Fazer uma dieta ultraprocessada deixou este médico doente. Agora ele está investigando o por quê

Por Alisson Aubrey
Publicado em NPR

 

O consumo de alimentos processados não é novidade. Os seres humanos têm triturado e amassado grãos para fazer pão há milhares de anos. Mas, nas últimas décadas, nosso suprimento de alimentos mudou, com um número cada vez maior de produtos ultraprocessados feitos com preenchimentos, aditivos, estabilizantes e ingredientes sintéticos que nossos avós não reconheceriam.

Uma análise recente da Access to Nutrition Initiative constatou que cerca de 70% dos produtos alimentícios vendidos nos Estados Unidos não são saudáveis – e uma grande parte destes alimentos pode ser classificada como ultraprocessada (ou AUP). Em meio ao boom global de doenças relacionadas à alimentação, incluindo obesidade e diabetes tipo 2, Chris van Tulleken, autor do livro Gente ultraprocessada, transformou-se em cobaia para um breve experimento de um mês.

Van Tulleken, médico infectologista na faixa dos 40 anos, trocou sua dieta normal e saudável, repleta de frutas, legumes, proteínas magras e grãos integrais, por alimentos que vinham principalmente de pacotes, caixas e garrafas. Conversamos com sobre o seu livro e o seu experimento.

Observação: há um sistema de classificação formal usado por pesquisadores que categoriza os alimentos em uma das quatro categorias, desde os não processados e minimamente processados até os ultraprocessados.

 

Como exatamente sua dieta mudou – o que você comeu?

Comecei a comer mais lanches, então fazia lanches no meio da manhã. E voltei a comer um tipo de cereal que adorava quando criança, então comia meu cereal matinal com cobertura de chocolate. Tomei mais refrigerante. E fiz pequenas trocas. Por exemplo, em vez de comer nozes como lanche, eu comia batatas fritas. E, à noite, eu comia muito mais alimentos de conveniência, de modo que ainda estava comendo alguns vegetais, mas comia lasanha no micro-ondas, frango frito, ou pizza para viagem.

No geral, cerca de 80% das minhas calorias vinham de alimentos ultraprocessados, e isso é muito fácil de fazer. A maioria dos pães do supermercado é ultraprocessada, quase todos os nossos cereais matinais e lanches são ultraprocessados e a maioria dos nossos alimentos de conveniência também é ultraprocessada.

 

Em seu livro, você descreve como ganhou peso, o que não é muito surpreendente, considerando os alimentos que consumia. Você também monitorou o que aconteceu com seus hormônios intestinais. O que descobriu e como se sentiu?

Eu me senti muito mal, muito rapidamente. Eu me sentia péssimo. Parei de dormir, desenvolvi ansiedade e fiquei muito infeliz. Fui o paciente piloto de um estudo que estou realizando com colegas da University College London. Descobrimos que havia efeitos nos meus hormônios intestinais. Portanto, dentro de todos os nossos corpos, temos hormônios que nos dizem quando devemos parar de comer. Eles são muito bem desenvolvidos. Todos os animais possuem estes hormônios e os alimentos ultraprocessados interferem neles. Portanto, ao final de uma refeição, meus hormônios da fome ainda se encontravam muito altos.

 

Isso parece muito dramático. Por que você acha que ficou com vontade de comer mais, se já havia ingerido calorias suficientes?

Acho que muitos desses alimentos foram projetados para estimular o consumo excessivo. Esses alimentos são densos em energia. São cheios de gordura, sal e açúcar. Portanto, você pode consumir calorias em uma taxa muito maior do que quando come alimentos integrais. Além disso, os alimentos ultraprocessados geralmente são processados em partículas muito menores. Portanto, podem estar sendo absorvidos em uma parte do intestino diferente da parte que libera o sinal de saciedade. Portanto, suspeito que você esteja ingerindo esses alimentos mais rapidamente do que a capacidade do seu corpo de enviar um sinal ao cérebro dizendo: “já estou satisfeito”.

 

Isso se encaixa na evidência de que alimentos cheios de carboidratos refinados, como pão, biscoitos e batatas fritas – que é basicamente o que muitos dos alimentos ultraprocessados são constituídos – podem aumentar o açúcar no sangue e a insulina, o que também pode estimular o apetite. O que há de novo aqui?

Há um cientista muito conceituado, Kevin Hall, nos Estados Unidos, que realizou um estudo clínico e descobriu que quando as pessoas seguem uma dieta de alimentos ultraprocessados, elas consomem cerca de 500 calorias a mais por dia, em comparação com pessoas que seguem uma dieta de alimentos integrais, consumindo as mesmas quantidades de gordura, sal, açúcar e fibras. E há muitas evidências epidemiológicas que mostram que os alimentos ultraprocessados interferem na capacidade do nosso corpo de dizer: “Sabe de uma coisa, já posso parar de comer!”.

 

Estas são evidências de um estudo pequeno, com 20 pessoas. Vocês estão investigando isso mais a fundo?

Sim, estávamos coletando dados para obter financiamento para um estudo maior que estamos realizando agora.

Observação: Van Tulleken e seus colegas estão recrutando participantes para investigar os efeitos de uma dieta ultraprocessada em comparação com uma dieta minimamente processada no Reino Unido. Os pesquisadores afirmam que será o mais longo teste de dieta com alimentos ultraprocessados e o primeiro a ajudar as pessoas a reduzir o seu consumo.

 

Se os alimentos ultraprocessados tivessem o mesmo efeito sobre todos, não seria de se esperar que toda a população ganhasse peso e se tornasse pouco saudável, ou as pessoas reagem de forma diferente?

Acho que há dois grupos de adultos. Muitas pessoas poderão ter uma relação com os alimentos ultraprocessados que é semelhante à relação com o álcool. Muitas pessoas podem simplesmente desfrutar de duas taças de vinho ou uma garrafa de cerveja em uma sexta-feira à noite, e tudo bem. Elas podem ter esta relação com estas substâncias. Mas muitas pessoas reconhecerão que, na verdade, sua relação com esses produtos alimentícios é naturalmente muito mais viciante.

 

Mas, como sociedade, será que podemos realmente voltar aos alimentos integrais ou às dietas compostas de alimentos minimamente processados?

Não existe um limite absolutamente claro entre o processamento tradicional de alimentos e os alimentos ultraprocessados. Nós cortamos, cozinhamos, defumamos, fazemos picles, salgamos, moemos, pulverizamos – fazemos tudo isso há milênios e temos que fazer isso. Portanto, o processamento é bom. Mas o ultraprocessamento se trata dos alimentos feitos em fábricas. São embalados em plástico. Contém aditivos que você não encontra nas cozinhas. E o objetivo deste tipo de produção de alimento é o lucro. Portanto, eu como queijo, mas não como queijo processado. Eu como manteiga, mas não como margarina. Eu como pão de farinha tradicional, mas não como pão emulsificado de supermercado.

 

Há várias causas para a obesidade, e algumas delas estão ligadas à insegurança alimentar. As pessoas que têm menos dinheiro para gastar com mantimentos geralmente compram os alimentos mais processados e que podem ser estocados nas prateleiras porque são mais baratos. Você acha que os governos devem intervir para regulamentar?

Precisamos que os governos comecem a tratar os AUP um pouco como o tabaco. Precisamos limitar a comercialização destes produtos e mudar a rotulagem das embalagens. A coisa mais simples é fazer o que o Chile está fazendo. Eles colocaram um rótulo de hexágono preto nas embalagens de alimentos ultraprocessados. Portanto, os governos não devem proibir ou taxar os alimentos, pois é verdade que eles são os únicos alimentos acessíveis para muitas pessoas. Mas os governos podem começar a alertar as pessoas de que efeitos negativos para a saúde estão fortemente associados a eles.

 

Capa da edição brasileira de “Gente Ultraprocessada”, lançamento da Elefante.

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