização pós-antropocêntrica, não centrada na economia. Só assim teremos chances de adaptação às mudanças inevitáveis que trarão enormes dificuldades para a vida no planeta.

Luiz Marques alterna assim entre o tom otimista, insistindo que ainda é tempo de agir, e o pessimista, em que dá notícia do encurtamento do horizonte de possibilidades, quando, entre muitos exemplos, informa que os grandes bancos continuam investindo nas corporações extratoras de combustíveis fósseis; ou quando escreve sobre a continuidade da extração de petróleo e gás num bioma tão sensível quanto o Ártico. Ou, poderíamos acrescentar, quando somos informados de que a Petrobras faz estudos para abrir novos poços de petróleo na foz do rio Amazonas. A lista de descalabros é longa e não para. Além disso, como manter a esperança quando os gastos com guerras são maiores do que no combate às mudanças climáticas?

No fim de O homem unidimensional, um de seus livros mais lúcidos e desencantados com o mundo do pós-guerra, Herbert Marcuse lembrava Walter Benjamin que, no começo da era fascista, escrevia: “Apenas em nome dos desesperançados nos é dada esperança”. É assim que vejo a militância incansável de Luiz Marques. Longe de qualquer derrotismo ou desânimo, ele prossegue nas suas pesquisas cuidadosas sobra a questão socioambiental, a fim de fornecer subsídios aos movimentos e coletivos e, assim, alimentar a esperança de que, com muita luta e muito trabalho de organização de toda a sociedade, ainda será possível proteger a frágil teia da vida do sistema Terra. Não resta dúvida de que o governo Lula tem uma extraordinária oportunidade histórica de fazer a lição de casa e pressionar os países desenvolvidos a fazerem a sua, para que em 2025, na COP 30, em Belém, sejam assumidos compromissos imediatos em relação ao clima, à biodiversidade, à poluição e às desigualdades.

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