Por Anna Ortega
Nonada Jornalismo

Se Ani encontrasse bell hooks mostraria a ela uma de suas pinturas de mulheres negras vivendo momentos de amor. Se Luciana estivesse com bell hooks, contaria a ela que, junto a um grupo de pesquisadoras de várias regiões do Brasil, criaram um coletivo com o seu nome. Se Ana dividisse uma mesa com a escritora, leria para ela um de seus poemas e contaria que, assim como bell hooks, ela é escritora, pesquisadora e professora. Se Alan encontrasse bell diria que mergulhar em sua obra foi fundamental para a pesquisa dele sobre masculinidades negras.

Em dezembro, completou um ano do falecimento de uma das escritoras mais importantes do nosso tempo. bell hooks [a autora sempre grafava seu nome em minúsculo] nasceu e viveu nos Estados Unidos, mas desde que foi traduzida para o português, seu pensamento começou a chegar com mais força no Brasil. Teórica do feminismo, autora de mais de 30 livros, ela nunca restringiu-se a um só tema para suas análises de raça, classe e gênero. Desde os anos 1980, debruçou-se sobre questões da cultura, da espiritualidade, da mídia, da arte e foi responsável por termos hoje muito utilizados nos estudos de raça, como o conceito de patriarcado capitalista supremacista branco.

Falar sobre o impacto de bell hooks é encontrar histórias de afeto. A pensadora estadunidense, que teve 9 livros traduzidos nos últimos três anos pela editora Elefante, não é apenas uma referência bibliográfica distante para quem a lê. Torna-se uma referência de vida, causando a impressão de que, ao lê-la, é possível também conhecê-la. Sua teoria não se distancia de sua própria vida – pelo contrário, está sempre conectada com ela. Talvez por isso, escritores, artistas e pesquisadores que trabalham com a obra de bell hooks falem de “bell” como uma amiga, escrevam cartas a ela e levam seu pensamento para o dia a dia de suas vidas.

“bell hooks propõe que a gente se reúna a partir de nossas diferenças”

Quando Luciana Rodrigues encontrou outras pessoas na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs) que estavam lendo obras de bell hooks, sentiu a vontade de colocar em prática o que a escritora provoca em livros como Ensinando a Transgredir: ela diz que é preciso ler, pensar e criar em comunidade.

Luciana é professora de psicologia e pesquisadora e foi uma das fundadoras do coletivo de extensão “bell hooks: formação e políticas de cuidado”, criado em 2020. “Ele nasce do desejo de algumas mulheres que, a partir dos ensinamentos da bell hooks, desejam produzir um outro espaço dentro da universidade, que continua sendo acadêmico, mas que possa se colocar no enfrentamento das políticas de dominação e as violências que tantas de nós acaba testemunhando”, explica.

Elas acreditam que o coletivo pode ser um lugar para trabalhar na ética do amor, do cuidado e do acolhimento propostas por bell hooks. Inicialmente aberto para mulheres negras estudantes da pós e na graduação, as atividades do projeto têm sempre como ponto de partida um dos livros de bell hooks. O primeiro lido pelo grupo foi Erguer a voz: pensar como feminista, pensar como negra. Foram oito encontros virtuais, seguidos por partilhas de histórias pessoais das participantes.

Mesmo que online, para receber pessoas de todo país, a proposta do coletivo é que os encontros se pareçam mais com rodas de partilha, e menos com aulas no formato tradicional de ensino. “Nos pautamos em alguns princípios colocados na obra dela, e um deles é que a transformação não precisa ser solitária. A gente precisa estar em comunidade – e não no sentido romantizado, onde todo mundo pensa da mesma forma, onde não há conflito. É justamente o contrário disso. bell hooks propõe que a gente se reúna a partir de nossas diferenças.”

Outro livro lido coletivamente foi Tudo sobre o amor: novas perspectivas, uma das traduções mais recentes e populares no Brasil. O convite, desta vez, foi para pessoas fora da universidade, em especial mulheres trabalhadoras nas áreas do cuidado, como as que trabalham em unidades de saúde do SUS. O grupo reuniu pessoas da Paraíba, Bahia, Pernambuco, Rio Grande do Sul, de diferentes áreas de atuação. Os grupos tendem a ser pequenos, de no máximo 25 pessoas, para que se crie um espaço de maior intimidade na partilha. “Foi emocionante porque lemos o livro juntas para pensar como a gente faz para ofertar amor e muitas de nós fomos questionando o que nos foi ensinado como amor”, lembra Luciana.

Um dos aspectos que Luciana destaca sobre a importância da obra de bell hooks é que a autora convoca o leitor a repensar suas próprias práticas no mundo. E esse processo pode ser doloroso ou difícil quando feito sozinho. “As pessoas que participaram das ações de extensão do coletivo sempre marcam o quanto se sentem mobilizadas nos encontros, porque a gente precisa olhar para nossas próprias ações, para como a gente se relaciona com as outras pessoas. A partir do que a bell hooks nos coloca, a gente acredita que a possibilidade passa pela mudança com a gente mesmo e com o que temos aprendido em uma sociedade com uma lógica colonizadora.” Uma das atividades mais recentes do grupo foi a escrita de cartas para a autora, como forma de celebrar a sua vida e homenageá-la.

“A bell hooks fala que precisamos olhar para a potencial dominadora que tem dentro de nós mesmas, e também para a potencial vítima. Mas esse exercício inclui a gente ter coragem e fortalecimento junto a outras pessoas para poder fazer isso e apostar em outras relações pautadas no cuidado”, destaca Luciana.

“bell hooks me ensinou que tudo bem falar sobre amor em meu trabalho”

“Este é o presente mais precioso que o amor verdadeiro nos oferece: a experiência de saber que sempre fazemos parte […] O amor é uma ação, uma emoção participativa”, diz bell hooks no livro Tudo Sobre o Amor. O encontro da artista visual Ani Ganzala com a escritora foi a partir da produção da autora sobre o amor. Ani já pintava relações de afeto, mas quando leu bell hooks teve um estalo sobre sua própria produção artística: falar de amor também é político. “Ela é uma referência porque consegue teorizar os temas da afetividade e pensar nas ideias de comunidade, família, cultura. Ela pensa como o afeto vai interrompendo ciclos de violência e traumas que não são mais nossos.”

“Muitas vezes, a gente coloca o político apenas nas pautas da violência – o que é legítimo também, mas ela nos faz entender que falar sobre amor também é extremamente político.” A afetividade que Ani aborda em suas telas liga-se a bell hooks pelo entendimento de que o amor existe além do romântico. Um dos temas que a artista aborda é sua espiritualidade afro religiosa. Outro é o amor entre mulheres negras. As imagens de Ani são coloridas, oníricas, e frequentemente revelam corpos ternos, que se abraçam e se acariciam. As palavras de bell hooks também.

“bell hooks me ensinou que tudo bem falar sobre amor e que eu não precisava trazer outras temáticas que me machucavam e não me traziam ideias de cura”, conta Ani. “Eu não queria reviver traumas e feridas para legitimar o meu trabalho. Foi aí que decidi que queria falar a partir do amor enquanto ação, como diz bell hooks”.

Como mulher lésbica, que aborda o amor sapatão em suas obras, Ani enxerga os conceitos de autora muito concretos em sua realidade. “Amar uma outra mulher é sempre uma construção. Não tem nada pronto ali, é sempre um caminho, uma trilha. É assim que a gente vai construindo um caminho de cura, de escuta, de acolhimento. O amor nunca foi fácil, nunca foi dado, bell hooks nos lembra. Eu tive que inventar o amor para mim. E mudar tudo que me foi ensinado, assim como a maioria. É um trabalho pessoal e comunitário”, reflete a a artista, que mora em Cachoeira, na Bahia.

“bell hooks nos faz nos tornamos sujeitos através da escrita”

Durante a pesquisa de mestrado, a escritora Ana Dos Santos conheceu a obra da escritora bell hooks. Uma é poetisa e professora do sul do Brasil. A outra foi poetisa e professora na América do Norte. Mas, antes disso, tem algo que as liga já pelo nome: bell hooks, chamava-se Gloria Jean Watkins, mas adotou o pseudônimo em homenagem à sua avó – referência que teve a vida inteira. Ana, quando precisou escolher um nome para assinar seus livros, também escolheu seu sobrenome pensando no avô, Dos Santos. Em maiúsculo, um nome que evoca sua ancestralidade negra paterna e que escolheu para que seguisse adiante com ela, longe do esquecimento.

Ver-se na trajetória de bell hooks foi uma forma de aproximação com a obra dela, conta Ana. “Assim como a bell hooks, eu sou escritora, pesquisadora, professora. E o pensamento dela como uma mulher negra amefricana, como diria Lélia Gonzalez, é um pensamento sobre a interseccionalidade que nos atravessa.” Ana leva bell hooks frequentemente para conversar com outras intelectuais negras, como Conceição Evaristo. O conceito de escrevivência de Conceição pode ser percebido em hooks, e a relação com autoras daqui também mostra como o pensamento de bell hooks dialoga com questões do Brasil. “Ela é essa intelectual que a gente lê sabendo que vive o que está escrevendo. bell hooks tem uma escrita muito orgânica, em que ela fala de si, mas também fala da comunidade.”

“a bell hooks traz a questão de deixarmos de ser objetos subalternizados e nos tornamos sujeitos através da escrita. Ao mesmo tempo que ela está se tornando professora, ela está escrevendo seu livro de poemas. A escrita é uma necessidade.”

As reflexões sobre educação são também centrais no legado deixado por hooks. Como professora de literatura do Ensino Médio, Ana acredita que o pensamento da autora propõe novas práticas para os educadores. Profundamente influenciada por Paulo Freire – que por sua vez, lembra Ana, leu Frantz Fanon, bell hooks teoriza sobre um educação antirracista, feminista e libertadora. “A proposta de bell hooks de sermos educadores amorosos abre o pensamento da gente. Ela amplia o conceito de amor para pensar comunidade. E nós estamos levando essas pesquisas para sala de aula”, conta Ana.

“bell hooks entende que é preciso sair do estereótipo da masculinidade e se perguntar: ‘O que os homens negros estão pensando?”

Alan Ribeiro conheceu a obra de bell hooks em 2012, quando ainda não havia chegado a tradução para o português. O encontro do professor da Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA) com a obra de hooks foi durante o doutorado, enquanto ele estudava sobre as classes médias negras de Belém. “Uma das perguntas que queria responder era: é diferente ser homem negro quando você não é pobre? Quando você vivencia experiências de racismo, o gênero é importante para entender essas experiências? A classe te ajuda ou te atrapalha nesse processo?”, lembra. “Intelectuais como bell hooks e Patricia Collins me ajudaram a compreender como a macheza e a pobreza se relacionam com o racismo”, conta.

O foco da pesquisa de Alan é a construção das masculinidades negras. Embora seja mais conhecida sua produção sobre os feminismos, graças a livros como O feminismo é para todo mundo: políticas arrebatadoras e Eu não sou uma mulher? , um de seus grandes temas de estudo foram os homens negros nos Estados Unidos. Já nos anos 90, bell hooks critica a teoria do feminismo liberal branco como universal e diz que há uma atitude ‘anti-homem’ que só serve para as mulheres brancas usurparem o poder dos homens brancos.

“bell hooks é uma intelectual que fala de coisas muito complexas, mandando mensagens muito literais”, explica Alan. A linguagem e a escrita utilizadas por hooks, inclusive, foram duramente criticadas por intelectuais brancas, que não a consideravam “acadêmica o suficiente”. Como outras contemporâneas, a autora questiona o posicionamento das mulheres brancas na sociedade.

“Ela vai dizer que a postura de condenação de ‘morte aos homens’, do feminismo branco, a polícia norte americana já tem. O Brasil também já tem essa postura de morte aos homens. Os homens negros há muito tempo estão sendo vítimas dessa postura”, explica o professor. “Quando essas mulheres postulam isso, elas se aproximam do racismo que alimenta a brutalidade policial.”

bell hooks não se intitula como filósofa “interseccional”, como Angela Davis, por exemplo, mas todo seu pensamento é estruturado pensando as diferentes estruturas da sociedade. Para Alan, essa é uma lição que a escritora ensina para acadêmicos: “A bell hooks tem um grande ensinamento que é: não precisa dizer que estou fazendo algo, quando estou fazendo. Se eu estiver fazendo, vocês vão verificar. bell hooks faz uma análise interseccional, mas sem falar que está fazendo.”

Por que ler bell hooks? Alan diz: “bell hooks te instiga, te faz pensar e repensar. Quando você pensa em rap, samba, pagode você vai pensar em homens negros. Agora, bell hooks chama atenção para como isso pode reproduzir certos problemas, porque esses homens são vistos como cultura e não como humanos”, analisa.

“bell hooks traz cenas da experiência cotidiana para entender como funciona a destruição do que ela chama de energia do amor, de capacidades de conexão com o subjetivo e emocional. E faz isso partir das experiências de homens negros. Ela coloca as relações no centro das discussões e entende que é preciso sair do estereótipo da masculinidade e se perguntar: ‘O que os homens negros estão pensando?”, resume Alan sobre o livro A gente é da hora.

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