Os sertões e os sertanejos muito além do discurso dominante

No momento em que a Festa Literária Internacional de Paraty e a realidade política do país nos encorajam a voltar os olhos para Euclides da Cunha, a Editora Elefante traz a obra coletiva Sertão, sertões. O reiterado apagamento histórico das lutas sociais brasileiras jamais conseguiu silenciar a história dos vencidos. Nunca foi tão urgente repensar as contradições e reconstruir as veredas tortuosas da nossa formação política e social

A partir da obra icônica de Euclides da Cunha e da histórica resistência de Antonio Conselheiro no arraial do Belo Monte, Sertão, sertões: repensando contradições, reconstruindo veredas, organizado por Joana Barros, Gustavo Prieto e Caio Marinho, faz uma leitura a contrapelo da história de Canudos e do imaginário sertanejo, desde a guerra que dizimou aquela população de “jagunços” até os dias atuais, passando pelas disputas territoriais e pelas obras de combate à seca.

Sertão, sertõesna verdade, são dois livros em um. De um lado, traz as fotografias mais marcantes sobre Canudos — não apenas as imagens de Flávio de Barros, que registrou o massacre empreendido pelo Exército em 1897, mas também dos momentos posteriores ao conflito: as reportagens de Pierre Verger, nos anos 1950; a documentação realizada por Claude Santos, Antonio Olavo e Alfredo Villa-Flôr na segunda metade do século XX; e fotos atualíssimas, feitas pelos próprios autores durante suas andanças pelas veredas de Canudos. As imagens são acompanhadas por análises que as localizam e contextualizam simbólica e historicamente como retratos de fases distintas da trajetória social do país.

Virando Sertão, sertões de ponta-cabeça, o leitor encontra um livro de textos que, assim como Os sertões, se divide em três partes. “Partimos do livro de Euclides da Cunha não para lhe render homenagens, mas para, caminhando pelas brechas e ranhuras da história dos vencedores, encontrar os sentidos múltiplos e diversos que constituem a formação social brasileira”, escrevem os organizadores: “um longo processo marcado pelo conflito e pela disputa dos sentidos de pertencimento e de constituição do mundo comum, de regulação do mando privado e das formas de existência social.”

Colocando em questão a fortuna crítica sobre Os sertões e o próprio sentido de sertão, a primeira parte — “No chão dos sertões e suas veredas” — se inaugura com uma carta do grande crítico Antonio Candido escrita em 2001, em que relaciona a resistência de Canudos à luta contemporânea pela reforma agrária, e segue com quatro artigos sobre a disputa de narrativas sobre a história de Canudos e sobre o que é “sertão”, “sertanejo” e “Nordeste” — tema que continua atual, uma vez que a região e seus habitantes continuam a ser considerados por certa elite econômica como sinônimo de atraso.

“A terra dos homens” se dedica aos aspectos físicos do sertão. O primeiro texto é assinado pelo renomado geógrafo brasileiro Aziz Ab’Saber, que nos leva a conhecer o domínio das caatingas. Outros dois artigos nos oferecem elementos para compreender e criticar os discursos dominantes sobre o combate à seca — fenômeno típico e cíclico do semiárido nordestino —, demonstrando, com análises climáticas e ambientas, que, diante da inevitabilidade do fenômeno, a saída talvez seja aprender a “conviver com a seca”, quando ela ocorre, garantindo direitos e oferecendo condições de vida digna aos sertanejos.

Na última parte, “O homem em luta”, o livro se debruça sobre as disputas políticas, trabalhistas e territoriais que permeiam os sertões — e, mais precisamente, a região de Canudos — na atualidade. Aqui, encontramos textos sobre a organização dos trabalhadores rurais no Submédio São Francisco; a atuação do Judiciário como “mediador” dos conflitos agrários, sobretudo no que diz respeito às comunidades tradicionais de fundo e fecho de pasto; a existência, ainda hoje, de “seguidores” de Antonio Conselheiro, que se empenham em reescrever a história de Canudos sob o prisma de quem resistiu; e as contradições do acesso à água, que, devido a açudes e transposições, finalmente chegou à região — mas não para todos.

Após resistir às investidas do Exército sob as ordens da então nascente República, Canudos foi destruída duas vezes: primeiro com ferro e fogo, pelas mãos dos militares que executaram os conselheiristas e queimaram o arraial; depois, passados sessenta anos, durante a ditadura, pela inundação das águas do Açude Cocorobó. O reiterado apagamento histórico, porém, jamais conseguiu silenciar a história dos vencidos. É esta que, como a ponta da igreja de Canudos em épocas de seca, reemerge nas páginas de Sertão, sertões, reforçando a necessidade de repensar as contradições e reconstruir as veredas tortuosas da formação política e social brasileira.

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LANÇAMENTO

Barco da Flipei (Festa Literária Pirata das Editoras Independentes)
Festa Literária Internacional de Paraty
10 a 14 de julho

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