Eis que corria o mês de julho e o presidente do Brasil foi denunciado por genocídio e crimes contra a humanidade no Tribunal Penal Internacional de Haia, nos Países Baixos. Outra vez. Já são quatro.

Descrevem a negligência ostensiva cometida durante a crise do coronavírus e a omissão assassina com relação às terras indígenas. A primeira denuncia no Tribunal Penal Internacional, feita em 2019, focava exclusivamente o extermínio dos povos tradicionais.

“As invasões não tiveram fim. Nós estamos sendo invadidos agora.”

É assim que o imenso Ailton Krenak abre as Guerras do Brasil, série documental disponível na Netflix cujo primeiro episódio se dedica à incessante conquista do território ao custo de vidas indígenas — você sabe, nossa tragédia cotidiana.

Aqui, o mesmo episódio aberto no canal Nossa História Viva, no YouTube.

Eis o que disse o cacique Babau, partilhando a visão de Ailton: “O massacre no Brasil, ele é generalizado e não para. O problema é que o país não reconhece o genocídio. E só quem morre é índio. Engraçado, as balas tem direção certa. E nunca é o fazendeiro quem atira”.

 

Pertencer à terra, não o contrário

Babau é Rosinaldo Ferreira da Silva, guerreiro tupinambá na linha de frente da retomada de suas terras no sul da Bahia. Consta que nos anos 1920 e 1930 um tal doutor Almeida, delegado, se fez coronel e loteou as terras às quais os Tupinambá pertencem. Almeida vendeu tudo para fazendeiros e impôs na bala que os antigos habitantes saíssem, e logo.

O doutor é um entre muitos e as invasões nunca acabaram. Parte desta história está narrada em O retorno da terra, da antropóloga Daniela Fernandes Alarcon. O livro, lançado em 2019, consolida um trabalho amplo. Em 2015, Daniela também publicou o belo documentário de mesmo nome, pela Repórter Brasil.

As invasões prosseguem. E desta vez é turno dos trabalhadores da saúde denunciarem nosso genocida em chefe para a corte internacional. Formaram uma coalizão representando mais de um milhão de brasileiros e enviaram formalmente sua petição.

O tribunal de Haia é responsável por julgar quatro tipos de delitos, todos muito graves: genocídio, crimes de guerra, crimes de agressão e crimes contra a humanidade. Seus antecessores são os tribunais de Nuremberg e de Tóquio, que julgaram criminosos da Segunda Guerra — entre eles, Adolf Eichmann, o burocrata nazista que inspirou Hannah Arendt a desenvolver a teoria da “banalidade do mal”, ou seja, daquele funcionário que, dentro de seu gabinete, sem sujar as mãos nem os sapatos, na canetada, define a morte de milhares de pessoas como se estivesse apenas cumprindo ordens e desempenhando suas funções previstas em contrato.

A fama do Tribunal Penal Internacional, porém, é maior do que seu alcance efetivo. Até aqui, a corte condenou apenas 42 indivíduos — a maioria, senhores da guerra africanos. É improvável que a acusação contra Jair Messias prospere. Analisam os especialistas que nosso país ainda possui um Judiciário funcional. Perguntasse a outros, diriam que jamais possuiu.

Porque, veja, como pode ser justo um sistema de freios e contrapesos republicanos que permite ao Executivo realizar barbáries como VETAR, assim mesmo, em maiúsculas, a seguinte lei:

“A União assegurará a distribuição de cestas básicas, sementes e ferramentas agrícolas diretamente às famílias indígenas, quilombolas, de pescadores artesanais e dos demais povos e comunidades tradicionais, conforme a necessidade dos assistidos.”

Aspas da Lei 14.021, aprovada pelo Legislativo no começo de julho de 2020. Que tipo de governo impede a distribuição de comida e sementes — de vida, enfim — para as comunidades mais vulneráveis do país? Na mesma canetada também foram vetados respiradores e UTIs, acesso universal à água potável e a produtos de higiene.

Questionado na primeira denúncia em Haia, em 2019, Bolsonaro apenas riu da pergunta.

Estamos diante de um indisfarçado governo da morte, tão assassino quanto suicida. Mata os outros e a si próprio, como eternizado em junho na cena dantesca onde uma UTI carioca foi invadida por sujeitos animados pelo genocida em chefe, que pediu ao povo que provasse que fossa aos hospitais para provar que a covid-19 é uma farsa.

Evidente que ali havia pacientes em situação grave. A ação botou em risco a vida de todos: dos invasores, de seu câmera, dos profissionais de saúde, dos pacientes internados e de J. Pinto Fernandes, que trabalha em seu prédio e não havia entrado na história.

Nada mais distante da relação sagrada que o povo guarani desenvolve com seus mortos. Tivemos a honra de publicar Do corpo ao pó: crônicas da territorialidade kaiowá e guarani nas adjacências da morte, do antropólogo Bruno Martins Morais, que explora os modos kaiowá de transformar os pesados sentimentos relacionados à morte e ao morto, em um contexto de violência.

Falamos aqui de povos que o Brasil sempre viu como matáveis. Ainda vê. Bruno relaciona seu texto com a constante luta por terras e seus resultados: pauladas e casas queimadas, atropelamentos em estradas de terra e, como disse Babau no começo desta newsletter, balas perdidas que sempre encontram corpos indígenas.

A palavra xondaro é importante para os Guarani. Possivelmente uma corruptela de soldado, descreve aqueles que se mobilizam e agem para proteger o grupo. São os guerreiros do povo. Xondaro também é a HQ do quadrinista Vitor Flynn, publicado pela Elefante em 2016. Conta parte da história de Wera Jeguaka Mirĩ, jovem guarani de Parelheiros, bairro do extremo sul da cidade de São Paulo, que participou da abertura da Copa do Mundo do Brasil.

No meio daquele espetáculo brega e caro, em uma esquete de mau gosto que pretendia reforçar o “mito das três raças” fundadoras do povo brasileiro com a ajuda de uma pomba da paz (!), Wera levou uma faixa escondida na cueca e, quando as câmeras do mundo inteiro voltaram para si, sacou de lá os dizeres “DEMARCAÇÃO JÁ”, letras negras sobre tecido vermelho.

Dois anos depois, seu povo conseguiu parte das terras que reivindica dentro dos limites da maior metrópole do país. Xondaro tem uma cena em que os guarani ocupam com cores e faixas o terrível Monumento às Bandeiras, o famoso “deixaqueuempurro”, ode ao genocídio. As cores de Flynn são primorosas e provavelmente nós deveríamos vender essas páginas também como pôster.

 

Sustentar o céu

O modo de vida dos guarani é precioso, capaz de regenerar o ambiente onde se instala. Há indícios de que a altíssima biodiversidade da Mata Atlântica seja fruto de um minucioso trabalho de jardinagem dos guarani, que passaram uma eternidade cultivando a região.

Em seu O perecível e o imperecível, de 2018, Daniel Calazans Pierri se debruça sobre a cosmovisão guarani mbya. O antropólogo mergulha em escuta profunda e retorna com uma prosa clara sobre a tremenda dimensão espiritual que esse povo sustenta. O autor tem sucesso na dificílima tarefa de capturar em texto a potência de uma cultura oral em outro idioma.

O resultado é um mapa para caminhos míticos ligando os diferentes espíritos e mundos que primeiro habitaram esta terra — muito, mas muito tempo antes da chegada desastrosa dos europeus.

A obra também revê a compreensão da busca pela terra sem males, chave para compreender este povo e que, desde os jesuítas, foi entendida como a busca por um paraíso extraterreno, da próxima vida, onde não há morte ou dor, onde a comida se planta e mazela alguma alcança.

Daniel demonstra como essa ideia é o que os brancos quiseram ou puderam entender, pois a busca pela terra sem males, o “imperecível” de seu título, acontece neste vida e deve ser alcançada por dieta estrita e meditação constante. Parte da busca é se purificar tanto e ficar tão leve a ponto de ser levado pelos ancestrais para a morada imperecível, onde as coisas não terminam e não existe descarte, tudo é eterno e disponível.

Frente tamanha beleza conceitual, a pequenez de Messias se torna mais evidente, mais triste. Contra um governo da morte, apenas os modos de vida fazem sentido. Faremos o que pudermos.

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