Na Argentina, um outro tipo de força

Luci Cavallero e Verónica Gago são pesquisadoras e militantes argentinas. Aqui na Elefante elas publicaram A casa como laboratório e organizaram, junto com Silvia Federici, Quem deve a quem?, uma coletânea de 16 textos. Verônica também publicou A potência feminista e A razão neoliberal.

 

Por Luci Cavallero e Verónica Gago
Publicado em Tiempo Argentino

Pode-se dizer que, em meio a uma crise de representação política, as urnas da Província de Buenos Aires recuperaram uma “aura”. Trata-se do efeito de estranhamento diante de certos objetos, que parece lhes dar vida para além de sua materialidade (a caixa de papelão). No entanto, esse efeito coexiste com o desinteresse e a abstenção, tanto como prática quanto como fantasma. Primeiro ponto: contra as análises que celebram o “retorno” da política, “retornando” a incorporar a política exclusivamente à disputa eleitoral.

É evidente que as urnas enviaram uma mensagem contundente da derrota retumbante do governo anarcocapitalista: tanto na expansão dos distritos perdidos quanto na expansão numérica da vantagem conquistada pela oposição agrupada na Força PátriaSegundo ponto: a derrota do governo é um ponto de inflexão que anuncia uma crise cujo momento é imprevisível (talvez 2027 seja um ano muito distante).

Agora, de onde veio essa força de rejeição ao governo? Sem dúvida, o resultado corrobora um modelo particular de gestão política para o governo da Província de Buenos Aires, mas, de forma mais geral — projetado pelo fato de representar 40% do país —, expressa uma rejeição à governança nacional (já antecipada nas diversas eleições provinciais anteriores).

Voltemos à questão da força.

Queremos destacar o trabalho artesanal de costura dessas lutas, quase invisível na maioria das análises, agora rapidamente transferido para a engenharia do sistema político e suas intrigas internas. Trata-se de dois modos de produção política (artesanal e de engenharia), mas este último é mais hábil em afirmar as lutas no momento oportuno, enquanto o primeiro é mais oblíquo quando se trata de tradução eleitoral.

Agora que comentaristas de todos os tipos estão muito debruçados sobre a retomada da estratégia da oposição, interessa-nos voltar a focar como está sendo formado um corpo coletivo que nos fez experimentar alianças feitas quase em desespero, quando a “política” abandonou os afetados e pensávamos que estávamos sozinhos contra os poderes mais brutais.

Essas alianças se uniram a apoiadores para apoiar os aposentados persistentes, abraçaram e marcharam com Garrahan [hospital de Buenos Aires que protestou e entrou em greve por aumento de salários], apoiaram manifestações transfeministas e multiplicaram o número de cozinhas comunitárias. Terceiro ponto: a resistência cresceu de baixo quando tudo o que se falava era sobre o consenso invencível de Milei.

Enquanto alguns analistas e líderes ficaram fascinados por Milei, outros passaram os dias imaginando o que fazer quando nada parecia possível, numa época em que o projeto histórico dos donos é enterrar a indisciplina histórica do povo do nosso país.

escândalo de corrupção envolvendo Karina Milei, que, de forma desajeitada e perversa, explorou a agência nacional de pessoas com deficiência no exato momento em que pessoas com deficiência se mobilizavam com suas famílias, redes e organizações, dividiu ainda mais o campo político. Demonstrou claramente que a extrema direita é mais do mesmo, apesar de seus protestos contra políticos profissionais.

Quarto ponto: a generosa carteira do FMI (lembre-se de sua chefe, Kristalina Georgieva, ostentando um broche de serra elétrica e dizendo que precisavam de Milei para vencer a eleição) ainda parece estar lutando para se afirmar politicamente, enquanto continua a negociar com dívidas.

Acreditamos ser crucial compartilhar avaliações em tempo real do que implica confrontar a extrema direita no laboratório argentino, que opera em paralelo com outros lugares ao redor do mundo onde os limites da violência estão sendo expandidos para restaurar os lucros dentro de uma lógica extrativista e genocida. Este também não é um momento para triunfalismo, enquanto 90% da população sofre o impacto da motosserra por meio da dívida e da violência estrutural e cotidiana que continua a produzir descontentamento. É a partir dessa disputa pela canalização e transformação do descontentamento que se constrói um projeto político alternativo ao do autoritarismo financeiro.

Portanto, um último ponto que nos interessa deixar em aberto: a persistência dos protestos esbarrou repetidamente na condenação de que eram isolados, de que não se acumulavam, de que eram setoriais, de que não produziam impacto. A contragosto, revelaram um profundo acúmulo: de raiva e de dignidade. Como ato de justiça diante da subestimação desses diagnósticos, insistimos, destacam-se as pessoas com deficiência que conseguiram desmantelar a sequência perversa de vetos contra leis conquistados por meio da mobilização popular. Os corpos mais frágeis, no sentido de que não “respondem” à ideia viril e normativa de força, os mais afetados pela austeridade, foram os que, em última análise, repolitizaram o Congresso como um espaço invulnerável às lutas sociais.

Existe outro tipo de força. Ou melhor: outra economia de força contra a proposta governamental de violência empresarial (cada um administrando sua própria violência como se fosse uma questão privada e individual). Vale a pena continuar a tramar essa outra economia de força, alimentando sua longevidade contra a pilhagem a que é submetida e, acima de tudo, levando-a a sério.

É, finalmente, um tipo diferente de força.

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