Por Vinícius da Silva
Publicado no Ruído Manifesto
NOTA DA EDIÇÃO: O texto a seguir é um excerto do primeiro capítulo, “Políticas do amor e sociedades do amanhã”, do livro Fragmentos do Porvir de Vinícius da Silva, a ser lançado ainda em 2022 pela Editora Ape’Ku.
Políticas de conversão e ética do amor
Tendo em vista o contexto político e espiritual das comunidades afro-estadunidenses dos anos 90, presente na análise de Cornel West, surge a proposta das políticas de conversão, as quais buscam pôr fim às “ameaças do niilismo[1] concreto.”[2] De acordo com West, “novos modelos de liderança negra coletiva devem promover uma versão dessas políticas.”[3] Trata-se da promoção de um contexto fértil para a mobilização coletiva e articulação de mudanças sociais. Sobre as ameaças do niilismo, West dirá que:
De fato, o maior inimigo da sobrevivência do negro na América foi, e ainda é, não a opressão nem a exploração, mas a ameaça niilista – ou seja, a perda de esperança e a ausência de propósito. Isso porque, enquanto a esperança perdura o significado da vida preservado, a possibilidade de sobrepujar a opressão permanece viva. A ameaça niilista encerra uma profecia que se cumpre justamente porque foi feita: sem esperança não pode haver futuro; sem propósito, não pode haver luta.[4]
A articulação de West sobre os efeitos do niilismo é importante porque é justamente a partir desse contexto de falência espiritual e subjetiva que hooks articula o amor enquanto sendo, principalmente, uma categoria que dá sentido à vida. E se o amor é o que dá sentido à vida, ele é, também, a resposta direta às ameaças niilistas. Conforme hooks, “mesmo quando não podemos mudar a exploração e dominação em curso, o amor dá sentido, propósito e direção à vida.”[5]
Nesse sentido, as políticas de conversão são, também, políticas de responsabilidade ética, de modo que haja uma nova articulação da dialética do reconhecimento entre os indivíduos. Para as políticas de conversão, a “relação de cuidado” de Mbembe é central. A minha hipótese com noção de amor é a de que a conversão de West se relaciona diretamente com a proposição de uma nova gramática ontológica, que articula necessariamente um horizonte a partir do qual a mutualidade revolucionária fundada na ética do amor poderá ser reconstituída.
Para a teoria do amor, portanto, esta discussão deve ser feita de modo que compreendamos a importância das políticas de conversão na proposição, sobretudo a partir do pensamento de hooks, de um novo paradigma social que organizará as relações humanas a partir de outros princípios ontológicos, de modo que as diferenças não mais articulem sistemas de opressão e dominação, como sugere hooks em Killing Rage.
A proposta de uma ética do amor nasce com a proposta das políticas de conversão – ou, melhor dizendo, é a condição para as políticas de conversão. De acordo com Cornel West, as políticas de conversão se propõem a construir um novo paradigma civilizatório.
Mas há sempre uma chance para a conversão – uma chance para as pessoas acreditarem que há esperança para o futuro significado para a luta. Essa chance não se baseia em um acordo sobre no que consiste a justiça tampouco em uma análise de como o racismo, o sexismo ou a subordinação de classe opera. Tais argumentos e análises são indispensáveis. Mas uma política de conversão exige mais.[6]
Os apontamentos de West mobilizam um horizonte complexo de análise, onde precisamos pensar as determinações e articulações práticas da responsabilidade ética. No entanto, o filósofo já fornece o caminho que devemos seguir: o amor. Segundo West, “a ética do amor deve ser o centro da[s] política[s] de conversão.”[7] Nesse mesmo sentido, hooks afirma que “somente uma política de conversão onde retornamos ao amor pode nos salvar.”[8]
O amor, nesse sentido, não se refere a “sentimentos ou conexões tribais,”[9] mas sim ao princípio ético a partir do qual as políticas de conversão se organizam. Para hooks, é preciso saber o que queremos dizer quando falamos de amor – é preciso estabelecer um enquadramento linguístico a partir do qual os sentidos do amor serão estabelecidos. Por isso, hooks reivindica uma definição clara e concisa do amor para que a partir disso possamos avançar enquanto coletividade. O movimento que hooks faz é um dos princípios básicos da ação política, conforme pensada por Hannah Arendt, por exemplo, o estabelecimento de consensos e acordos.
O amor no pensamento de bell hooks
O amor é um termo em disputa. Não há postulados corretos ou errados acerca de sua existência. Nesse sentido, a única pretensão que articulo é a de fornecer os enquadramentos epistemológicos necessários para que possamos abordar o assunto dentro do âmbito das disputas políticas e do debate qualificado sobre amor.
Conforme Scott M. Peck, “o amor é um ato de desejo – nominalmente, tanto uma intenção quanto uma ação. O desejo implica, também, em [realizar] escolha[s]. Nós não temos que amar. Nós escolhemos amar.”[10] Isto estabelecido, considero ser importante compreender o amor enquanto um produto de nossos acordos coletivos, a partir dos quais escolhemos um novo princípio organizador das nossas dialéticas do reconhecimento diárias. No entanto, há alguns desafios, de acordo com Henrique Vieira:
O desafio é retirar o amor de um lugar romântico, circunscrito à vivência de um casal. Pensem em como algumas palavras, de tão usadas, tornaram-se vazias de significado. “Amor” não pode ser uma delas. (…) Essa ideia do amor como um sentimento abstrato e relacionado unicamente à vivência de um casal pode criar alguns paradoxos. Se o amor fica circunscrito, pode conviver com as maiores atrocidades do mundo. Como um mero sentimento, vazio de uma ética generosa, o amor pode coexistir com o racismo, o machismo, a LGBTfobia, a violência, e por aí vai.[11]
A análise de Vieira é importante, pois ela dialoga com um aspecto essencial do pensamento de hooks, o de reduzir o amor ao status de sentimento, desprovido de ação política. Para hooks, essa compreensão do amor impossibilita a sua articulação coletiva, pois o coloca na mesma dimensão da dominação capitalista e patriarcal. Fazendo isso, como bem aponta Vieira no trecho citado, permitimos que o amor seja justificativa para estratégias de dominação. Isso revela a imperante necessidade que as pessoas parecem ter em relação ao amor, de modo que elas precisam ser amadas para viverem bem – e não importa o “preço” deste amor.
Distanciando-se dessas compreensões e apropriações liberais – a partir das quais o amor se torna produto –, hooks nos alerta para não nos sentirmos atraídos por abordagens reducionistas do amor que o restringe a dimensões afetivas. É preciso, nesse sentido, entender o amor enquanto um princípio básico das transformações sociais. O amor é tudo aquilo que permite com que nos unamos para disputar o bem comum. Conforme hooks, “em nossa sociedade, todos os grandes movimentos sociais por libertação e justiça promoveram uma ética do amor,”[12] reafirmando que o amor é uma prática da liberdade, uma vez que, como sugere Vieira, “amar é agir para que o outro possa ser em liberdade.”[13] Nesse sentido, para hooks e Vieira, a teoria do amor é uma teoria da libertação do sujeito. “Assim, o amor desobedece às regras e leis injustas, posicionando-se contra o que maltrata a vida.”[14]
Significativamente, sempre foi o amor que criou a motivação para uma profunda transformação interna e externa. O amor era a força que capacitava as pessoas a resistir à dominação e criar novas formas de viver e estar no mundo. (…). Engajar-se na prática do amor é opor-se à dominação em todas as suas formas. Amar nos levará necessariamente além da raça, além de todas as categorias que visam limitar e confinar o espírito humano. A dominação nunca terminará enquanto formos ensinados a desvalorizar o amor. (…). O amor como um modo de vida torna possível a todos nós vivermos humanamente dentro de uma cultura de dominação enquanto trabalhamos pela mudança.[15]
A partir dessa compreensão, hooks revela uma das principais características da teoria do amor – a desmantelação das matrizes de dominação. O amor é um movimento de libertação, é uma categoria que, embora seja nomeada, não se restringe aos enquadramentos linguísticos produzidos pelo exagerado desejo classificatório que atravessa as nossas percepções.
A partir da obra de hooks, Nancy E. Nienhuis aponta que “uma ética do amor [faz com que nos comprometamos] com a transformação social, onde a injustiça contra qualquer grupo [precarizado] é intolerável.”[16] Nesse sentido, Nienhuis contribui para a nossa proposta de formulação de uma teoria do amor que se mobiliza a partir das políticas de conversão, sugerindo que o amor possui um grande potencial para desmantelar o patriarcado e, assim, faz com que reconheçamos do Outro como nosso semelhante, desfazendo a possibilidade de dominação violenta.
Embora nosso horizonte de análise nos coloque um problema complexo, não obstante fornece caminhos para seguir em direção a outros futuros. O amor, certamente, não resolverá todos os problemas colocados ao longo de nossas análises, e não se sabe até que ponto apenas resolver problemas auxilia em alguma coisa. “Mas ele certamente cria as condições que propiciarão uma mudança significativa.”[17]
[1] Para West, em sua obra, o niilismo deve ser compreendido não como uma doutrina filosófica, mas como a condição de viver uma vida “sem significado, sem esperança e (mais importante) sem amor.” (Race Matters, p. 23).
[2] WEST, Race Matters, p. 29.
[3] WEST, Race Matters, p. 29.
[4] WEST, Race Matters, p. 29.
[5] HOOKS, Salvation, p. xxiv.
[6] WEST, Race Matters, p. 29.
[7] WEST, Race Matters, p. 29.
[8] HOOKS, Salvation, p. 15.
[9] WEST, Race Matters, p. 29.
[10] PECK, The Road Less Traveled, p. 83.
[11] VIEIRA, O amor como revolução, p. 38.
[12] HOOKS, All About Love, p. 98.
[13] VIEIRA, O amor como revolução, p. 41.
[14] VIEIRA, O amor como revolução, p. 46.
[15] HOOKS, Trechos de Writing Beyond Race, 2013.
[16] NIENHIUS, “Revolutionary Independence”: bell hooks’s Ethic of Love as a Basis for a Feminist Liberation Theology of the Neighbor. In: DAVIDSON & YANCY (eds.). Critical Perspectives on bell hooks. New York, Routledge, 2009, p. 206.
[17] GLASS, Love Matters: bell hooks on Political Resistance and Change. In: Davidson & Yancy (eds.). Critical Perspectives on bell hooks, 2009, p. 182.