Por Tadeu Breda
Texto originalmente publicado no El País Brasil
Quando ouviu dezenas de soviéticos afetados pelo acidente nuclear de Tchernóbil, vinte anos após a explosão do reator, a escritora bielorrussa Svetlana Aleksiévitch questionou-se: “Sou testemunha do quê, do passado ou do futuro?” Ao olhar para as vítimas do Estado brasileiro, eu me faço cada vez mais a mesma pergunta. Suas histórias ficaram para trás? Ou continuarão ecoando?
Não saberia explicar com argumentos precisos o que me fez e me faz escrever sobre Sérgio Silva, fotógrafo que perdeu o olho esquerdo depois de receber o impacto de uma bala de borracha disparada pela Polícia Militar de São Paulo em 13 de junho de 2013. Faz três anos – e eu continuo tentando descobrir. Ele também.
Escrevi Memória Ocular, lançado pela Editora Elefante nesta semana, para narrar a história de Sérgio Silva em três momentos: 2013, poucos meses após o ferimento; 2015, quando a mutilação completou dois anos; e 2016, às vésperas do terceiro aniversário. Ao ouvir seu testemunho – e de familiares, manifestantes, advogados, autoridades – tentei compreender o que significa ser uma vítima do Estado. Não consegui: não completamente.
É claro que Sérgio Silva não é o único cidadão que sofre graças à ação do aparato estatal brasileiro. Há uma infinidade de outras pessoas que padeceram – e continuam padecendo – violências ainda mais monstruosas que a extirpação de um olho. Qualquer defensor público poderia passar horas recitando casos de agressão, prisão, condenação e morte rotineiros nas periferias das grandes cidades.
Qualquer um de nós relaciona o número cento e onze com as mortes do presídio de Carandiru, em 1992. Qualquer um sabe dos quase seiscentos assassinatos perpetrados pela polícia em resposta aos ataques da facção criminosa, em 2006. Sem contar os incontáveis – porque escondidos – casos de tortura e desaparecimento durante a ditadura. Há ainda o martírio dos índios e camponeses, há as marcas da escravidão.
Mas não é possível classificá-los por alguma espécie de escala. Qual caso é mais grave? A extensão da violência se instala profundamente em quem sentiu o golpe do Estado – não importa com que arma tenha sido desferido ou qual sua extensão. Dores indizíveis proliferam ao som das viaturas, dos disparos das armas de chumbo ou de borracha, dos despachos assinados por juízes e desembargadores, dos pronunciamentos de governantes, secretários e ministros. Mas dificilmente chegam às manchetes.
Costumamos ater-nos às estatísticas, privilegiando as taxas mais impactantes e ignorando que a condição da vítima – seu sofrimento – transcende os números. Sérgio Silva é a vítima mais visível da repressão às jornadas de junho de 2013 em São Paulo, mas, tivesse a polícia matado alguém, poderia não ter sido. Ainda assim, teria perdido o olho. Em outras capitais, histórias parecidas se repetiram durante aquela onda de rebeldia popular. No Rio de Janeiro, Rafael Braga foi preso e condenado por porte de produtos de limpeza. Em Belo Horizonte, dois jovens morreram após despencarem de um viaduto. Em Belém, uma mulher também morreu, asfixiada pelo gás lacrimogêneo lançado pelas forças de segurança.
Eu escolhi escrever sobre Sérgio, talvez, pela proximidade. Não nos conhecíamos, mas como eu, ele é jornalista. Como eu, estava trabalhando na cobertura da manifestação que tomou o centro de São Paulo no quarto dia de protestos convocados pelo Movimento Passe Livre para exigir a revogação do aumento da tarifa de transporte público. Poderia ter sido eu, poderia ter sido qualquer um de nós que lá estávamos – manifestantes, transeuntes, repórteres – a pessoa a levar um tiro de bala de borracha no olho. A aleatoriedade da violência estatal é tão chocante quanto sua seletividade.
Sérgio não portava armas nem estava colocando a vida de ninguém em risco. Tinha uma câmera nas mãos. Eu tinha um caderno. Havia quem tivesse flores. As pessoas queriam apenas marchar até a Avenida Paulista. Mas o Estado preferiu atender o pedido dos grandes jornais da cidade, dos canais de rádio e televisão, que exigiam um basta: chega de fechar nosso “cartão postal” com reivindicações absurdas. Então, a polícia interditou a Paulista para evitar que os manifestantes interditassem a Paulista. Lançou pelo menos 938 bombas de gás lacrimogêneo e disparou 506 balas de borracha. Uma delas, bem…
O dia 13 de junho de 2013 foi repleto de pequenos grandes absurdos, que, caso a democracia pudesse ser medida pelo tamanho do desrespeito às suas regras, não se comparariam aos escândalos registrados diariamente nas periferias de São Paulo, mas que, talvez pela primeira vez em anos, trouxeram para o centro da cidade uma pequena mostra do funcionamento da corporação.
Então, houve clamor, houve uma profunda crítica aos desmandos policiais. Pouco tempo depois, as “jornadas de junho” seriam alvo de uma intensa disputa simbólica. Por enquanto, as forças mais conservadoras estão vencendo a peleja por seu legado. As grandes manifestações têm sido usadas para impor retrocessos, como se os protestos ocorridos em 2013 já tivessem começado com as cores da bandeira nacional…
Quem estava lá sabe que não foi assim. E Sérgio Silva traz no rosto o que todos nós trazemos na lembrança. Somos milhares de memórias oculares. Sérgio é uma única evidência ambulante. O olho que não tem grita ruidosa e claramente. Basta querer ouvir.
Depois de junho, ao contrário do que queríamos, o Estado continuou reprimindo. Fomos tolos ao acreditar que, após o espetáculo de violência policial daquele dia 13, com cerca de cento e cinquenta feridos e mais de duzentos presos, a Polícia Militar finalmente revisaria seus métodos de ação em manifestações. Fomos ingênuos ao pensar que uma das heranças da ditadura incrustada na corporação seria finalmente eliminada.
Os protestos contra a tarifa terminaram vitoriosos: os governantes obrigaram-se a reduzir o valor bilhete de R$ 3,20 para o preço anterior: R$ 3. Hoje, porém, paga-se R$ 3,80 para tomar ônibus, trem ou metrô em São Paulo. A polícia aprendeu a respeitar a liberdade de expressão e manifestação da cidadania paulistana, mas resolveu aplicar esse aprendizado apenas parcialmente. Alguns movimentos podem ocupar a avenida que bem entenderem, no momento que quiserem, sem pedir autorização ao poder público. Outros, não. Brasileiros indignados, em verde-amarelo, podem montar barracas na rua para pedir impeachment. Estudantes secundaristas não podem colocar carteiras em cruzamentos para protestar contra o fechamento de noventa escolas.
Desde aquele junho, multiplicam-se os exemplos da politização explícita da Polícia Militar. Multiplicam-se também as vítimas. Em janeiro, durante nova mobilização do Passe Livre, um professor recebeu um tiro de bala de borracha na testa: por apenas dois centímetros, salvou-se da escuridão que se abateu sobre o olho esquerdo de Sérgio Silva. O fotógrafo, que, num esforço de superação, estava lá para cobrir o novo protesto, não hesita ao dizer: “A repressão de janeiro foi mais violenta que a que me cegou.”
Ao mergulhar em sua história, Memória Ocular também conta a história das novas vítimas do Estado. O lançamento do livro ocorreu na esquina da Rua da Consolação com a Rua Maria Antonia, encruzilhada em que o fotógrafo foi atingido. Três anos depois, rodeado de solidariedade, Sérgio recebeu duas visitas repletas de simbologia: a dos secundaristas, entre eles sua filha, vieram em marcha para fazer parte da celebração. E a de Douglas Santana, menino de doze anos que perdeu o olho em abril passado, também vítima de bala de borracha durante repressão da PM a um baile funk na rua. Douglas chegou acompanhado pela mãe, Vanessa, que não quer ver a história do filho entrando para o quilométrico o rol das injustiças esquecidas.
Passado e presente se juntaram em lágrimas e promessas de superação. O futuro, porém, não guarda tantas esperanças. Infelizmente, essa história ainda não tem ponto final. Oxalá eu pudesse responder à pergunta de Svetlana Aleksiévitch e afirmar que sou uma testemunha do passado – e só do passado. Mas, como, se o passado teima em se repetir, não pela memória, e sim pela violência? Como esquecer o que acontece todos os dias?
Tadeu Breda, jornalista, é autor de Memória Ocular (Editora Elefante, 2016) e O Equador é verde: Rafael Correa e os paradigmas do desenvolvimento (Editora Elefante, 2011)