Por Camila Cetrone
Publicado em Ig Delas
Na última semana de 2020, a Argentina atraiu todos os olhares do mundo por ter aprovado a legalização do aborto . Agora, o procedimento é gratuito e poderá ser solicitado por pessoas gestantes até a 14ª semana de gravidez . Mas essa conquista pelos direitos reprodutivos e da vida de pessoas com capacidade de gestação é um assunto que está em pauta há anos nos movimentos sociais do país, principalmente os de vertente feminista.
Um desses grupos que tiveram uma grande influência ao mobilizar pessoas a irem às ruas e a cobrarem pela descriminalização do aborto na última década é o Ni Una Menos (Nenhuma A Menos, em português). Criado em 2015, o coletivo chama atenção para questões dos direitos das mulheres, Além dos direitos reprodutivos as demandas incluem o combate à violência doméstica e ao feminicídio.
Em 2018, quando o projeto de lei de descriminalização do aborto foi votado pela primeira vez, o grupo foi um dos principais a atuar nas redes sociais para atrair pessoas às ruas para as vigílias – a reunião de ativistas nas ruas para esperar pelo resultado da votação. “A vigília feminista é uma modalidade política que é muito intensa”, explica Verónica Gago em entrevista exclusiva para o iG delas.
A cientista social e professora é membro do Ni Una Menos e estava presente na vigília que aconteceu no último mês de dezembro, quando a pauta foi definitivamente aprovada. Verónica Gago publicou pela Elefante A potência feminista e A razão neoliberal.
Como você se sentiu depois que a lei de descriminalização do aborto foi aprovada?
Eu fiquei muito feliz por esse triunfo coletivo, da capacidade do movimento feminista de instalar e ganhar esse debate, de ter conquistado um direito para todas as pessoas com capacidade de gestação e da certeza de que terá efeitos por todo continente. Sei que pressionamos ainda mais essa demanda do aborto.
Você estava em vigília enquanto a votação acontecia. Qual foi o clima geral das ruas quando a decisão saiu?
O sentimento das ruas era de festa e expectativa. E quando o resultado positivo finalmente saiu, depois de 12 horas de debate, o grito, o choro, o abraço e a comoção foram generalizados para quem estava ocupando aqueles mais de dez quarteirões. A vigília feminista é uma modalidade política muito intensa, que significa ocupar as ruas, prepará-las horas antes e converter as vias públicas em um espaço de debate parlamentário das multidões.
É uma forma de pressão enquanto as sessões acontecem. Além disso, é assim que mostramos nossa força. Essa é uma luta histórica que condensa muitas causas, que é intergeracional, que convoca diversas militâncias e que conseguiu se fazer massiva por meio de muito esforço organizado.
Enquanto vocês esperavam, havia nas ruas um clima confiante de que a decisão seria positiva?
Havia muitos indícios de que sim, mas o lobby conservador estava sendo muito agressivo. Mudanças repentinas não foram descartadas e estávamos alertas para qualquer imprevisto. Mas ao longo da noite vários votos considerados “indecisos” penderam para o nosso lado, o que permitiu consolidar a expectativa de um resultado positivo.
Você considera que a vitória tem a ver com a atual composição do parlamento ou com alguma mudança na atuação dos movimentos?
As duas coisas. Por um lado, aquele Senado que rejeitou o projeto em 2018 passou por uma renovação parcial devido às eleições legislativas. Além disso, é preciso lembrar que esse projeto de lei, pela primeira vez na história, foi encaminhado pelo Executivo, o que implicou outros tipos de pressão também para muitos dos senadores do partido no poder.
Mas também é importante a perseverança e o aprofundamento do debate e da organização dos movimentos feministas que se desdobraram daquele ano até aqui. Tanto no nível do lobby parlamentar quanto no ativismo nos diversos campos, como sindicatos, escolas, organizações, espaços comunitários, assembléias e etc. Da mesma forma, esta vitória foi alcançada em um ano em que não havíamos nos mobilizado após a greve feminista internacional, devido à realidade da pandemia e às medidas de quarentena.
A Argentina não é um país laico e é a terra do atual Papa. Além disso, países da América do Sul observam uma forte ofensiva conservadora e neopentecostal contra os direitos das mulheres. Diante desse cenário, houve alguma ação tomada para desencorajar tanto os movimentos feministas como o avanço dessas políticas?
O aborto legal foi conquistado diante de uma contra-ofensiva neoconservadora, que vem realizando todo tipo de campanha midiática com financiamento ilegítimo, iniciativas de confusão para espalhar o pânico, chantagens afetivas e distorção das discussões.
Na Argentina, a presença das igrejas tem sido muito forte para boicotar a legalização. As mensagens contra esta iniciativa do Papa têm sido permanentes e a campanha “celestial”, que é como aqui se identificam as pessoas contrárias ao aborto, teve o apoio da grande mídia também. Portanto, insisto que a legalização foi conquistada.
A mobilização do Ni Una Menos é sempre muito poderosa e leva muitas pessoas para a rua. Como é a tática de ação de vocês para mobilizar as pessoas? Que canais de comunicação vocês usaram para chamar atenção para a legalização do aborto?
As mobilizações massivas nos últimos anos foram alcançadas graças a um enorme esforço político de conspiração transversal entre muitas organizações e também porque conseguem convocar os mais jovens. Da greve à demanda pelo aborto , passando pela demanda por uma educação sexual integral e pelo direito ao acesso à terra, para citar apenas alguns. São diferentes formas de fazer apelos muito poderosos do feminismo, entrelaçados com outros movimentos de massa.
Isso se deve a um processo de politização da existência, a uma capacidade dos feminismos de enfrentar a precariedade da vida e reivindicar de forma concreta a autonomia sobre nossos corpos e territórios, ao mesmo tempo em que se interligam entre espaços diferentes. Assim, uma conexão entre diferentes lutas foi construída com paciência e persistência.
Com o aborto legalizado, quais são os próximos passos do coletivo?
Esperamos que a reivindicação pela legalização do aborto continue a se expandir em toda a região, que o debate seja impulsionado ao mesmo tempo que se une com outras lutas, que a possibilidade de abortar seja reivindicada e que se expanda como um gesto anticonservador contra uma tentativa de ordem neoliberal reacionária que quer apaziguar a crise civilizacional que vivemos.
Crédito da imagem: Reprodução/Revista Venceremos