Das favelas do Rio à Palestina

Por Gizele Martins
Publicado em Gaza no Coração
(org. Rafael Domingos Oliveira)

Em junho de 2017, os movimentos palestinos Boicote, Desinvestimento e Sanções (BDS) e Stop the Wall, junto com as organizações israelenses Hamushim e Coalizão de Mulheres pela Paz, ofereceram uma passagem aérea ao movimento de favelas do Rio de Janeiro para visitar a Palestina. O objetivo era mostrar a realidade de vida e sobrevivência à qual os palestinos estão submetidos desde a Nakba de 1948. O encontro dos movimentos palestinos com o movimento de favelas e com a Rede de Comunidades contra a Violência (movimento de mães e familiares de vítimas da violência de Estado) ocorreu em meados de 2016, quando estavam sendo realizados no Brasil, especificamente no Rio de Janeiro, os Jogos Olímpicos.

A realização de megaeventos esportivos no país significou um momento de grandes ataques às favelas e periferias cariocas. Muitas violações aos direitos humanos estavam sendo promovidas pelos governos federal e estadual. Só naquele período, mais de cinquenta favelas passaram por remoções forçadas, e cerca de outras cinquenta foram submetidas à instalação de Unidades de Polícia Pacificadora (UPP). Além disso, o conjunto de favelas da Maré foi palco de uma operação de Garantia de Lei e da Ordem (GLO) durante a Copa do Mundo de 2014, medida que se estendeu até meados de 2015, sob comando do general Braga Netto.

Durante esse período, muitas tecnologias e equipamentos militares de origem israelense, apelidados por nós de “tecnologias da morte”, chegaram às favelas e periferias do Rio de Janeiro — e foram também utilizados por agentes de segurança pública durante as grandes manifestações que ocorreram nas principais cidades do país a partir de 2013. “Mais de 70% do que Israel produz em termos de tecnologia militar vai para exportação. E o Brasil se tornou nos últimos quinze anos um dos cinco maiores importadores de tecnologia militar israelense.”

Um exemplo dos equipamentos militares importados de Israel é o “caveirão”, blindado utilizado pelo Batalhão de Operações Policiais Especiais (Bope) da Polícia Militar do Rio de Janeiro em suas frequentes — e letais — incursões em favelas. Em 2013, o governo fluminense comprou, por seis milhões de reais, oito novos veículos desse tipo da empresa israelense Global Shield — que é uma das fornecedoras das forças de ocupação da Palestina. Eis aqui uma conexão clara entre a realidade de violência nas periferias cariocas e nos territórios palestinos, que transforma totalmente a análise da realidade vivida pelas favelas do Rio deJaneiro. Não se trata apenas de um debate local, como estávamos acostumadas a pensar.

Enquanto moradora de um dos maiores conjuntos de favelas do Rio de Janeiro, a Maré, que abriga mais de 140 mil habitantes e que está localizada junto às três principais vias expressas da cidade — Linha Vermelha, Linha Amarela e Avenida Brasil —, sempre sofri as mais diversas violações de direitos, seja na minha casa, na rua, no trabalho ou nos estudos, atravessadas pela lógica militarizada e racista de um Estado que ainda não enxerga as favelas como parte da cidade. Nasci numa área da Maré onde a militarização e o racismo são cotidianos. Minha rua — que costuma ser escolhida pela polícia para iniciar suas operações — é conhecida como Faixa de Gaza. Ali perdi inúmeros amigos vítimas de “bala perdida”. Perdi também minha casa, invadida por policiais em meio a um conflito que vivenciamos por quase seis meses.

Em 2017, a caminho da Palestina, eu não tinha muita ideia do que iria encontrar. Apesar de ter passado a vida inteira sofrendo uma grande opressão no Rio de Janeiro (e não estou aqui comparando dores ou opressões) e de ter realizado uma série de conversas preparatórias com os movimentos palestinos (que me orientaram sobre como não ser barrada no aeroporto de Tel Aviv, por exemplo), eu não podia imaginar o nível de controle das terras e das vidas palestinas. Ao desembarcar, os soldados israelenses me interrogaram diversas vezes, querendo saber com quem me encontraria e onde ficaria hospedada. Pediram que eu repetisse diversas vezes qual seria a minha programação em todos os dias. A cada interrogatório eles aumentavam o tom de voz. Obviamente, em nenhum momento eu poderia dizer que estaria em contato com palestinos, que visitaria áreas ocupadas, muito menos que estava ali a convite de dois movimentos que lutam contra o apartheid.

Mesmo com todas as perguntas e questionamentos, segundo os palestinos eu consegui passar pela revista rapidamente. Outras pessoas de outros países, até mesmo europeus, que estavam na mesma caravana que eu, foram detidos por cinco horas, outras por um dia inteiro, nessa averiguação. Depois de tudo isso, fui para Jerusalém, onde encontrei pessoas de vários países do Norte global que iriam para o mesmo encontro. Visitar essa cidade histórica foi sem dúvida uma experiência única. Mas, ao andar pelas ruas logo presenciei muitas grades separando palestinos e israelenses. A entrada principal da Cidade Velha estava completamente cercada pelas forças de segurança israelenses, pois era início do Ramadã, mês sagrado para os muçulmanos, quando os solda-dos costumam ter uma presença mais ostensiva para coibir os palestinos de entrarem na Mesquita de Al-Aqsa. No portão de Damasco, um dos oito portões de entrada da Cidade Velha, há algo que parece um contêiner, onde o exército israelense revista todo e qualquer palestino que por ali circule, seja homem, mulher, criança, idoso ou grávida. Algumas vezes, a entrada de palestinos não é permitida. Outras, há confusão, bombas e até mesmo tiros.

Ainda em Jerusalém, eu, um israelense e uma estadunidense do movimento Black Lives Matter [Vidas negras importam] pegamos um ônibus para circular pela cidade. Em certo momento, o coletivo foi parado por soldados israelenses: todos os palestinos (mulheres, jovens, crianças de colo, homens, idosos) foram revistados — menos nós, turistas. Isso foi um grande choque para mim, pois ali percebi claramente que se tratava mesmo de um Estado militarizado, de um controle de corpos, casas, terras, trabalho, comida, água.

Depois de passar esses dias em Jerusalém, nos direcionamos para Ramallah, onde encontramos as lideranças do BDS e do Stop the Wall, além de um grupo de mulheres que nos disseram o quanto é opressor ser mulher palestina sob ocupação. Outros testemunhos narravam o impacto do racismo e da militarização, tanto sobre o corpo como sobre a mente das pessoas. Muitas nos diziam que já haviam sido presas, outras contaram que perderam filhos por causa de disparos de armas de fogo israelenses. Um dia depois, visitamos o campo de refugiados de Aida, em Belém, onde vi os muros que separam vidas, histórias e a população palestina. Esse lugar abriga pessoas que foram expulsas de suas casas e terras. Ali, assim como em outras partes do território, o abastecimento de água e luz já sofria cortes, chegando duas ou três vezes por semana, apenas.

Todas essas partes da Palestina são divididas por muros e check points, e a população é revistada a cada vez que entra esai dos territórios. As pessoas muitas vezes perdem dias de trabalho porque os soldados as deixam durante horas e horas de baixo do sol. Hebron se parece muito com a favela onde moro, pois tem praticamente o mesmo número de habitantes da Maré, algo em torno de duzentas mil pessoas, com casas, escolas, ruas e becos. Esse lugar, conhecido por seu grande comércio, estava com as lojas fechadas, falidas, pois, por causa dos muros, dos cercos, dos postos de controle, as pessoas de outras áreas da Palestina não conseguem mais chegar até lá. “Mais de quinhentas lojas foram fechadas em Hebron por forças militares, sem contar as outras mil lojas fechadas ao longo das décadas porque o exército israelense bloqueou as principais vias de acesso para a cidade, onde não é possível circular livremente.”

Hebron também sofre com a falta d’água. Nas ruas, encontrei pessoas carregando galões, assim como acontece na Maré. A energia e a internet eram controladas. As escolas da localidade estavam cheias de grades, porqueos colonos israelenses que hoje moram em Hebron costumam se reunir para jogar pedras e granadas nos palestinos, além de invadir as escolas e aterrorizar as crianças — aliás, as próprias crianças precisam passar pelos postos de controle, onde todas são revistadas. Ao percorrer as ruas de Hebron, vimos que muitas casas palestinas já haviam sido tomadas por colonos israelen-es. Eles se apossam estrategicamente das partes de cima das residências. Por isso é que aquelas ruas estavam cheias de grades: os colonos que moram nos andares superiores costumam jogar ácido, fezes, pedras e ferros nos palestinos que vivem na parte de baixo.

Quando voltei para o Brasil, passei meses sem dormir direito. Não conseguia entender tamanha brutalidade. Comecei a compreender o que presenciei na Palestina fazendo um paralelo coma realidade das favelas cariocas, já que são as mesmas armas, os mesmos equipamentos bélicos e os mesmos treinamentos que matam as pessoas aqui e lá. Por isso, no Brasil, fizemos inúmeras atividades conjuntas, assim como as atividades do Julho Negro, o que me levou a visitar novamente a Palestina em 2023, junto com outras pessoas dos movimentos negro, favelado e periférico brasileiros.

Visitei novamente Jerusalém. Conheci famílias que não saíam de casa para evitar que elas fossem tomadas pelos colonos; vi crianças serem presas; passei por ruas fechadas por causa dos ataques israelenses nos vilarejos do Vale do Rio Jordão; presenciei adolescentes serem revistados numa mesma rua três vezes, e soube que se ficarem nas ruas em grupos com mais de três pessoas, são considerados grupo inimigo. Em Belém, visitei uma família palestina que havia acabado de perder um filho jovem, jogador de futebol, que tentou salvar uma família de dentro de uma casa em chamas, incendiada por soldados israelenses. Os soldados atiraram na cabeça dele, e a família morreu asfixiada e queimada: os soldados fecharam as portas da casa com ferros para que eles não tivessem chance de sair.

Infelizmente, nos quase dez dias que passei na Palestina em 2023, notei que tudo estava muito pior do que eu havia presenciado em 2017. Durante minha última viagem, o campo de refugiados de Jenin havia sido invadido pelas tropas israelenses e, pela primeira vez, fizeram uso de helicóptero. Por uma triste coincidência, nesse mesmo dia, a favela da Maré também estava sob ataque das polícias militar e civil, que também faziam uso de helicóptero, atirando de cima. Ao investigarmos, descobrimos que se tratava de helicópteros fabricados pela mesma empresa israelense.

Além disso, dentre os mais terríveis relatos, um jovem palestino de 23 anos me disse que já havia sido preso 33 vezes. Fiquei imaginando que infância e adolescência esse rapaz teve, quais oportunidades lhe foram dadas. Chorando, ele dizia, indignado: “O mundo nos abandonou, ninguém olha por nós!”. Por isso, eles pedem para, sempre que pudermos, falarmos da Palestina. E é isso que devemos fazer. Denunciar o apartheid, o racismo, a colonização e a militarização que os palestinos vivenciam em seus territórios. Até porque lutar pela vida palestina é lutar pela vida negra e favelada em todo o Brasil, pois as vidas de lá e daqui são perdidas pelo uso das mesmas tecnologias de morte produzidas pelas mesmas empresas.

Também pode te interessar