Monotonia exacerba riscos do sistema agroalimentar

Por Ricardo Abramovay
Autor de Amazônia e Infraestrutura para o desenvolvimento sustentável da Amazônia
Publicado em Valor Econômico

É cada vez maior o reconhecimento de que a concentração e a monotonia, muito mais que a escassez, são as principais ameaças à segurança alimentar global. O problema está na pauta de algumas das mais importantes consultorias globais e em parte crescente da produção científica. É um tema geopolítico decisivo que não deveria ser ignorado nas discussões da COP30.

“O sistema alimentar global apresenta vulnerabilidades estruturais, como a alta concentração geográfica da produção, cadeias de suprimento longas e elevada dependência de importações em alguns países, especialmente os em desenvolvimento”. O alerta da Mc Kinsey torna-se ainda mais grave à medida que o risco da concentração é ampliado pelos eventos extremos que derivam das mudanças climáticas. Nas condições atuais vão aumentando as possibilidades de crises de abastecimento ou de explosões de preços que reduzem o acesso aos alimentos. E nada indica que a receita convencional de produzir cada vez mais, a partir das tecnologias e dos produtos hoje dominantes, vá ajudar a resolver o problema.

É interessante observar o vínculo que a McKinsey estabelece entre a vulnerabilidade do sistema agroalimentar e sua excessiva concentração em um restrito punhado de produtos. “A dieta humana é altamente dependente de apenas quatro grãos: arroz, trigo, milho e soja”. Essa dependência tem uma dimensão geopolítica fundamental: “60% da produção alimentar mundial, prossegue o trabalho da McKinsey, ocorre em apenas cinco países: China, Estados Unidos, Índia, Brasil e Argentina”.

As exportações alimentares são igualmente concentradas em alguns poucos países, segundo mostra pesquisa publicada na PNAS: Austrália, Argentina, Canadá, Estados Unidos e Brasil. Estes países exportam um quinto da oferta calórica global. E, contrariando o mito de que estas exportações contribuem para reduzir a fome no mundo, o trabalho mostra que elas se dirigem fundamentalmente aos países de maior renda. Pesquisa publicada na Global Environmental Change fornece mais um exemplo dos problemas ligados à concentração do sistema agroalimentar: 70% dos impactos do uso agrícola do solo sobre a biodiversidade derivam de apenas treze produtos.

A conclusão do trabalho da McKinsey é que se, por um lado, esta concentração produtiva permite aumentar a produtividade e a oferta, por outro lado “cria vulnerabilidade para o sistema alimentar global, pois alguns poucos eventos climáticos extremos, concentrados geograficamente nestas regiões, podem afetar uma larga porção da produção global”. Este problema é ainda mais sério quando se constata que países em desenvolvimento como Argélia, Egito, México e Arábia Saudita são importadores líquidos de grãos. São eles os que mais sofrem quando ocorrem crises que afetam o abastecimento vindo do comércio internacional.

Nada menos que 80% da população mundial vivem em países importadores líquidos de alimentos, conforme artigo publicado na Science em 2024. Um quarto da produção alimentar do mundo é comercializada no mercado mundial e apenas dez países fornecem o grosso da oferta. Deste total exportado, 25% têm origem nos Estados Unidos e a esmagadora maioria provém de apenas quatro Estados, onde episódios de secas têm se tornado frequentes: Califórnia, Oregon, Washington e Texas.

Os dados da McKinsey são corroborados pelo relatório da Mitsubichi Financial Group Inc, o sétimo maior grupo financeiro do mundo, onde se mostra que a cana-de-açúcar, o milho e o trigo correspondem a 40% das colheitas globais anuais e que metade desta produção está concentrada em apenas três países: Brasil, Índia e China. E conclui: “Esta concentração da produção representa também uma concentração de risco climático, à medida que os impactos do clima extremo nestes três países reverberam a jusante na cadeia, atingindo processadores, exportadores e importadores de bens acabados”.

Estes riscos são exacerbados pelo fato de muitos dos insumos dos quais depende a produção agropecuária estarem igualmente concentrados em poucos países, acentuando a dependência da própria base tecnológica dos produtores de mercados internacionais. É o caso dos fertilizantes sintéticos dos quais a agropecuária depende: o Brasil, por exemplo, importa 85% dos fertilizantes nitrogenados que consome.

O uso da água no sistema agroalimentar também traz a marca da monotonia. Para analisar esse uso, Qinyu Deng, da Beijing Normal University e seus colaboradores estudaram os três países mais populosos do mundo, China, Índia e Estados Unidos que juntos reúnem 41% da população mundial, usam 49% da água azul (as superficiais e as subterrâneas) e oferecem 39% da produção alimentar global. A irrigação para as colheitas correspondia, em 2015 a 80% da demanda por água azul na China, 95% na Índia e 81% nos Estados Unidos. O que mais chama a atenção em sua pesquisa, publicada na Nature Communications, é o vínculo entre o uso de água e a monotonia da oferta agrícola.

Foto: Tania Rego / Agência Brasil

Também pode te interessar