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Por Breno Castro Alves
Newsletter da Elefante

 
Eis que é primavera e a história não acabou. Ventos frescos sopram na América do Sul. No Chile, quatro em cada cinco humanos votaram por uma nova Constituinte, finalmente destituindo a Carta de 1980, criada sob Pinochet e orientadora do neoliberalismo puro sangue daquele país. Enquanto isso, a Bolívia reconduz o Movimento ao Socialismo (MAS) ao Palácio Quemado, de onde Evo Morales foi derrubado há um ano — o progressismo ressurge no país.

Mas o que essas mudanças representam? Foi em busca de perspectiva que convidamos Fabio Luis Barbosa dos Santos para nossa mesa. Pesquisador e doutor em história econômica, durante a última década ele mergulhou na história política da região para radiografar a ascensão e a queda dos governos de esquerda eleitos no alvorecer do século XXI. Foi assim que escreveu Uma história da onda progressista sul-americana, livro de 2018, atualizado em 2019, e que volta ao foco nestes tempos de mudanças tectônicas no Chile e retomada popular na Bolívia.

Fabio é professor do curso de relações internacionais na Universidade Federal de São Paulo, onde coordena o programa Realidade Latino-Americana, grupo de extensão que periodicamente visita nossos vizinhos. O programa parte de uma perspectiva crítica da realidade para sensibilizar seus participantes sobre a necessidade de atuação política.

Ele nos leva para passear por estes países a partir de seus anos de pesquisa de campo. O livro aborda individualmente cada país sul-americano, à exceção do Uruguai, do Suriname e das Guianas. México, Cuba e o papel do Brasil na integração da América Latina também merecem seus capítulos próprios.

Comecemos, pois, pela análise do pesquisador sobre os novos movimentos do Chile. Pondera que o ciclo rebelde daquele país não foi provocado por uma crise econômica, mas eclodiu como uma “grande recusa” à sociedade neoliberal forjada pela ditadura de Pinochet e costurada, apertada, pelos governos seguintes. Esse processo produziu no Chile o que Fabio chama de neoliberalismo real, uma versão fundamentalista, radical, que agora inspira Paulo Guedes no Brasil.

Argumenta que isso foi possível pela “destruição criadora” daquela ditadura, que refundou sua sociedade sobre os corpos da oposição massacrada, instaurando uma experiência neoliberal pioneira em sua inteireza. O despertar chileno demorou, mas quando veio apresentou sua radicalidade de forma e rumos. “O Chile não tem um progressismo recente para olhar: a ditadura deixou um vão entre as gerações. Não se tem um Lula, um Kirchner ou um Perón a ressuscitar para salvar a pátria. Então ao mesmo tempo que esse movimento não têm muito chão, por outro lado não tem um teto”, avalia, animado pela perspectiva fresca que o processo chileno desenrola.

A plasticidade dessas mobilizações foi lindamente projetada nos drones do governo que os manifestantes derrubaram com suas simples canetas laser. Objetos que custam um e noventa e nove derrubando drones high tech, que custaram milhares de dinheiros à repressão. O resultado é uma ação tão potente que cruzou o mundo e pode ser conferida aqui em sua veiculação pela India TV, com narração em hindi.

 
MAS
Chega a hora de falar sobre a Bolívia, e Fabio respira fundo: “É o capítulo mais controverso do livro, bastante crítico aos governos Morales e seu partido. Veja, eu saí do Brasil com outra visão, mas depois de dezenas de entrevista em duas visitas, eu não poderia escrever outra coisa”, alerta.

Damos então um passo pra trás até o conceito-chave do progressismo, escasso no Chile e crucial à Bolívia: “A aposta foi razoável: melhorar a situação dos países sem mexer nas estruturas. Afinal, não é preciso acabar com o capitalismo para acabar com a fome. Daí a aposta do Fome Zero, por exemplo. Mas daí também a ambivalência do progressismo: foi uma reação ao neoliberalismo, mas também ao risco de que essa reação transbordasse a ordem”.

Fabio entende que o progressismo significou coisas diferentes para os de cima e para os de baixo. Para os de baixo, possível melhora nas condições de vida. Para os de cima, uma forma de gestão das contradições da ordem.

“Ninguém perdeu dinheiro durante os governos Morales, mas ele se queimou na tentativa de um quarto mandato. Quem se levantou contra ele não foi só a direita, mas uma juventude que vê no MAS um partido da ordem e que se revoltou com a suspeita de fraude. É certo que Morales foi derrubado, mas muitos viram manobras ilegítimas nos atropelos que ele cometeu para se candidatar.”

Evidente que isso não fez da oposição, que assumiu a presidência, uma alternativa popular. Evidente também que existe uma direita racista, que se alinhou para a derrubada de Evo, como ficou simbolizado pela humilhação imposta à então prefeita de Vinto e agora senadora eleita Patricia Arce, torturada em praça pública.

O ponto central da crítica de Fabio ao processo boliviano reside na leitura de que o MAS deixou de se identificar com a mudança e se tornou Poder, com p maiúsculo. Avalia que o partido e seus aliados controlam os três poderes, a maior parte da mídia e cultivaram boas relações com os militares, além de outros setores chave. Uma concentração institucional que não tem paralelo no PT do Brasil ou na Argentina kirchnerista, e que exerce repressão contra a oposição e as dissidências do campo popular.

Como se pode ver enquanto passeamos pelos vizinhos, nosso pesquisador é mais otimista em relação às boas novas chilenas do que às bolivianas, mesmo que este último tenha eleito vinte mulheres entre seus 36 senadores.

 
Metástase à brasileira
É no caminho de volta para casa que começamos a refletir sobre nosso país, em dúvida se buscamos contexto sobre como chegamos até este beco miliciano neopentecostal, ou se buscamos alternativas no futuro. Primeiro, então, ao passado.

“A diferença fundamental entre petismo e bolsonarismo: o primeiro tinha a pretensão de gerir a crise, enquanto o segundo governa por meio da crise — bota o pé no acelerador. Mas os elementos sempre estiveram lá, os neopentecostais, a mídia corporativa, as queimadas. Não é uma guinada de 180 graus do modo petista, mas sua metástase. Tudo parecia controlado até o modo lulista de regulação do conflito social perder eficácia. Aí a metástase começou.”

Então, carentes de otimismo, perguntamos: o que um governo popular poderia mudar para evitar a crise? “Políticas de contenção não vão resolver. Precisamos atacar o câncer. Mas câncer não tem cura. É exatamente isso que devemos inventar. Todo mundo está percebendo que este mundo vai acabar. Os governos progressistas tentaram controlar o câncer, mas não deu. O que você faz pra contentar o banqueiro, o PMDB, a bancada evangélica, acha que está comprando paz, mas o preço é fortalecer inimigos. Eu pessoalmente estou mergulhado na busca por novos processos coletivos de fazer e refletir. Precisamos superar a política do mal menor, parar de olhar o telhado e novamente buscar estrelas.”

O último capítulo de Uma história da onda progressista sul-americana é um conjunto de propostas derivadas de sua prática, alternativas práticas que podem representar um caminho para o novo. E, assim, no meio da análise afiada, aparece o profundo otimismo de Fabio, que escreve para sensibilizar seus conterrâneos sobre a luta comum dos povos latino-americanos.

“Enquanto houver humanidade haverá luta. Enquanto houver luta, haverá sonho. Enquanto houver sonho, se abrem caminhos. Os de cima reinventaram o caminho deles, precisamos reinventar os nossos. Não é que o fascismo ganhou, mas sim que estamos fora do jogo. Precisamos inventar o novo para disputar os caminhos da história, saltar o abismo do fim do mundo rumo à emancipação”, conclui o historiador que estuda estrelas.

 
Imagem: 18.out.2020 – Mulher espera para votar em uma seção eleitoral em Huarina, Bolívia. Ronaldo Schemidt / AFP

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