fbpx
Cena do documentário "Marcha cega", de Gabriel Di Giacomo

Enxergar é preciso

Por Natalia Timerman

—————————————————
Memória ocular: cenas de um Estado que cega
Sérgio Silva & Tadeu Breda
Elefante, 2018, 232 pp.
—————————————————

O que fazer com a revolta que tem nos acompanhado cotidianamente, esse embrulho raivoso no estômago bipartido em paralisia e ânsia de socar? Em Memória ocular: cenas de um Estado que cega, a revolta vira palavra e imagem.

Começando pelas fotografias iniciais do livro, sequência impressionante clicada por Sérgio Silva minutos, segundos, milésimos antes de perder o olho para uma bala de borracha disparada pela Polícia Militar em 13 de junho de 2013. Imagens que fotografam a própria cegueira de Sérgio — e também a nossa, o lado oposto da lente, a cara abismada e silenciosa de quem vê.

A falta do olho grita, mas incomoda também nos detalhes. É através deles que acompanhamos a trajetória dos autores na reconstrução instantânea e política do tiro e do que veio depois.

Tadeu Breda refaz o percurso de Sérgio desde que o olho se perdeu: a dor, os momentos iniciais, o socorro por um desconhecido, o caminho até o hospital, e acompanha as consequências da mutilação ao longo do tempo, como o medo, as marcas psicológicas de ter sido cegado e o desafio de superá-las.

Uma superação de muitas batalhas: primeiro, a batalha cotidiana de adaptação prática a ter de repente um olho só, que abrange desde a colher que esbarra na xícara até o trabalho como fotógrafo; depois, a batalha judicial, que, ao invés de remediar, atualiza e aumenta a revolta; e, enfim, a luta contra o estigma: esta principalmente contra si mesmo.

Sérgio vive a constante ambiguidade de se saber personagem e de buscar fugir de rótulos procurando outros apostos para si que não “aquele-fotógrafo-que-perdeu-o-olho”.

A divisão cronológica dos capítulos retoma o que se perdeu e o que ainda se tenta compreender e transformar, numa investigação minuciosa e cuidadosa. Como antídoto para a dificuldade de se contar uma narrativa ainda em curso, Tadeu Breda busca ouvir todos os lados, logrando uma visão acurada e o mais abrangente possível do que se faz história diante dos nossos olhos — mas não mais em um dos de Sérgio.

Mais que um olho, compreendemos ao ler, apagou-se a possibilidade de um olhar: olhar que o próprio livro tenta resgatar, remédio para o que nas mesmas páginas se problematiza.

Mas não espere o leitor que a revolta se apazigue com Memória ocular. Ela é revolvida e só aumenta na medida em que tomamos conhecimento da linha policial que impediu socorro imediato a Sérgio, dos soldados que vêm a câmera como arma de que se defender, das investigações sigilosas pelas próprias instituições investigadas e do absurdo périplo judicial que atualiza em Sérgio a condição de vítima.

O livro, além de pesquisa, é um diário que, como fotografia, retrata a transformação que a violência perpetra na vida de uma pessoa: a violência estatal, que conta com o agravante de ser originada do lugar de que deveríamos esperar proteção, multiplicando o desamparo causado por ela. Essa violência estatal que, lamentável mas não surpreendente, segue crescendo.

Memória ocular, em sua segunda edição, é a concretização do sonho do escritor de não ficção: continuar contando uma história que, afinal, ainda se constrói, abarcando até a repercussão do primeiro lançamento, num relato emocionante da noite festiva no mesmo lugar onde, três anos antes, se dava a tragédia de Sérgio — e a nossa.

O olho de Sérgio é o ponto cego detrás de que se abre sombra para a violência de Estado que se manifesta cotidianamente, nas leis que só funcionam para alguns, nas prisões arbitrárias (e nas condições das prisões), na matança de crianças e jovens. O pesadelo de Sérgio é o nosso, o que faz de Memória ocular um livro que não se fecha quando tentamos juntar uma capa à outra. O buraco da cegueira continua nos tragando, sua sombra continua incidindo sobre todos nós.

Memória ocular não foge tampouco à atual e necessária discussão sobre a culpabilização de vítimas pela violência sofrida, desvelando o Estado como agente desse perverso mecanismo. O Estado encobre o Estado e inviabiliza o registro da história vindoura: uma sentença judicial que responsabiliza repórteres por lesões sofridas na cobertura de conflitos é uma tentativa de apagar também as imagens futuras.

Como num fractal, a violência da repressão das manifestações de junho de 2013 se repete e confirma nas mais altas instituições do país. A revolta aumenta diante de cada derrota de Sérgio na justiça. É a violência de Estado ecoando em todos os seus meandros, estraçalhando o significado da justiça e das instituições que a deveriam representar.

O ferimento de Sérgio (e de Deborah, e Gustavo, e Juliana, e Vitor, também retratados no livro, e de tantos outros) nos pergunta: o que é que não podemos ver? Ao que parece, não querem que vejamos a escancarada violação de direitos constitucionais pelo próprio Estado que os deveria garantir.

É contra essa cegueira que vem a Memória ocular.

 

Natalia Timerman é autora de Desterros: histórias de um hospital-prisão (Elefante, 2017)

Também pode te interessar