Por Soledad Barruti
Publicado originalmente na Revista Anfibia
Traduzido pela Bocado
– “Não se preocupe com minha comida, mamãe, já pedi um Rappi”.
O assunto teve início poucos dias depois de ser declarado o confinamento preventivo e obrigatório em razão da covid-19, enquanto meu filho começava a frequentar seu último ano de ensino médio. Primeiro, foi uma proposta tímida e espaçada. Não saberia dizer quando se instalou como uma norma, mas, em algum momento da quarentena, a cada dois ou três dias tocava a campainha de casa algum garoto de bicicleta carregando a mochila térmica de onde saía uma sacola de papel-madeira manchada de óleo.
Nesses meses eternos de insônia e aulas via Zoom, a comida de rápida entrega foi para Benjamín o que era para muitos: respiro, espaço de fuga, estímulo de dopamina para elevar os centros nevrálgicos do prazer que a pandemia destruiu. Meu filho pediu em um ano mais de 100 hambúrgueres e chegou, assim, à média coletiva nacional (que ainda continua em franco crescimento).
Dois medalhões de carne de 150 gramas, cheddar líquido, quatro fatias de bacon, crispy de cebola, batatas fritas, molho barbecue.
Dois medalhões de carne de 250 gramas, duas fatias de bacon, duas fatias de cheddar, cebola roxa, pepinos agridoces, ketchup e mostarda, batatas fritas.
Medalhão 350 gramas, queijo cheddar, macarrão farfalle, crispy de bacon e batatas.
Quatro medalhões, queijo cheddar, pepinos, alface roxa, pão brioche untado em manteiga.
“Hambúrgueres caseiros”, define ele, convencido, assim como tantos outros, de que existe um salto quântico entre a comida de estabelecimentos como McDonald’s e aqueles onde a carne é amassada por um humano do outro lado da vitrine, os pães têm gosto de pão e o alface não parece ser de plástico.
“Hambúrgueres Gourmet”, “de autor”, “fast good”, celebram chefs famosos que sabem que a proposta de carne moída, massa redonda decorada com coisas e selada entre dois pães nunca foi uma moda (muito menos passageira). Declarados cancerígenos como o plutônio e o cigarro pela OMS em 2015, os hambúrgueres são, desde os anos 1950, ponta de lança de um sistema econômico avassalador, símbolo e sintoma puros. Um modo de ser e de se vincular, um modo de desejar e de pensar, uma ideologia consumida e encarnada inclusive por quem detesta as ideologias: um poderoso ato político e agrícola.
Os hambúrgueres somos nós: comedores vorazes dessa combinação perfeita de gorduras (carne, queijos, bacon, batatas, temperos) com sal (que aguça as papilas gustativas fazendo exaltar os sabores) e açúcar (que se infiltra através da carne dourada, dos caramelizados, do ketchup, dos pães). Uma combinação que nos torna viciados e nos destrói. Somos comensais que engolem e digerem combos para um, mesmo que sem identidade, que dão a mesma ordem que recebem: imediatismo, homogeneização, nenhum questionamento, nem sequer hoje que estamos a um triz do colapso coletivo.
Uma vaca pesa cerca de 500 quilos. Tirando seu couro, boa parte de sua gordura, seus órgãos e ossos, restam em torno de 150 quilos de carne para o corte. São entre 4 mil e 600 hambúrgueres, dependendo se o produtor é o McDonald’s ou uma dessas novas generosas hamburguerias que servem peças de 250 gramas. São necessárias muitas vacas – bilhões são engordadas por ano – para um capricho global carnista comandado pelos Estados Unidos, onde são comidos 50 bilhões de hambúrgueres por ano. Um novo gosto mundial que, caso deixemos, espera-se que cresça 75% até 2050.
Deixando de lado a vida e a morte violenta desses ruminantes, os danos colaterais desse gosto pontual incluem florestas destruídas e derrubadas, e terrenos úmidos incendiados para que cresça aquilo que as vacas comerão: pastos ou grãos regados com veneno. Muitos gases de efeito estufa: tantos que se as vacas formassem um país seriam o terceiro emissor do mundo. Toneladas de água potável: 15 mil litros por quilo de carne. Solos desertos. Pragas como esta que nos mantêm presos dentro de casa, zoonoses que saem como maldição apocalíptica quando a natureza fica destruída e outros males provocados pelo uso absurdo de antibióticos por essa indústria. Migrações forçadas de comunidades inteiras que não podem viver sem florestas, água ou solos e partem já doentes às periferias da vida urbana. Uma trilha de morte com tantas plantas e animais no currículo que tem um nome que parece o de um lançamento de Hollywood: A Sexta Extinção.
Um drama tão grave e próximo que coloca em dúvida a possibilidade de saúde e vida adulta de meu próprio filho. Mas ele, adolescente, não está pensando dessa forma, e muito menos em pandemia. Tampouco pensam assim muitos que deixaram de comer carne. Nem para essa direção se orientam as forças da ciência ou daqueles que têm o poder que poderia transformar tudo.
Um mundo sem hambúrgueres?
Nada disso.
De Bill Gates a Jeff Bezos, do Silicon Valley a Harvard, da ONU à organização animalista PETA, todos parecem estar trabalhando pela mesma missão: o futuro será com eles ou não será.
Então, aqui estou, uma terça-feira às 9 da manhã, dentro do coração de um laboratório. Visto três roupas brancas de diferentes espessuras, sobrepostas e fechadas para cobrir meu corpo inteiro até formar uma capa hermética. Uso uma máscara N95 que aperta minha cara como uma focinheira, óculos de plástico que ficam embaçados com a máscara, embora a respiração seja tão difícil que a visão é o de menos. Também um par de luvas de látex longas, uma touca que prende o cabelo e uma roupa de mergulho de tecido que fecha por cima. Minha imagem é um cartão postal que parece ter sido fotografado nos primeiros dias de Covid em Wuhan.
Vestir tudo isso significou passar por três salas fechadas a vácuo com diferença de pressão para evitar a circulação de ar. Uma força que volta para as portas pesadas e um pouco também para o corpo. Além disso, aprender movimentos precisos para passar de uma sala a outra, vestir cada macacão em banquinhos de transição e tocar apenas o que for imprescindível. Dar um passo em falso, deixar um fio de cabelo solto, um fragmento de pele sem tampar ou uma partícula que saia do meu corpo poderia ser fatal. Não para mim nem para os dois cientistas que me guiam – a bióloga Laura Correa e o bioquímico Diego Dominici – e sim para a carne em formação que agora tenho à minha frente: pequenos anéis esbranquiçados e gelatinosos boiando em um líquido violeta e fechados em uma caixa Petri (um recipiente de cristal usado em laboratórios para preservar a esterilidade).
O que vejo, dizem, é o futuro próximo. Carne (quase) sem corpos, desmatamentos ou matanças. Células que formam tecidos que podem ser misturados entre si e adicionados com coisas até se tornarem parecidos à carne moída.
“Coma carne, não animais”, dizia um folder na mesa de entrada deste lugar chamado Craveri, um laboratório que visitei para tentar compreender do que se trata essa proposta mais provocativa (ambiciosa? delirante?) da ciência para uma humanidade que caminha rumo ao abismo, mas que não quer alterar o cardápio.
O laboratório fica em uma rua tranquila do bairro de Caballito, na cidade de Buenos Aires, e há 25 anos se dedica à engenharia de tecidos: cultivos in vitro para tratar doenças humanas. Se você precisa de um transplante de epitélio corneano, cartilagem ou pele, é aqui onde podem colher uma amostra e fabricar o pedacinho que falta. E, em pouco tempo, se tudo correr bem, pode ser aqui também o local onde as hamburguerias virão se abastecer de carne.
Laura Correa é bióloga e dirige a área de bioengenharia do laboratório que agora, focado nesse projeto, é chamado de BIFE. Uma mulher de 43 anos, vegetariana desde os 15, loquaz e simpática. Diego Dominici, seu companheiro de equipe, é dois anos mais novo, também não come carne porque não come nada que não se animaria a obter por seus próprios meios e está convencido de que para sair do atoleiro apocalíptico é preciso ativar a imaginação, aventurar-se. Laura, Diego e uma pequena equipe de oito pessoas compartilham há cinco anos a mesma jornada: este universo intenso da carne cultivada; esta sala de ar imaculado sem janelas nem cheiros, com luzes brancas, uma pequena bancada, microscópios, duas geladeiras e duas máquinas para reproduzir as condições que as células necessitam para formarem um músculo. Ou seja, um lugar ocupado por máquinas que substituem um corpo: o de um novilho vivo do qual foram extraídos as amostras.
– As biópsias são feitas em um campo de gado em Tandil (província de Buenos Aires) –, diz Diego mostrando-me um tubo de ensaio com um cubo de carne escura dentro.
– Como são extraídas?
– Utilizamos um novilhinho para quem tudo isso é muito pouco traumático. Ele é sedado para que possa ser deitado e em uma incisão bem pequena os veterinários tiram a amostra, o suturam, e ele continua com sua vida normal.
– Posso vê-lo?
– Claro –, diz ele, abrindo um caderno de notas escritas à mão, uma espécie de diário do projeto, e três fotos do novilho em questão.
É um animal preto, “macho castrado raça cruzamento Aberdeen Angus de um ano”. Ele está de pé e amarrado por uma corda, depois tombado e meio rígido, com quatro campos cirúrgicos marcados sobre o lombo. Daí serão coletadas as amostras: pedaços de animal “do tamanho de um Halls”, diz Diego.
– Esta amostra que coletaram aqui é um pouco maior. Com a metade disso já seria suficiente, diz, voltando ao tubo, e penso nos veterinários aprendendo a escolher um animal saudável que não irá ao matadouro para lhe cortar pedacinhos que acabarão reproduzindo carne.
Parece simples, mas não é.
As células são frágeis e exigentes. Reproduzem-se rapidamente, mas não tanto quanto uma bactéria, por isso toda a instalação estéril desse laboratório que, entre outras coisas, custa milhões. Uma vez isoladas, as células são alojadas em um biorreator; uma caixa de metal que oferece as condições de vida necessárias. “Aqui há sempre 37 graus, uma porcentagem de dióxido de carbono de 5 por cento e umidade saturada”, diz Diego, abrindo a porta do sofisticado aparato de metal onde vivem milhares de células distribuídas em seis caixas Petri com forma de garrafa amassada.
As células não são visíveis sem microscópio, mas lá estão, submersas no líquido vermelho que as contém e transporta. O alimento que lhes proporciona o que um corpo animal necessita é sangue: soro fetal bovino extraído nos frigoríficos cada vez que – supostamente sem querer nem saber, porque supostamente está proibido – matam uma vaca prenha. Então, extraem o feto “acidental”, que devem checar que esteja morto e, com uma punção cardíaca, extraem desse corpo a maior quantidade de sangue possível. Esse sangue é filtrado e industrializado com glicose, proteínas, vitaminas, oligoelementos, hormônios e fatores de crescimento. O produto – soro fetal – é vendido por mais de 100 dólares por litro para uma quantidade enorme de propósitos: vacinas, reativos, cosmética e, agora, também – um círculo perfeito – a indústria da carne.
Embora existam pesquisas para evitar o uso de soro fetal bovino (“nossa intenção é começar a testar formulações que o substituam”, diz Laura) e outras para pular a parte das biópsias em novilhos castrados, a carne de cultivo não seduz tanto por causa de seus ingredientes originais, mas sim com o tempo e o espaço. Tirar a carne da natureza e transferi-la a um laboratório para seu crescimento artificial, asseguram quem a promove, deixaria milhões de animais em paz e permitiria devolver às florestas seu lugar e conter o aquecimento global.
A chave está na graça natural da biologia: sua persistência. As células saudáveis têm a capacidade de se dividir exponencialmente até envelhecerem e, então, deixarem de se reproduzir. A tarefa dos cientistas consiste em acompanhá-las durante esse caminho, guiá-las, nutri-las e separá-las para que o processo comece novamente. Se a tecnologia os acompanhasse, poderia dar muita carne.
– Seis mil hambúrgueres a partir de apenas uma amostra –, diz Diego, abrindo seus grandes olhos pretos como um menino esperançoso.
– Tudo isso?
– Claro. Nós temos o conhecimento científico para isso – soma-se Laura, com tamanha segurança que convence –. O que nos falta é desenvolvimento tecnológico para o executar.
Mais biorreatores. Ou seja, mais espaço e energia. Tanta energia que alguns estudos comparativos discordam que a carne de cultivo possa significar menos emissão de gases de efeito estufa. E, por fim, mais dinheiro, o que resulta em outro vício de época: o patenteamento de técnicas e serviços e a privatização, nesse caso da carne, por duas empresas no mundo (talvez somente uma). Uma versão superior à agricultura sem agricultores pensada atualmente pelo agronegócio transgênico: um sistema alimentar ciborgue.
Mas o certo é que, embora esse outro mundo seja possível, para que a carne cultivada tenha sucesso ainda falta muito: sozinhas, as máquinas que tenho à minha frente não conseguem fazer mais do que dois medalhões. Nem estas nem as máquinas ativas que existem hoje em todo o planeta. “Se considerarmos toda a capacidade biofarmacêutica do mundo trabalhando a todo vapor, daria para alimentar somente a capital da Argentina”, diz Diego, sem perder o brilho onírico, apesar de estar dizendo três milhões de pessoas em um mundo que amanhã vai chegar a nove bilhões.
O primeiro hambúrguer de carne cultivada foi anunciado em 2013 pelo professor de fisiologia vascular Mark Post, da Universidade de Maastricht, Holanda. Custou 300 mil dólares, foi cozinhado pelo chef Richard McGeown e provado pelo pesquisador Josh Schonwald e pela crítica gastronômica Hanni Rützler. “Falta-lhe suculência e gordura, mas a consistência é perfeita. Tem gosto de carne”, disse Rützler. O evento foi celebrado por ativistas reconhecidos no mundo do veganismo como Paul Shapiro, fundador da organização Compaixão acima do Assassinato (Compassion over Killing), que depois escreveria um livro no qual apresenta a carne cultivada como a tão ansiada libertação animal. Clean Meat foi publicado em 2019, e o prólogo foi escrito por outro vegano célebre, o historiador Iuval Harari.
Alguns anos antes, em 2008, a organização animalista PETA oferecia um milhão de dólares ao grupo de cientistas que fosse capaz de desenvolver algo parecido à carne cultivada. Hoje, existem 40 pesquisas formais em curso, com investidores como Sergey Brin, um dos fundadores do Google; Richard Branson, CEO do conglomerado Virgin; e os gigantes da carne Tyson Foods e Smithfields. São realizados congressos anuais onde se apresentam testes com cangurus, ratos e peixes, porque pode-se cultivar qualquer coisa que tenha células. Há carne feita de células extraídas de penas e de embriões. Há, também, planos para desenvolver um cultivo-mãe que possa durar para sempre a partir de células cancerígenas que, ao contrário das células saudáveis, têm a capacidade de se imortalizarem.
– Essas linhas de investigação que nos distanciam cada vez mais do animal são muito interessantes – diz Laura –. “Não para o mercado, mas, por exemplo, para a exploração espacial, para onde não poderiam ir com um animal vivo para recolher amostras, mas sim com um cultivo imortalizado”. Escuto-a e, embora entenda as palavras, chego a um ponto em que não consigo imaginar esse futuro nem dimensionar esse presente estranhíssimo no qual já existe uma carne cultivada que pode ser comprada: frango.
Em dezembro de 2020, um restaurante em Cingapura – o primeiro país a considerar seguro e apto para o consumo humano o desenvolvimento de frango cultivado – começou a oferecer nuggets saídos integralmente de um laboratório.
– Por que são sempre elaborados?
– Porque desenvolver um bife é mais complexo – explica Laura–. Nas salsichas, nuggets e hambúrgueres, os saborizantes têm um efeito primordial. Por isso, como primeira estratégia funcionam muito bem.
– Vocês os comeriam? – pergunto aos cientistas.
– Acho que não é essa a pergunta – responde Diego – A carne cultivada não é proposta como uma alternativa para aqueles que não estamos mais comendo carne. O que ela busca é diminuir seu consumo entre aqueles que querem continuar a comê-la. Essa é a mudança real.
O pesquisador tem consciência de que ainda existem muitos obstáculos a serem superados para que isso ocorra, mas também vive satisfeito por trabalhar nisso. Suas missões primordiais agora são encontrar substitutos para o sangue e as estruturas que guiam as células, desenvolver mais tecidos – “A carne tem tecido muscular, adiposo, conectivo, nervoso, vascular: todos contribuem para o sabor, a textura, a consistência. Se queremos emular a carne, temos de poder cultivar todos esses” – e conseguir fazer uma boa receita que seduza os comensais.
– Este ano tudo atrasou por causa da pandemia, mas eu já fiz alguns testes culinários – diz Diego –. Fui até a cozinha, pedi ao cozinheiro um pouco de azeite e condimentos para ver como se comportava: se diminuía de tamanho, se mudava de cor, de consistência…
– E?
– Não pude comer porque você não pode comer seu próprio experimento, mas cheirava a rotisseria.
– Você comeria hambúrguer de carne cultivada? –, pergunto ao meu filho.
– Se for gostoso, why not?
– Se fosse estranho para você comer algo que cresce em um laboratório.
– Não tenho nem ideia de onde cresce o queijo cheddar.
Ele tem razão. Faz um tempo que ninguém sabe de onde vem nada, faz tempo que isso pouco importa.
A indústria explica suas criações com publicidade, o Estado autoriza e uma gama de especialistas dá seu aval intencionalmente ou por omissão. Além disso, um bom combo de hambúrguer funciona para inibir qualquer impulso de indagação: somente ao se pensar nele são ativadas intensamente no cérebro as zonas de recompensa que levam do desejo ao ‘eu gosto disso’ e do ‘eu gosto disso’ ao ‘quero mais’. Uma cascata de reações químicas tão reconfortantes que nos torna dependentes. O restante é feito por essa modernidade com seus animais que não valem nada, suas matas destruídas, seus Rappi a granel: suprimindo os obstáculos que vão do quero ao posso e formando milhões de paladares com gordura, açúcar e artifício, acostumando-os a prazeres instantâneos aos quais depois não é fácil renunciar.
Nesse contexto, surgem as propostas que consistem em investir cérebros e fortunas para desenvolver tecnologias que sirvam para mudar a origem sem perder o objeto de desejo.
Enquanto a ideia de carne sem animais ainda tem de esperar e resolver alguns dilemas éticos, econômicos e técnicos, a inteligência artificial já se tornou vegana. Ela demonstra isso ao cozinhar medalhões com ingredientes vindos de plantas para o Burger King e outros estabelecimentos onde meu filho também compra.
Segundo a consultoria Nielsen, apenas nos Estados Unidos esse tipo de produtos aumentou 42% entre 2016 e 2019, enquanto as carnes, apenas 1%. Na América Latina, essa moda começou tímida com leites de sementes, mas, nos últimos anos, uma média de 10% da população de nossos países se tornou vegana. O processo se acelerou tanto que em 2021 uma companhia de alimentos chilena plant based tem cotação em Wall Street: NotCo.
– Eu gostaria que você conhecesse a experiência porque uma coisa é falar e outra experimentá-las –, sugeriu-me do outro lado do Zoom Mauricio Alonso, a referência argentina da transnacional chilena. Um homem de 39 anos e fala pausada que há um mês foi pai pela segunda vez e há três anos deixava seu cargo de executivo na Danone para se aventurar nessa empresa que o fez pensar como nunca em plantas até tornar-se 95% vegetariano.
– Você quer que eu faça um pedido pelo Rappi? – pergunto a ele, que lista os restaurantes de Buenos Aires que vendem seus hambúrgueres.
Então decido fazer algo que nunca faço: pedir sem perguntar nem investigar muito, sem ler a lista de ingredientes do que vou comer.
– Você sabe que não gosto de comida vegana – me avisou logo Benjamín, que já está um pouco acostumado a ser parte de meus experimentos e seus fracassos. Entramos em um acordo: a dele será convencional e a minha de carne vegetal, queijo de amêndoas e maionese vegana com batatas.
Um garoto agitado em uma bicicleta tira de sua mochila a sacola de papel que traz as duas caixas. Fechados em papel alumínio e com as batatas fritas inclusas, um hambúrguer é de carne e o outro vegano, mas parecem iguais: recheados, gigantes, deliciosos.
Nesta parte devo contar que adoro comer carne. Gosto de todos os cortes e, sobretudo, de uma costela bem suculenta. O hambúrguer não é meu prato favorito, mas me declaro não imune a seu poder de sedução: quando há um à minha frente, fico com água na boca. Se há muito tempo evito tanto hambúrguer quanto churrasco é porque estou muito bem informada. Vi os campos, estive nos currais, senti a dor desses animais, senti o cheiro de medo e de merda. Gosto de carne, mas não consigo mais comer. A proposta da NotCo? Que a tecnologia me dê o que a natureza não pode mais me dar.
Meu hambúrguer tem tanto cheiro de carne quanto o de Benjamín, embora o aspecto do meu seja diferente: mais integral, mais laranja, mais sólido. Peço a ele que prove primeiro o vegano. Dá uma mordida gigante, depois mais outra, e, enfim, seu veredito: “Olha, prefiro o de carne, mas se você me convidar para comer em um restaurante vegano e me der isso, vou feliz.”
Minha vez de provar. É macio e consistente como a carne; tem o efeito grelha e a gordura e o sumo de um hambúrguer mais complexo por causa dos temperos, do pão, do queijo que sai pelas bordas, essa combinação imbatível agridoce com gordura.
Água, proteína texturizada de ervilha, óleo de coco, óleo de girassol alto oleico, fibra de bambu, proteína isolada de ervilha, sal, proteína isolada de arroz, cacau alcalino em pó, proteína isolada de chia, espinafre em pó, aromatizantes, metilcelulose, corante vermelho beterraba; óleo de girassol, água, amido, vinagre, açúcar, sal, farinha de grão de bico, suco de limão concentrado, mostarda, alho em pó, pimenta branca, aromatizantes naturais, goma xantana, ácido cítrico e etileno diamina tetra acetato.
Vinte e nove ingredientes sem contar os do pão, do queijo de amêndoas e das batatas fritas que acompanham, ingredientes que desconheço porque lamentavelmente os estabelecimentos de comida não incluem lista de ingredientes. Meu hambúrguer ultraprocessado sem carne e minha maionese ultraprocessada sem ovos são um quebra-cabeças de substâncias derivadas de plantas. (Com a exceção do muito polêmico antioxidante etileno diamina tetra acetato que é adicionado à maionese e que é obtido através da síntese do formaldeído, etilenodiamina e cianureto de sódio; uma substância que deveria incluir uma lista de contraindicações pelo menos para crianças ou gestantes).
Receitas que eu jamais conseguiria replicar em minha cozinha e cujos efeitos em meu organismo não conheço bem, porque nenhum alimento pode ser comparado com alguma de suas partes isoladas. Quem as desenvolveu foi Giuseppe: um algoritmo que deve seu nome a Giuseppe Arcimboldo, o pintor milanês que criava rostos através da junção entre plantas e frutas. Inteligência artificial para imitar sabores concretos que nossa civilização não quer deixar para trás.
Giuseppe, o algoritmo, tem um arquivo de centenas de plantas que analisa não de acordo com suas qualidades culinárias, e sim molecularmente, buscando aquelas substâncias que possam emular texturas, aromas, cores e sabores da carne (ou da maionese, do leite, do peixe). Decodifica ervilhas, repolho, chia, mas o resultado disso não são necessariamente alimentos, e sim estímulos que combinados entre si podem atuar sobre nossa percepção com a eficácia de nos convencer de que comemos algo que na realidade não é.
“A comida é DNA, RNA, carboidratos, proteínas, gorduras. Entre espécies há mais semelhanças do que diferenças, mas o que dá a diferença e faz a identidade do alimento é o desafio a ser vencido: busca-se fazer que diante da substituição o cérebro não note as diferenças”, diz um de seus criadores, Pablo Zamora, em um capítulo da série digital A Era da IA, produzida pelo Google e apresentada por Robert Downey Jr.
A primeira empresa a mostrar isso foi a Impossible Foods, que começou a estudar a carne até descobrir a heme, a molécula que lhe dá sabor. Uma molécula que curiosamente não é exclusiva da carne, mas também está presente em todas as criaturas do planeta. Com essa descoberta, lançou em 2011 a primeira dessas criações, o Impossible Burguer. Um medalhão ultraprocessado que sangra soja, leghemoglobina de soja transgênica e outros 20 ingredientes misturados em um laboratório.
A NotCo chegou alguns anos mais tarde por meio de três rapazes chilenos de 20 e tantos anos que estudavam em algumas das universidades mais famosas dos Estados Unidos (Berkeley, Stanford e Harvard). Pablo Zamora, Matías Muchnik e Karim Pichara; um geneticista, um especialista em finanças e um engenheiro. “Como é possível que entre tantos avanços existentes no campo da exploração espacial nossa comida continue sendo igual?”, perguntavam-se enquanto sonhavam com sua startup – empreendimento promissor e tecnológico – que não esperou muito para ver chegar o investimento: 30 milhões de dólares de Jeff Bezos, o fundador da gigante mundial Amazon.
“Eu nunca havia refletido sobre essas coisas, mas fazem todo o sentido: alimentar uma vaca por dois anos para matar e comer é um absurdo e um desperdício de dinheiro”, me diz Mauricio, o argentino da NotCo do outro lado do Zoom. “O futuro está aqui”, diz também, enquanto me explica que a missão da NotCo é crescer, posicionar-se e ensinar.
“92% de quem consome nossos produtos não são veganos nem vegetarianos”, dizem também na NotCo enquanto atravessam a grande porta que abrem juntamente com companhias como Sweet Earth, da Nestlé, ou Pure Farm Land, do produtor de carnes Smithfields. Porque a indústria Plant Based, como gostam de se chamar, não chegaram para rivalizar com a indústria de carnes, mas sim somar-se – usar seus investimentos, plantas processadoras, canais de distribuição, gôndolas de supermercados e restaurantes.
“Viemos para transformar a indústria por dentro”, resume Mauricio.
Uma aposta que ainda não foi comprovada. Na realidade, quanto maiores essas marcas se tornam, mais propensas se mostram a fazer o contrário: mudar seus princípios para se encaixarem nesse mercado de gigantes. O Impossible Burguer começou utilizando fontes de produção orgânica e alguns anos depois se tornava promotor dos organismos geneticamente modificados porque dizem: “Precisamos substituir 10 ^ 12 libras de produtos animais para cumprirmos nossa missão. 10 ^ 11 libras não salvarão o mundo. Ser uma empresa alimentícia de sucesso não é suficiente. Nem mesmo ser a empresa de alimentos mais bem-sucedida da história é suficiente. Precisamos crescer exponencialmente, duplicando a escala a cada ano durante os próximos 15 anos. Isso significa não apenas aumentar a escala de nosso impacto e nosso negócio todos os anos, mas sim escalar cada vez mais rápido a cada ano. O que parece ser grande agora em cinco ou mesmo dez anos será visto como minúsculo.”
Produzir muito uma coisa só – vaca, soja ou ervilha – e ultraprocessá-la leva inevitavelmente a forçar a natureza, que são os animais, as plantas, nós. Todos os problemas que nos encurralam surgem desse paradigma de simplificar, homogeneizar e industrializar o campo e a alimentação: as monoculturas tóxicas, as fazendas industriais, as mudanças climáticas, o empobrecimento rural e a superpopulação urbana. E, por fim, o boom de coisas comestíveis feitas sempre da mesma coisa e maquiadas para que pareçam outra, os “alimentos” que nos adoecem.
Esta é uma história longuíssima ainda com final em aberto e algumas ideias soltas, penso enquanto coloco no forno dois hambúrgueres de grão de bico que uns amigos me deram de presente. Eles aproveitaram a crise pandêmica para montar um empreendimento de hambúrguer vegano elaborado em casa com ingredientes agroecológicos comprados de produtores familiares. Embora não tenha nada a ver com a experiência de se comer um hambúrguer de carne, são deliciosos e certamente gostarei mais do que o ultraprocessado que comi na noite anterior. Além disso, poderei dividi-los com minha filha de quase três anos que ainda não experimentou nenhum comestível ultraprocessado e, portanto, é uma menina que desfruta da comida com um prazer sem dilemas, honesto, simples e concreto.
O que é comer? Que função esse ato tem para além da nutrição e do sabor que nos ganha pelo nariz?
Comer é conectar e se vincular com um território, suas plantas, seus animais, as pessoas, sua história. Uma história que pode ser de crueldade e extinção em massa com matadouros ou experimentos milionários, ou algo muito diferente: uma história de reconexão.
Quando a pandemia começava, entrevistei a cientista e líder ambiental Vandana Shiva. Falamos do mundo por vir, da necessidade de reparação, de como isso poderia acontecer. Falamos também desses hambúrgueres impossíveis.
“O que é Impossible Burguer? – me perguntou Vandana Shiva – Um hambúrguer artificial criado em um laboratório com plantas vindas de monoculturas tóxicas, ou seja, tratadas com violência, que para sua produção violentam camponeses, borboletas e abelhas, e animais que obviamente não vivem mais no entorno desses cultivos. Esse hambúrguer de soja que parece carne sangrenta é uma mentira. E existe algo que se chama verdade: não é possível anunciar uma ideia de alimentação não violenta partindo desses alimentos, dessa relação mentirosa com a terra e com o próprio corpo.
“Eu diria a quem anuncia isso como a salvação que acordem: a alimentação baseada em plantas que crescem com toda essa violência não produz nada melhor. Comam uma cenoura e reconheçam isso como alimento: conheçam de onde vem, como foi produzida, deem à planta a dignidade que merece. Não a deixem ser material para experimentos, manipulação e controle. Talvez quem come essas invenções acredite que chegou a algo melhor, mas somente porque permanece cego a todo o horror que decidiu não ver. E, assim, como um dependente de heroína, será levado desse sistema para outro nível mais tenebroso e difícil de sair, com um custo altíssimo para a terra em sua totalidade e para si mesmo.”
Estamos à beira da extinção em massa por causa da imposição de um sabor absoluto – vamos chamá-lo de hambúrguer; ou melhor, chamemos de capitalismo – que não pode conviver com outros. São sempre os mesmos que se apossam e comem o mundo: o agronegócio de vacas e soja ou Bill Gates, Jeff Bezos e até Leonardo DiCaprio e laboratórios onde quem tem o conhecimento para cultivar a terra, guardar as sementes ou cozinhar com comida de verdade só pode entrar como funcionário de limpeza.
Poucas coisas são mais fascinantes do que essa missão chamada futuro. No entanto, até agora ela tem resultado em caras apostas que, em sua melhor versão, a evidência projeta como paliativos temporários para um planeta que está em pedacinhos. Alternativas tão fantasiosas como acreditar que nossa civilização pode continuar sendo parte desse destrutivo bacanal carnista. Comamos sobretudo plantas, mas diversas, frescas, colhidas e elaboradas por pessoas que tenham as culturas alimentares como guias. Esse plano, sustentado por milhões de agricultores há dez mil anos, mas descartado por ser pouco sofisticado por um poder apaixonado pelo Vale do Silício, é o que segue sustentando o melhor de nosso sistema alimentar: sua biodiversidade, seus sabores reais, essa conexão com a natureza que precisamos recuperar antes que seja tarde demais.