Uma pequena intifada editorial: quatro novos livros sobre a Palestina

 

É com um gosto amargo na boca que abrimos, hoje, 20 de junho, Dia Mundial do Refugiado, a pré-venda de quatro livros sobre a Palestina: Gaza no coração, organizado por Rafael Domingos de Oliveira; Laboratório Palestina, de Antony Loewenstein; Quero estar acordado quando morrer, de Atef Abu Saif; e A destruição da Palestina é a destruição do planeta, de Andreas Malm (mais sobre cada um deles abaixo). Apesar de sermos profundamente solidários com a luta de libertação do povo palestino desde antes da fundação da editora, estes são os primeiros títulos de nosso catálogo sobre o tema — o que nos causa grande constrangimento. Começamos, agora, a corrigir esse erro. E no momento que é possivelmente o mais grave de toda a história da colonização ocidental/israelense na região.

A Elefante foi rápida em se posicionar contra o genocídio promovido por Israel em Gaza. Em 12 de outubro de 2023, quatro dias depois do início dos bombardeios, postamos em nossas redes sociais a bandeira palestina, com um texto inequívoco, denunciando o “regime de morte lenta imposto há décadas” aos palestinos. Em 23 de outubro, nosso editor, Tadeu Breda, publicou no Blog da Elefante o ensaio “Gaza e os filhos de Eichmann” e, em 5 de março de 2024, “Gaza, São Paulo, a normalização do massacre”. Fomos uma das poucas editoras brasileiras a expressar solidariedade explícita aos palestinos e a chamar o que estava acontecendo pelo nome — genocídio — num momento em que muita gente ponderava sobre o “direito de defesa” de Israel ou tinha medo de se indispor com o poderoso lobby sionista na mídia e nas letras.

É claro que, mais cedo ou mais tarde, nossa postura se expressaria em livros, em linha com a tradição da Elefante de trazer obras que possam dialogar criticamente com a conjuntura. Estamos trabalhando nesses títulos há meses. Acontece que o tempo dos livros é muito mais lento do que exigem as emergências. Mas estamos fazendo tudo para trazer, o mais rápido possível, com qualidade, pontos de vista relevantes (e invisibilizados) que possam enriquecer o debate público sobre o tema — que tem sido sofrível, tendencioso e superficial. É simplesmente asqueroso ler as notícias enviesadas da grande imprensa enquanto fotos e vídeos de mulheres e crianças palestinas mortas pululam todos os dias nos meios de comunicação alternativos, e os membros do governo israelense regozijam com bombardeios e massacres, respaldados pelas potências ocidentais, pedindo mais sangue. Nossa angústia e revolta começam a ser mais bem canalizadas agora, com o que fazemos de melhor.

Gaza no coração: história, resistência e solidariedade na Palestina é uma iniciativa do historiador Rafael Domingos de Oliveira prontamente acolhida pela Elefante. Tão indignado quanto nós, Rafael convidou mais de quarenta pessoas direta ou indiretamente envolvidas com a causa palestina para escrever textos de solidariedade. Muita gente atendeu generosamente ao chamado. O projeto excedeu a intenção original e resultou em um livro que abarca aspectos cruciais da história e da resistência do povo palestino contra o colonialismo israelense. É uma obra multidisciplinar e intergeracional, que tem tudo para se tornar leitura obrigatória para quem deseja começar a se envolver e se aprofundar em diferentes aspectos da questão. Para entender a proposta, vale a pena dar uma olhada no sumário do livro. A capa é uma homenagem ao tatreez, bordado ancestral das mulheres palestinas. O título é uma referência ao poemário que Pablo Neruda publicou em 1937 sobre os horrores da Guerra Civil Espanhola. E todo o lucro obtido com a venda de Gaza no coração será destinado a organizações de apoio aos palestinos nos territórios ancestrais ou ocupados ou na diáspora.

Já estávamos de olho em Laboratório Palestina: como Israel exporta tecnologia de ocupação para o mundo, de Antony Loewenstein, quando Silvia Federici (que, aliás, escreveu um texto especialmente para Gaza no coração) nos recomendou fortemente o livro, que havia sido publicado há poucos meses pela editora inglesa Verso. Começamos a traduzi-lo na mesma hora. A tarefa ficou com Gabriel Rocha Gaspar, que, como sempre, fez um belo trabalho. Loewenstein é um jornalista e documentarista australiano de origem judaica alemã que mergulhou nas relações comerciais e diplomáticas de Israel, pautadas pelo fornecimento de armas e tecnologia de vigilância — vocação que remonta às origens desse país criado à força no Oriente Médio: um Estado colonial, etnonacionalista, para o qual (como em um sinistro jogo de espelhos) jamais foi um problema aliar-se com os regimes mais sangrentos do mundo para arrebanhar legitimação internacional e fomentar a indústria de segurança doméstica com o exclusivíssimo selo “testado em combate”, propiciado pelas sucessivas operações militares na Palestina e pelo cerco permanente ao seu povo.

Quero estar acordado quando morrer: diário do genocídio em Gaza, de Atef Abu Saif, chegou à Elefante graças ao convite da Comma Press, que organizou um consórcio com editoras de dez países para o lançamento simultâneo do livro. Obviamente, dissemos sim, e passamos a tradução para Gisele Eberspächer. Saif nasceu no campo de refugiados de Jabalia, em Gaza, alvo de bombardeios israelenses desde que ele era apenas um bebê — e também durante a atual ofensiva —, mas hoje mora em Ramallah, na Cisjordânia, onde trabalha como ministro da Cultura da Autoridade Nacional Palestina. O autor, porém, estava em Gaza cumprindo uma agenda de trabalho quando os ataques começaram. E lá ficou durante três meses, com o filho e familiares (e outros 2,3 milhões de pessoas), encurralado sob uma chuva de mísseis e incursões terrestres do exército israelense. Diante dos horrores que padeceu e viu compatriotas padecerem, escreveu ininterruptamente, até que conseguiu ser evacuado. A leitura de Quero estar acordado quando morrer é tão difícil quanto necessária: o relato mais pungente e desesperador dos horrores que o mundo está permitindo que aconteça em Gaza — e boa parte dele, apoiando.

A destruição da Palestina é a destruição do planeta, de Andreas Malm, é a versão escrita de uma conferência que o ecologista sueco proferiu na Universidade Americana de Beirute, Líbano, em abril, quando o genocídio israelense em Gaza completava seis meses. Neste ensaio, traduzido por Natalia Engler, Malm discute o encontro, na Palestina, dos dois maiores problemas da humanidade, hoje: a guerra e a crise climática — uma história que não começou em 7 de outubro de 2023, em 1967 ou 1948, mas em 1840, quando o maior navio a vapor (ou seja, a carvão) da marinha britânica enfrentou sua primeira campanha militar “de verdade” justamente bombardeando e destruindo a cidade de Akka, nas costas palestinas, com enormes baixas civis. Também em 1840, na esteira do conflito, os britânicos passaram a incentivar a colonização da Palestina por judeus, popularizando a falaciosa ideia de “uma terra sem povo para um povo sem terra” e dando início à “febre sionista”, na época impulsionada por cristãos. Um livro instigante, fruto de uma longa e farta pesquisa documental, e essencial para expandir a compreensão tanto da Questão Palestina como do que Malm chama de “imperialismo fóssil”.

Com esses quatro livros, damos início à nossa minúscula “intifada editorial”, atendendo aos apelos que os palestinos costumam fazer a todos que os visitam nos territórios ocupados: o mundo esqueceu da gente, falem sobre o que vocês viram aqui, falem sobre nós, não se esqueçam de nós. Apesar disso, muita gente pode questionar: “De que adianta publicar livros durante um genocídio?”, e muita gente pode responder: “Não adianta nada”. Tenderíamos a concordar, tanto com a pergunta quanto com a resposta, se outra pergunta, tão premente quanto essa, não tivesse primazia por aqui: “Como não publicar livros durante um genocídio?”. A Palestina é o mundo, e não iremos simplesmente olhar para o outro lado e tocar a vida. Livros é o que sabemos fazer e o que continuaremos fazendo, porque livros sempre serão necessários, sempre, na alegria e na tragédia — e sobretudo nesta.

 

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