Livros para não cair nas mentiras de Israel

 

Quem ainda diz que o genocídio cometido por Israel contra o povo palestino não tem nada a ver com o Brasil pode começar explicando por que os governadores de São Paulo e de Goiás e um deputado federal tomaram um avião para apertar a mão de Benjamin Netanyahu, e também por que lideranças evangélicas se encontraram com o presidente de Israel, Isaac Herzog, tudo em meio à campanha militar contra Gaza. Se o que acontece na Palestina não tem mesmo relação com a política brasileira, precisam ainda explicar por que a bandeira israelense tremula em manifestações conservadoras aqui e por que o então pré-candidato à presidência Jair Bolsonaro se fez batizar no Rio Jordão.

O genocídio em curso na Palestina diz respeito não apenas ao Brasil mas ao mundo inteiro, pois, ao empreender o massacre de uma “população indesejada” com tamanha desenvoltura, tecnologia, liberdade e apoio das grandes potências ocidentais, o Estado de Israel se consolida como a utopia realizada da extrema direita global. Pelo mesmo motivo, o discurso proferido pelo primeiro-ministro israelense no Congresso dos Estados Unidos, em 24 de julho, é de grande importância. Foi um discurso repleto de mentiras e manipulações, claro, mas também muito revelador da ideologia sionista e etnonacionalista de Israel, emulada pela extrema direita em cada canto do planeta. Para percebê-lo, porém, é preciso ler as entrelinhas. E os livros da Elefante ajudam nessa tarefa.

Por exemplo, Netanyahu disse o seguinte aos parlamentares estadunidenses: “Alguns dos manifestantes [que protestam contra o genocídio do povo palestino] seguram cartazes dizendo ‘Gays por Gaza’. Eles também deveriam segurar placas com o slogan ‘Galinhas pelo KFC’”, em referência à cadeia de fast-food estadunidense que vende frango frito. No livro Gaza no coração, há um capítulo chamado “Pinkwashing e homonacionalismo no contexto da Palestina”, assinado por Kais Husein e Gabriel Semerene, que explica: “Elaborado por ativistas palestinas e palestinos, o conceito de pinkwashing é sobretudo empregado para descrever a manipulação do homonacionalismo pelo Estado israelense e seus defensores, contrastando seu status de ‘detentor de direitos LGBT’ com a opressão sombria e letal supostamente vivida por minorias sexuais e de gênero palestinas, árabes ou muçulmanas”.

Gaza no coração também descontrói o seguinte argumento de Netanyahu: “Eles [os manifestantes] consideram Israel um Estado colonialista. Será que eles não sabem que a Terra de Israel é onde Abraão, Isaac e Jacó rezaram, onde Isaías e Jeremias pregaram e onde Davi e Salomão reinaram? Por cerca de quatro mil anos, a Terra de Israel foi a terra natal do povo judeu. Sempre foi nosso lar, e sempre será”. Para além das referências bíblicas, os textos de Arlene Clemesha (“Nakba e os percursos historiográficos de uma tragédia sem fim”) e Samira Adel Osman (“A conquista da Palestina: uma terra, muitos povos”) resgatam a história da ocupação plural e ancestral da região, bem como a limpeza étnica empreendida por Israel contra os palestinos a partir de 1948.

Além disso, em A destruição da Palestina é a destruição do planeta, Andreas Malm demonstra como Israel e o sionismo são criações das potências ocidentais, notadamente Inglaterra e Estados Unidos, para defender seus interesses comerciais e geopolíticos no Oriente Médio, movidos a combustíveis fósseis. Netanyahu é muito claro nesse ponto, ao se dirigir aos parlamentares reunidos no Capitólio: “Quando Israel combate o Hamas, estamos combatendo o Irã. Quando combatemos o Hezbollah, estamos combatendo o Irã. Quando combatemos os houthis, estamos combatendo o Irã. E quando combatemos o Irã, estamos combatendo o mais radical e assassino inimigo dos Estados Unidos”, relacionou. “Nossos inimigos são os inimigos de vocês, nossa luta é a luta de vocês, e nossa vitória será a vitória de vocês. […] Nós continuamos fazendo com que os Estados Unidos não precisem colocar tropas em terra para proteger nossos interesses comuns no Oriente Médio. […] Nós estamos protegendo vocês”.

Apesar dos números catastróficos relacionados à morte de crianças, mulheres, médicos, jornalistas, trabalhadores de ajuda humanitária etc., e das imagens de absoluto sofrimento e desespero que já estamos fartos de ver nos canais de notícias e nas redes sociais, o primeiro-ministro israelense teve coragem de dizer: “O promotor do Tribunal Penal Internacional acusa Israel de atingir civis deliberadamente. Por Deus, do que ele está falando? As Forças de Defesa de Israel lançaram milhões de panfletos, enviaram milhões de mensagens de texto, realizaram milhares de ligações telefônicas para que os palestinos saíssem da zona de conflito”. Como se não bastasse, completou: “Para Israel, cada morte civil é uma tragédia”.

Em Quero estar acordado quando morrer, Atef Abu Saif oferece mais de trezentas páginas de um doloroso testemunho que demonstra a mentira criminosa dessas palavras. Aqui apenas um trechinho:

 

As filas das padarias estão mais longas esta manhã. Milhares de mulheres, homens e crianças esperam o pão. Na frente da padaria Al-Chanti, na Rua Wihda, a fila tem mais de quinhentos metros, assim como na frente da padaria Al-Ailat, na esquina entre a Wihda e a Nasser. De acordo com o presidente da Associação das Padarias, Abdelnasser Ajrami, sete estabelecimentos foram atingidos por mísseis israelenses. Há duas noites, a padaria perto da casa da minha irmã Asmaa, um lugar chamado Abu Rabia, foi completamente destruída, assim como a vida da maioria das pessoas que aguardavam na fila do lado de fora. […] É como se os israelenses estivessem procurando os alvos mais fáceis de todos; eles também atingiram o Hospital Batista e várias igrejas — tão óbvio, tão ruim para a imagem deles. Poderiam culpar os palestinos por esses ataques. Porém, presumindo que atingir dois hospitais poderia parecer suspeito, eles estão mirando alvos fáceis e menores, mas em grande número: padarias com filas quilométricas de pessoas pacientes, a maioria crianças, esperando para morrer — ou de maneira rápida, por ataque aéreo, ou lentamente, de fome, com as filas aumentando a cada dia.

 

Um último exemplo, entre muitos outros possíveis, da desfaçatez extremamente instrutiva de Netanyahu: “Por décadas, os Estados Unidos proveram Israel com uma generosa assistência militar, e Israel, muito agradecido, proveu os Estados Unidos com informações de inteligência que salvaram muitas vidas. Juntos, desenvolvemos algumas das mais sofisticadas armas do planeta […], que ajudaram a proteger ambos os países”. O jornalista australiano Antony Loewenstein escreveu um livro inteiro sobre a indústria de armas e vigilância israelense. Em Laboratório Palestina: como Israel exporta tecnologia de ocupação para o mundo, Loewenstein demonstra como a entidade sionista utiliza Gaza e Cisjordânia como campo de testes para suas armas:

 

Israel desenvolveu um setor armamentista de categoria internacional, graças à conveniência de poder utilizar equipamentos em territórios palestinos ocupados para depois vendê-los como “testados em batalha”. Graças à marca IDF, empresas de segurança israelenses figuram entre as mais bem-sucedidas do mundo. O Laboratório Palestina é um tradicional ponto de venda israelense. Pense no Pegasus, infame software de hackeamento de telefones celulares desenvolvido pelo NSO Group que proliferou durante a era Netanyahu, conforme Israel o utilizava para angariar apoio diplomático internacionalmente. “Antes um risco internacional, o etnonacionalismo à moda antiga de Israel e seu tratamento linha-dura com os palestinos tornaram-se um trunfo”, escreveram Max Fisher e Amanda Taub no New York Times em 2019.

 

Enfim, os livros da Elefante auxiliam no processo de crítica da fonte, que a historiadora Joana Salém Vasconcelos descreveu — e realizou — em Inquérito Paulo Freire, ao analisar os interrogatórios aos quais a ditadura submeteu o educador logo após o golpe de 1964: “A crítica da fonte é o procedimento historiográfico que permite superar a tentação da literalidade e combater a leitura ingênua e apressada, que leva ao erro de interpretação. Engana-se quem pensa que a crítica da fonte seja uma técnica específica do historiador. Trata-se, na verdade, de um requisito social para a inteligência democrática coletiva”. Iremos continuar cumprindo esse papel.

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