Alana Moraes, Lucas Keese e Marcelo Hotimsky entrevistam Raúl Zibechi, autor de Territórios em rebeldia
Zibechi, gostaríamos de saber sobre a relação entre seu percurso e o conjunto de suas reflexões. Falando um pouco sobre sua trajetória, quais encontros provocaram em você mudanças ou produziram deslocamentos de questões que até então lhe eram caras? Nesse sentido, quais seriam os pontos de virada que você identifica em sua trajetória como militante? É possível pensar em formas de conhecer e pesquisar que não estejam mais separadas dos próprios modos de fazer política, dos modos de existência em luta?
Raúl Zibechi Houve dois ou três momentos de virada. No exílio na Espanha, nos anos 1970, foi importante conhecer a primeira onda feminista. A verdade é que, chegando da América Latina, isso foi um golpe duro para o ego masculino revolucionário, e a reação inicial foi defensiva. Apesar do impacto, consegui questionar minha forma de pensar ligada naquele momento ao marxismo e ao leninismo, mas agora vejo que progressivamente o feminismo foi atravessando minhas convicções sobre a forma de compreender o poder, o Estado, o partido e a revolução.
A segunda inflexão foi o zapatismo. Há anos vinha conhecendo comunidades indígenas na região andina, nos anos 1980, e isso me impactou muito, assim como a escrita de José María Arguedas e de alguns pensadores peruanos, como Alberto Flores Galindo. Mas o zapatismo foi fundamental, já que provocou em mim um duplo impacto, político e de pensamento, e ao mesmo tempo afetivo. Conviver com as comunidades e as bases de apoio muda sua forma de ver o mundo, de ver a si mesmo e põe em xeque os modos de pensar e de fazer.
Talvez exista uma terceira, mais recente, mas acredito que é muito cedo para compreendê-la em profundidade. Ela se relaciona com a crise do progressismo iniciada em junho de 2013, o vazio deixado por ele e a emergência dos sujeitos coletivos de “mais abaixo”, como povos negros e amazônicos. Em dado momento, eu havia confiado nos governos progressistas, sobretudo no de Lula, que foi quase o primeiro, mas o entusiasmo durou bem pouco. Então, junho de 2013 era, e de algum modo continua a ser, algo distinto, não tanto pelas ruas, que sempre são importantes, mas por dois motivos adicionais: mostrar os limites do progressismo e das esquerdas e ensinar que as coisas podem ir por outro caminho, pelas mãos de outros sujeitos.
Jovens, mulheres e favelados têm exercido um papel mais importante do que parece. Não é possível ver tudo isso no momento seguinte a junho de 2013, mas vai saindo pouco a pouco da sombra. Sob a pandemia de covid-19, ficam completamente evidentes tanto a crise das esquerdas (do PT ao MST) quanto a recomposição do campo popular. Nesse sentido, conhecer militantes em favelas como Maré e Alemão, no Rio de Janeiro, me encheu de perguntas e me levou a buscas de outro tipo, de Abdias do Nascimento ao papel do teatro e da música na formação de sujeitos coletivos negros.
Sobre as formas de conhecer, pensar e pesquisar, é evidente que, com a ruptura dessas esquerdas, também desmorona o papel do indivíduo branco, acadêmico ou escritor e militante. Estamos diante de outra realidade. O pensamento crítico deixa de estar centrado na escrita, no livro, e se diversifica nas produções do mundo popular, como na dança, na ritualidade, na atuação e nos movimentos corporais. Quero dizer que meu papel como pessoa branca adulta também é questionado pela emergência desses sujeitos coletivos, em particular feministas e jovens negros, no caso do Brasil. É o momento de pensar: o que vem depois?
Como vocês podem imaginar, não tenho a resposta. Seria muito egocêntrico pensar que eu, como indivíduo, vou tê-la a partir de uma racionalidade urbana ocidental. O que vem a seguir é um trabalho intenso, individual e coletivo, antipatriarcal, anticolonial e antieurocêntrico. Tudo isso implica um trabalho sobre o ego branco masculino. Não pensem que vou me suicidar. Não por enquanto, mas o momento é de nos repensar, de trabalhar com outros e outras e, sobretudo, cada vez mais distante do centro, nas margens. Sob a pandemia, tenho tentado ser apenas o fio transmissor do que os povos estão fazendo, porque são eles os que nos ensinam, e nós somos apenas seus alunos. Os zapatistas têm dito isso há anos, mas às vezes pensávamos ser apenas retórica.
Em resumo, temos de nos repensar desde quem fala, a partir dos territórios dos quais se emite um discurso, o que supõe nos colocarmos em questão, em debate, e aceitar que não somos centro de nada, mas apenas uma dobradiça.
Desde que começamos a organizar este livro, muitos eventos políticos importantes ocorreram na América Latina e no mundo. Houve a derrota eleitoral do primeiro ciclo de governos progressistas ao mesmo tempo que líderes políticos de extrema direita se fortaleceram com grande apoio popular e chegaram ao poder. Mais recentemente, surge um novo fôlego eleitoral com uma renovada onda de governos progressistas, mas, ainda assim, a extrema direita segue conquistando espaços importantes na sociedade. Em seus textos, você destaca a questão do modelo econômico extrativista na América Latina no contexto da acumulação por despossessão ou Quarta Guerra Mundial,1 nos termos zapatistas, que seriam modos político-econômicos presentes inclusive nos governos progressistas da região. Seria possível pensar que o avanço da extrema direita seja a expressão mais bem acabada desse projeto extrativista e possa enterrar de vez as expectativas por “inclusão social” e formas mais negociadas de gestão da pobreza? Ou estaríamos vendo um projeto de outra natureza em curso? Como você entende a emergência desse cenário no contexto latino-americano diante da chamada crise dos progressismos e o que as lutas por autonomia, tão caras à sua obra, podem nos apontar neste momento?
RZ Acredito que os governos de extrema direita não têm necessariamente um projeto definido, mas provavelmente sejam a expressão da crise, uma resposta a partir das classes dominantes e médias, mas também das instituições que sentem que essa crise é algo novo e diferente, que pode varrê-las. Se nossos projetos estratégicos têm sido desbaratados pela realidade, podemos pensar que acontece algo similar com as direitas. Acredito que a única instituição que continue de pé, e seguirá durante muito tempo, são as Forças Armadas. Não é nenhum acaso que, em plena crise no Brasil, elas tenham dado um passo à frente, ocupando espaços cruciais do poder.
Minha impressão é a de que as classes dominantes têm apenas um projeto: continuar no topo, continuar dominantes. O restante, elas improvisam. Enquanto isso, apelam ao Estado para resolver as urgências. É um erro pensar que a economia, o lucro, é o aspecto primordial para elas. O capitalismo não é uma economia, e nesse ponto sigo Abdullah Öcalan, é um projeto de poder, um tipo de poder tecido em torno da dominação das mulheres e dos povos originários e negros. É uma utopia, portanto, pensar que seja possível tomar o controle do Estado, porque é o Estado deles, uma ferramenta criada pela burguesia para servi-la.
Creio, assim, que o problema está do nosso lado: dois séculos de estadocentrismo levaram a política emancipatória à falência. Essa é uma conclusão baseada na experiência, não tem nada a ver com as ideologias, nem com o marxismo ou o anarquismo. Mas sejamos francos: não existe uma alternativa já preparada para substituir uma política ancorada na tomada do Estado.
No pensamento crítico, existe um problema maior. Se a acumulação por reprodução ampliada do capital, o capitalismo industrial, correspondeu no Primeiro Mundo ao Estado de bem-estar social, ou a formas menos acabadas de negociação entre sindicatos, Estado e empresas, como na América Latina, devemos analisar que tipo de Estado corresponde ao período da acumulação por despossessão, no Sul do mundo e nas zonas do não ser.
É aí que ganha vigor o conceito de Quarta Guerra Mundial do zapatismo. Uma guerra permanente de usurpação para retirar as pessoas dos territórios, apropriar-se deles e redesenhá-los conforme sua conveniência. Isso é o que acontece nas áreas de expansão do agronegócio na Amazônia, da mineração e das monoculturas em todo o continente, mas também do extrativismo urbano nas grandes cidades. As Olimpíadas e a Copa do Mundo foram a desculpa para desalojar centenas de milhares de pessoas de suas moradias, como aconteceu com a Vila Autódromo, no Rio de Janeiro.
O tipo de Estado que corresponde a essa forma brutal de acumulação não pode ser a democracia. A ocupação militar nas favelas, a guerra contra os pobres em todo o continente são o modo de dominação que torna possível a espoliação. A esquerda não quer entrar nesse debate e acredita que, se cair Bolsonaro, tudo voltaria a ser “paz e amor”. Impossível. O Brasil não vai voltar ao ciclo FHC e Lula, a menos que ocorra uma revolta popular muito potente, muito além de junho de 2013.
Antes da pandemia de covid-19, a América do Sul começava a experimentar um novo ciclo de lutas contra os consensos neoliberais, como na Colômbia, no Equador, no Peru e no Chile. No contexto internacional da crise relacionada à pandemia e seus efeitos vindouros, entretanto, há um claro discurso de fortalecimento do Estado como “protetor” e administrador da vida dos corpos. Novas tecnologias de vigilância e biovigilância parecem ter legitimidade inclusive dentro de setores que se identificam como progressistas. Além disso, vale lembrar que, só em São Paulo, 373 pessoas foram mortas pela polícia nos quatro primeiros meses de 2020. No mês de abril, um mês crucial de contágio, São Paulo registrou o maior índice de letalidade policial desde 2001. O horizonte de fortalecimento do Estado não seria uma proposta de volta às condições anteriores à derrocada dos “governos progressistas” que de certa forma ajudaram a produzir a situação atual? O que há hoje de experiências autônomas (e o que pode haver) de autodefesa e de cuidados coletivos, mesmo em termos de autonomia técnica para sustentar a vida em comum diante do fortalecimento de uma cultura imunitária, securitária, vigilante e racista?
RZ Acredito que, com a crise de 2008, junho de 2013 e a queda do PT, encerra-se um ciclo de democracias pós-ditaduras. No plano concreto, deixa de haver governabilidade, hegemonia e certo consenso, para se instalar a dominação pura e simples e uma crise prolongada da governabilidade, no sentido dado por Foucault, não tanto de consenso, mas de técnicas de governo capazes de criar as condições para fazer o sistema funcionar.
Para os movimentos, o desafio consiste em se desprender da velha estratégia em dois passos (como analisa o sociólogo Immanuel Wallerstein) para se concentrar em outras formas de fazer política, que não excluem a relação com o Estado e os governos, mas que não se organizam em torno disso. A questão é: então qual o caminho? É preciso inventá-lo, porém não com a simples imaginação, mas com base no que foi feito e no que tem sido feito pelos povos nesses anos.
Observemos o que acontece no âmbito da pandemia no sul da Colômbia, no Cauca, entre os povos Nasa, Misak e Kokonuco, ligados ao Cric (Consejo Regional Indígena del Cauca [Conselho regional indígena do Cauca]). Realizaram uma minga hacia adentro [mutirão no plano interno], que consiste em um processo de harmonização coletiva nas comunidades e entre elas e a natureza. Reúnem-se em torno de fogueiras, fazem defumações com plantas curativas e médicos tradicionais perto das lagoas e dos locais sagrados. A comunidade é um princípio curativo e de cuidados. Além disso, intensificam e diversificam cultivos, enviam alimentos a indígenas urbanos, trocando-os por produtos de higiene. Realizam trocas entre produtores de terras quentes e frias, sem dinheiro, com base nas necessidades.
Todo o processo é protegido por sete mil guardas indígenas “armados” com bastões de mando, que vigiam setenta pontos de entrada e saída dos resguardos, ou territórios indígenas. Em todo o continente, existe uma enorme variedade de iniciativas de autodefesa: guardas indígenas nasa do Cric, que agora estão sendo adotados pelos povos negros como os guardias cimarrones e os trabalhadores sem-terra como os guardias campesinas; polícia autônoma em Guerrero, no México, além do EZLN (Ejército zapatista de liberación nacional [Exército zapatista de libertação nacional]); rondas campesinas [patrulhas dos trabalhadores rurais] no Peru, que já têm cinquenta anos, e nos lugares em que existe mineração se transformam em Guardianes de las Lagunas [Guardiões das lagoas]; autodefesas em muitos bairros periféricos. Agora surgiu a guardia washek, no norte da Argentina, no Chaco.
Em estreita relação com as autodefesas, as autonomias se multiplicam. No norte do Peru, temos há quatro anos o Gobierno Territorial Autónomo de la Nación Wampis [Governo territorial autônomo da nação wampis], caminho seguido por outros três povos amazônicos. Além disso, há muitas autonomias de fato que não se definem desse modo, mas funcionam. Como determinar o que acontece entre os Munduruku ou entre os Tupinambá da Serra do Padeiro, na Bahia? Ou em vários quilombos e em todo o continente? À medida que avançam a espoliação e a ultradireita, os povos intensificam sua inflexão autônoma. Simplesmente porque eles não têm outro caminho para se defender e continuar a ser povos.
A reflexão sobre os movimentos e as revoltas associados a povos indígenas é muito importante em sua obra. O que para você parece singular na experiência não só dos povos indígenas, mas de todos os povos que se diferenciam de modo mais destacado ao que chamamos de Ocidente, e o que nessas experiências pode apontar para um alargamento dos modos de pensar e fazer política? Quais os diálogos e os encontros desejáveis entre essas formas de luta e a tradição dos movimentos de esquerda de origem europeia diante da profunda corrosão das formas democráticas que hoje nos atravessa na América Latina e no mundo?
RZ Os territórios, a territorialização de povos, classes, cores de pele e gêneros. Diria que sem territórios não somos nada, não conseguimos nos ancorar como sujeitos coletivos e nos desmanchamos no ar, como dizia Marx. A classe operária foi derrotada quando conseguiram neutralizar seus espaços, como as tabernas, e quando desterritorializam a fábrica, fragmentando o processo produtivo. A força operária nunca esteve apenas na fábrica. Sem o bairro operário, sem a sociabilidade densa entre famílias, nunca teria acontecido algo que chamamos de poder operário. Os sovietes eram territoriais, correspondiam a uma região operária, como os Cordones Industriales,2 no Chile de Salvador Allende, ou o ABC paulista durante a última ditadura.
Existe uma fantasia que situa os sindicatos como chave da luta de classes, algo não demonstrado pelas pesquisas empíricas sobre a classe operária. A potência da classe foi constituída pelas comunidades em seus territórios, muitos deles ao redor ou próximos das fábricas. Aliás, os sindicatos continuam a existir, mas, se não há comunidades operárias, eles não têm a menor força, nem mesmo representatividade. Estudei durante sete anos em uma comunidade operária em uma pequena cidade que girava em torno de duas fábricas, as maiores de seu ramo no Uruguai (Zibechi, 2006). Consultei arquivos sindicais de trinta anos e pude ver como o sindicato era uma casca, que se dedicava a negociar com a entidade patronal quando os operários e as operárias das camadas mais baixas colocavam a fábrica de pernas para o ar com greves selvagens, enfrentando o despotismo dos capatazes. As pessoas não se levantam contra um sistema, ao menos não inicialmente, mas contra a opressão concreta: dos capatazes, dos policiais, como agora nos Estados Unidos, dos machos alfa, do poder direto que as oprime. Não existe uma luta contra o patriarcado ou contra o capitalismo em abstrato, a não ser na cabeça de alguns intelectuais de esquerda. Uma das conclusões a que cheguei é que a luta era mais potente quando os operários eram uma multidão (organizada informalmente em suas redes de amizades “naturais”) do que quando se transformam em “classe” hierarquizada e institucionalizada no sindicato.
Depois de toda essa volta, vejo que agora na Europa começam a existir movimentos territoriais, sobretudo depois da crise de 2008. Hortas urbanas e, especificamente nas periferias, espaços públicos resgatados pelos vizinhos para um lazer não mercantil, além de edifícios autogeridos, fábricas e fazendas recuperadas e até um bairro inteiro Errekaleor, em Vitoria-Gaistez, no País Basco, uma experiência magnífica. Vi isso apenas na Itália, na Grécia e no Estado espanhol, mas antes essas iniciativas não existiam.
Com essa territorialização, o vínculo entre movimentos da Europa e da América Latina começa a mudar. Antes a relação era de solidariedade daqueles conosco, que se mantém, mas sempre unilateral e monetária, o que provoca situações horríveis nas quais algumas pessoas se aproveitam e muitas ficam à margem. Essa é uma das razões que levaram os zapatistas a criar as Juntas de Buen Gobierno [Conselhos de bom governo], para superar a sacrossanta solidariedade entre esquerdas institucionais e ONGs. Agora começamos a fazer coisas mais interessantes, trocar experiências, aprender como fazem em cada local para superar as dificuldades, ou seja, começamos a nos irmanar, um tipo de vínculo muito mais profundo e criativo.
Você costuma colocar em suas análises que a questão do território é central para a existência dos movimentos autônomos. Em alguns momentos você formula essa questão utilizando a metáfora dos territórios como “arcas”, espaço para os povos se protegerem do dilúvio capitalista. Ao mesmo tempo que essa imagem dialoga com a crise climática, ela abre espaço para uma leitura de descrença nas disputas que possam alterar a produção desse cataclismo. Davi Kopenawa Yanomami vem afirmando que o aumento desenfreado da destruição produzida pelo capitalismo faz com que não haja nenhum lugar seguro para se refugiar. Seja nas cidades ou nas florestas, o céu cairá sobre a cabeça de todos. Desse modo, seria possível pensar ações políticas produzidas por esses territórios-refúgios que apontem para além de si mesmos? Ações com potência de intervir sobre esse mundo, o qual caminha para uma iminente queda do céu?
RZ É evidente que os povos sabem muito mais do que nós. O que é dito por Davi é absolutamente correto. Já não existe algo externo ao material. Além disso, e isso é terrível, a destruição não depende mais apenas do capital, mas daquilo que perturbava Pasolini: a mutação antropológica implicada pelo consumismo. Pretender evitar o colapso é inútil, porque deveríamos convencer a maioria qualificada da população mundial a tomar outro rumo. Impossível. A degradação do ser humano é demasiada para que se mudem os modos de vida sem uma catástrofe. Mais ainda, duvido que uma catástrofe possa nos mudar. Nesse sentido, parece-me que pensamentos como os de Slavoj Žižek não levam a nada, porque não estão amparados na realidade. Refiro-me àquela afirmação de que agora as pessoas vão compreender que não é possível continuar assim. Não, isso não funciona porque o sistema nos confinou, mas nos deu uma janela diabólica: a internet.
É a maior droga já inventada. Os que estão fazendo algo diferente são, justamente, os povos que têm “carência” de internet, os que não dependem dela porque têm uma conexão péssima ou inexistente ou porque vivem na natureza, muito superior à tela por nos conectar a nós mesmos, a nossos amigos e companheiros e a todo o mundo, a partir do coração e das emoções. A emoção/natureza, bem como a emoção/amor, é insubstituível, e apenas quando nos amputamos dessa dimensão podemos nos transformar em prisioneiros de algo tão pobre como uma tela.
Durante mais de 25 anos, os zapatistas tentaram fazer isso que vocês dizem: juntar-se a outros para fazer alguma intervenção no cenário político. O resultado, como sabem, é muito pobre. Aqui quero propor algo distinto ao que Davi diz: é certo que já não existem lugares seguros, mas podemos criá-los. Se não o fizermos, desapareceremos como espécie, pelo menos como tem sido a comunidade de seres humanos até não muito tempo atrás. Quero dizer que o governo wampis, os territórios da Serra do Padeiro, as autonomias nasa e zapatistas são criações das três últimas décadas, espaços e territórios que não existiam previamente.
Pelo que posso intuir, apenas várias intervenções nessa direção podem criar um conjunto de espaços que serão seguros não por razões técnicas, mas políticas, pelos laços de confiança e de comunidade que somos capazes de criar. As arcas não são construções fortes, com materiais à prova de bombas ou tsunamis, mas vínculos sólidos para resolver os problemas entre aqueles que estão no território que resiste.
Persistem no campo das esquerdas na América Latina diversos movimentos e tendências que, a despeito de divergências táticas e estratégicas, têm em comum a rejeição ou a incapacidade de atuar por meio de formas políticas que não desejam unificar, homogeneizar, reduzir as diferenças. Em muitos movimentos sociais, as imagens de “politização” têm a ver com o processo levado a cabo por forças centrípetas externas que seriam capazes de integrar “partes” ao “todo”, fazendo com que indivíduos aparentemente desorganizados, demasiado conectados com a “experiência” e as “necessidades”, superem sua suposta disfuncionalidade política para assim se tornarem “maiorias”. Em seus textos, entretanto, você chama a atenção para a existência de outro modo de pensar e fazer política que passa não por essa reverência ao ideal do “Um”, como aponta Pierre Clastres, mas pela potência de ser outro, de produzir diferenças: “um mundo onde caibam muitos mundos”, como dizem os zapatistas. Seriam, assim, modos de agir politicamente que não estão apartados do cotidiano, ao contrário, são feitos por meio dele, uma política que não opõe os imperativos da luta à potência de diferenciação da vida, mas faz dessa relação sua maior força.
Seria possível pensar esse como um dos mais significativos contrastes nas imaginações revolucionárias hoje? Quais seriam os êxitos mais destacados dos movimentos que não se deixam sequestrar pelo ideal do “Um”, pela necessidade de ser Estado, e poderiam expandir a imaginação revolucionária da esquerda, atualmente tão empobrecida?
RZ Além de evitar cair no conceito de “Um”, Estado, partido ou exército revolucionário, acredito que devemos recusar a ideia de “Uma” sociedade. As duas ideias deveriam caminhar juntas. Recusar a unidade e a homogeneização — ambas vão de mãos dadas — implica apostar na diversidade e em um conceito de totalidade diferente do herdado por nós da Europa. São os temas de Aníbal Quijano, que nos fala sobre uma totalidade integrada por partes que não são idênticas, mas heterogêneas. Aqui o conceito de heterogeneidade é tão importante quanto o de totalidade.
Me explico melhor com exemplos. Em sociedades homogêneas, a totalidade se impõe sobre as partes porque existe apenas uma lógica, pois as partes têm características similares ao todo, a ponto de o todo estar nas partes, e estas são partes da totalidade. Mas na nossa América Latina, onde temos enorme heterogeneidade histórica (povos oriundos de vários continentes, com histórias diversas) somada à heterogeneidade estrutural (cinco relações de trabalho, quatro delas não salariais), a totalidade não é capaz de refletir essa diversidade. Nem mesmo os Estados plurinacionais, que estão armados sobre a matriz estatal, adornada com cores diversas.
Por isso, como afirma Quijano, a revolução não pode consistir na saída de uma totalidade (capitalismo) do cenário social para dar lugar a outra totalidade (socialismo, digamos). Isso não funciona, nem pode funcionar. “Os processos de mudança não podem consistir na transformação de uma totalidade historicamente homogênea em outra equivalente, seja gradual ou continuamente, seja por saltos e rupturas”, diz o sociólogo peruano.
Isso é o que vemos nos feminismos e o que vivi em Chiapas. É evidente que o mundo das mulheres muda, mas de maneira muito heterogênea. É impossível que todas as mulheres, de todos os setores sociais, geográficos, de faixas etárias e dos diversos povos, movam-se para a mesma direção. Seria preciso impor a mudança, como foi feito na União Soviética. As mulheres mapuche têm uma história, e as operárias, outra, com relações familiares muito diferentes, e relações sociais e com o meio bastante distintas e até contraditórias.
Nas comunidades zapatistas, predomina a heterogeneidade. É muito difícil encontrar uma comunidade em que todas as famílias sejam zapatistas. Ali a questão é como se relacionam com os que são pró-governo ou indiferentes, ou evangélicos, ou seja o que for. Além disso, cada povo maia, em cada geografia, encara as coisas de modo distinto, mesmo que seja zapatista.
Em síntese: continuamos a ser demasiado eurocêntricos, demasiado “Um”, pensando ser ainda possível falar na América Latina como uma sociedade da qual todos nos sentimos parte. Que isso aconteça depois de cinco séculos pode ser desmoralizante, triste ou o que queiram, mas a realidade é irredutível.
Referência
Zibechi, Raúl. De multitud a clase: formación y crisis de una comunidad obrera, Juan Lacaze (1905-2005). Montevidéu: Ediciones Ideas, 2006.
1 O jornal mexicano La Jornada publicou em 2001 fragmentos do discurso do subcomandante Marcos que detalham a visão dos zapatistas sobre o tema. Após a Terceira Guerra Mundial (a Guerra Fria), a liderança zapatista afirma que a Quarta Guerra busca tomar territórios para impor a globalização, vista aqui como universalização do mercado. (Subcomandante insurgente Marcos, “La Quarta Guerra Mundial”, La Jornada, 23 out. 2001) [n.t.]
2 Órgãos que administravam fábricas com autogestão dos operários durante o governo de Salvador Allende (1970-1973). [n.t.]