Por Julie Dorrico
Publicado em Quatro Cinco Um
“Muitas aldeias vão se levantar ainda. Muitos povos vão se erguer.” Essas palavras-sonhos de Os donos da terra inflamam a esperança de fazer valer o direito que possuem os povos indígenas sobre seus territórios originários. Desde a promulgação da Constituição Federal, em 5 de outubro de 1988, os povos indígenas têm o direito originário às terras que tradicionalmente ocupam, cabendo à União demarcar, proteger e fazer respeitar os seus bens.
Os mitos de fundação do país e as ideias de “descobrimento” e “Brasil” não foram capazes de exterminar as identidades dos povos indígenas. A literatura brasileira constrói sua mentalidade a partir desses mitos. Da perspectiva indígena fala-se em invasão, onde os territórios habitados foram reduzidos a um só nome, e as identidades dos povos foram definidas a partir da racialização (biológica e social) feita pela régua dos colonizadores, que não assumem esse lado sombrio de sua história. A retórica moderna/colonial chafurdada em eufemismos para minimizar os contínuos massacres etnogenocidas perpetrados contra os povos originários passa a ser contestada pelos autores indígenas que trazem suas memórias para as páginas literárias em projetos como esse Os donos da terra, quadrinho de autoria da indígena tupinambá Glicéria Jesus da Silva com os autores não indígenas Daniela Alarcon e Vitor Paciornik, lançado ano passado pela editora Elefante.
Nas sete histórias de Os donos da terra encontramos uma pungente denúncia das contínuas apropriações dos territórios indígenas por fazendeiros e outros agentes, cuja equação envolve intimidação, engano, roubo e assassinato. Recrudesce o fato de que os criminosos têm o respaldo da sociedade dominante e contam com o apoio de juízes, policiais, políticos, jornais, rádio, isto é, de todo um sistema que descredibiliza o Estado democrático de direito ao violar os direitos humanos e não humanos do povo Tupinambá. A sistemática destruição da floresta e as desarticulações familiares do povo Tupinambá da Serra do Padeiro, que aparecem, respectivamente, em “A briga do areal” e “O sangue puxa”, contam uma história diferente da que se encontra nos livros didáticos. Tais eventos podem ser lidos como metonímia para os 305 povos indígenas do Brasil.
A retórica colonial passa a ser contestada pelos autores indígenas em projetos como esse
A resistência por meio da figura ilustre de Marcellino José Alves, conhecido como Caboclo Marcellino, trata do outro lado da história. Nesse capítulo, é feita justiça à memória desse guerreiro ao descrever sua resistência à exploração e à negação da sua própria identidade, além de mostrar a tentativa de reaver suas terras como um direito e não como ato criminoso. Acusado arbitrariamente de comunismo, foi preso pela polícia e levado à então capital, Rio de Janeiro, desaparecendo em 1937, possivelmente assassinado, tornando-se símbolo de luta e esperança dos Tupinambá da Serra do Padeiro: “Marcellino? Virou encantado”. Tal como Marcellino, a obra traz Babau, cacique que com outros parentes dá continuidade à luta. Seu “desaparecimento” desencadeia, na narrativa “Marcellino”, uma série de opressões aos indígenas, que, escorraçados, são obrigados a denegar suas identidades por medo.
“Nós somos os brotos, nós brotamos dos troncos velhos. Nós somos nascidos e criados da terra, então, nós temos a força” é uma fala de memória em “O sangue puxa”, sobre a migração compulsória diante dos assaltos às roças do povo. Ao mesmo tempo, passa a ser uma narrativa de acolhimento aos Tupinambá que longe das suas aldeias vivem precariamente nas cidades. Assim a fala do cacique Babau afirma afetivamente: “Tupinambá não é pra morar em favela, pra trabalhar escravo pros outros, pra morrer matado e ninguém nem saber quem era! Tupinambá é guerreiro, Tupinambá é orgulhoso!”. A retomada passa pela afirmação da identidade, do toré, dos encantados, em outras palavras, da identidade do povo.
Encantados
A presença dos encantados como espiritualidade é marcante. São eles que guiam as retomadas, que protegem da bala, que acolhem na floresta nas fugas, que são os “donos da terra”. “Tudo que tem nome, tem dono”, diz o protagonista da história “Tudo que vê, calado é mió”. A ideia de posse é herança da colonização, por isso é importante destacar que essa ideia não traduz o sentimento de propriedade privada ensejada pela modernidade, mas a de que cada ser na floresta tem um espírito protetor, que são os encantados. É possível perceber que o sentimento em relação à terra se dá a partir do sagrado.
Todavia, se os indígenas da Serra do Padeiro precisam reivindicar a propriedade e a posse de suas terras, é porque seus direitos originários não foram respeitados e seguem continuamente violados, a exemplo da Lei do Marco Temporal, em julgamento no Supremo Tribunal Federal, cuja tese reivindica a presença dos indígenas nos territórios originários até a data de 5 de outubro de 1988, sem considerar os realocamentos forçados pelo Estado e os ininterruptos conflitos agrários que desalojaram muitas famílias.
Em uma conversa sobre a obra com a parenta Glicéria Tupinambá, coautora do quadrinho, na página do Instagram @leiamulheresindigenas, a comparação do corpo humano ao da árvore me marcou profundamente. Ela disse que o povo Tupinambá tem sua origem na árvore, e ela faz questão de provar esse ponto ao comparar a digital humana aos anéis da árvore quando cortada no tronco; ambos os corpos decompõem da mesma forma; ambos quando queimados viram cinzas; e quando estamos dentro da árvore respiramos melhor, me diz ela de modo sublime. Glicéria encerra o paralelo afirmando que as árvores são os seres encantados mais antigos que vivem sobre a Terra, que cuidam dos humanos e dos animais, que são sagrados. Ao revisitar a obra depois de nossa conversa e ver os micos-leões-dourados fugindo espavoridos de suas moradas sagradas nas páginas iniciais, chorei. A mensagem não é só sobre ecologia, é também sobre o fim do mundo dos encantados.