Por João Peres
O livro Uberização: a nova onda do trabalho precarizado desmente a tese recém-divulgada pelo Ministério da Fazenda de que a desregulação do serviço de táxis é a melhor solução para lidar com o rápido crescimento do serviço de aplicativos. Enquanto o governo golpista de Michel Temer advoga por deixar à mão invisível e espertinha mais um pedacinho de nossas vidas, o trabalho do pesquisador britânico-canadense Tom Slee mostra que a retirada de regras resulta em uma terra-de-ninguém onde se salva quem pode, ou seja, quem tem mais dinheiro.
O livro, que será lançado pela Editora Elefante na próxima terça-feira, dia 24 de outubro, resume o cenário pretendido pelo governo Temer em três consequências: um grande número de carros vazios nas ruas, longas filas nos pontos e uma competição agressiva por passageiros. Os estudos elencados por Slee vão na contramão dos apresentados pelo ministério do golpista Henrique Meirelles.
No final de setembro, o jornal O Globo publicou reportagem sobre a posição defendida pelo governo em parecer enviado ao Supremo Tribunal Federal. O relatório, que encampa de cabo a rabo os argumentos da megacorporação Uber, foi apresentado em ação movida pelo partido PSL em benefício dos aplicativos de transporte.
“A tecnologia pode viabilizar a substituição do controle concentrado de qualidade realizado pelo Estado. Mecanismos difusos de análise de precedentes, de atualização da frota, de atendimento eficiente, de previsão do valor final da corrida, de controle da rota, de compartilhamento da rota com terceiros, de conferência e compartilhamento com terceiros dos dados do carro e do motorista — todos benefícios trazidos pelos aplicativos de carona — permitem monitorar, instantaneamente, muito mais itens do que o Estado consegue fiscalizar”, resume o parecer, que defende que os táxis passem pelo mesmo processo de desregulação.
A Uber se apresenta como aquela que vai quebrar o Big Taxi, apresentado como uma megacorporação com interesses atrasados e arraigados na malha burocrática. E, como diz Tom Slee, apresenta-se às cidades como fato consumado: “Eu sou o futuro. Lidem com isso.” Mas a situação é bastante mais complexa.
Quando se fala em regulação, não se está defendendo o status quo nem bloqueando os benefícios trazidos pela tecnologia. O que se quer é a definição de regras que permitam que essa tecnologia seja utilizada em proveito da sociedade, e não de bilionários do Vale do Silício. A começar pelos motoristas, que hoje se veem em situação de extrema vulnerabilidade. Podem ser “desativados” a um simples comentário crítico de um passageiro. São alvo frequente de violência. E não têm a quem apelar quando algo dá errado.
Quando nós falamos de motoristas e Uber, estamos em verdade falando de uma enorme gama de serviços que ainda pode ser alvo das plataformas digitais. Estamos, portanto, discutindo uma série de normas que dizem respeito a uma possibilidade de precarização ainda maior do trabalho.
Como incansavelmente demonstra Tom Slee, os aplicativos não dão conta de uma série de questões muito complexas. O passageiro não tem como saber se o carro passou ou não por inspeção recente. E nem o aplicativo. Do mesmo modo, a tecnologia não responde se o veículo utilizado é regular e se recolheu impostos.
A Uber argumenta que seu sistema de rastreamento é 100% eficaz, garantindo que os motoristas passem por um rigoroso processo de seleção. “O jornal The Guardian colocou um infiltrado para se inscrever como motorista da Uber no Reino Unido. Parte do processo é enviar documentos de seguro do carro; o infiltrado enviou uma apólice falsa de uma companhia inventada, a Freecover, mas a Uber ainda assim o aprovou”, conta Tom Slee, entre um de muitos casos.
Além disso, a companhia simplesmente tira o corpo fora quando algo dá muito errado. O pessoal do Ministério da Fazenda talvez não tenha lido nenhuma das dezenas de notícias sobre casos de violência, inclusive com homicídios e estupros, envolvendo motoristas e passageiros da Uber.
Em outro ponto, o Ministério da Fazenda conta que os alvarás de táxis se tornaram um problema, com algumas pessoas que controlam várias licenças e apenas lucram com isso. É verdade. E é o idêntico argumento da Uber de que está se opondo à máfia dos táxis. Mas nenhuma empresa de táxi no mundo vale US$ 70 bilhões e tem condições de montar uma das maiores redes de lobby dos Estados Unidos. Em vez de resolver a questão, como deveria fazer o Estado, o que o parecer sugere é simplesmente acabar com qualquer controle.
Como mostra Uberização: a nova onda do trabalho precarizado, os táxis são submetidos a regulação por um motivo simples: eles fazem parte do sistema de tráfego de uma cidade. O excesso pode provocar trânsito e uma guerra de preços. A falta, por outro lado, provoca longas filas e preços elevados.
“A combinação de maior oferta e maiores preços é contraditória. Em um mercado competitivo, uma oferta maior deveria diminuir o preço. Mas, claro, os passageiros não saem pechinchando entre os táxis antes de pegar uma corrida e, portanto, estão vulneráveis a sofrer cobranças excessivas, particularmente em pontos movimentados, como aeroportos e estações de trem. Conceitos gerais de economia são uma coisa, mas o diabo mora nos detalhes”, contesta Slee.
No Brasil, em muitas cidades os taxistas estão obrigados a aceitar uma corrida, independente de qual o deslocamento. Isso serve para garantir que pessoas idosas, por exemplo, possam fazer trajetos curtos. E também para que as cidades forneçam carros acessíveis a deficientes físicos. A Uber se recusa a colaborar nesse sentido, alegando que os motoristas fazem uso de veículos particulares, sem adaptação. A experiência prática mostra que certos segmentos da sociedade ficaram de fora do fantástico mundo dos aplicativos.
O parecer do Ministério da Fazenda peca ainda em outro ponto. “A pressão competitiva existente entre as plataformas, como Uber, Lyft, Cabify, Televo – que são utilizadas de forma concorrente pelos mesmos prestadores de serviços e pelos mesmos consumidores -, cria uma perene pressão pela inovação e pela criação de mecanismos que tornem o controle de qualidade mais eficiente, compensando os melhores motoristas e os melhores clientes.”
Bem, a turma de Meirelles precisa mesmo ler urgentemente o livro de Tom Slee. O autor mostra que a Economia do Compartilhamento é dominada por mercados do tipo “vencedor leva tudo”, ou seja, quem chega primeiro ou oferece a melhor tecnologia arremata uma fatia gigante do mercado, e consegue usar esse poder para crescer mais e mais e mais. As empresas que o documento cita como concorrentes não são nem sombra para a Uber, que hoje tem um valor de mercado maior que o de Ford e General Motors e é mais que a soma das três maiores locadoras de veículos.
— João Peres é jornalista, integrante do conselho editorial da Editora Elefante e tradutor de Uberização: a nova onda do trabalho precarizado.