Por Breno Castro Alves
Newsletter da Elefante

 

 

Um retrato é a representação de um ponto de vista. É um objeto que oferece perspectiva aos que lhe atravessam. Assim, se você fizer direito, consegue ver a própria vida por olhos de outros. Eis a intenção de Retratos da vida em quarentena, livro que lançaremos com a Dublinense e que já está em pré-venda aqui.

São dezenove contos à queima-roupa produzidos por, bem, vocês, nosso querido público. Abrimos chamada anteontem, entre abril e maio, e vocês nos enviaram 1.192 textos. (Agradecemos demais por isso.)

Vamos tirar um momento para saborear estes mil cento e noventa e dois autores e autoras nacionais que compartilharam conosco seus retratos em prosa. Uma rodada de palmas, todos tentando construir sentido dentro da maior crise sanitária de nossa geração.

Esperávamos algo como duzentos. Trezentos com otimismo, quinhentos estourando de sucesso. Mas não, tivemos o grato problema de lidar com a enorme participação do público. Quem nos salvou foi Bárbara Krauss, a jornalista e pesquisadora literária que mantém o B de Barbárie, dá um conferes nos canais.

Leitora voraz e metódica, encarou os textos em quarenta dias. Para dizer como quem escreve: Bárbara mergulhou no inconsciente coletivo pandêmico a quase mil e duzentos contos de profundidade. De lá, voltou com o corte que deu forma ao livro.

Seu processo: interromper a leitura a cada cinco contos de profundidade. Para descomprimir. Então se levanta para comer, para varrer a casa. E assim atravessou enormes quantidades de humanidade em texto. As poesias e os contos grandes demais caíram imediatamente, pois fora do escopo. Depois, peneirou o que era literatura fina e dentre estes encontrou a diversidade que essa obra exige.

Porque a busca de Retratos da vida em quarentena é a pluralidade: temos o entregador que prende a respiração enquanto deixa orquídeas na casa da madame e também a mãe solo que se espreme com as crias atrás do último raio de sol em seu apartamento — e ali, no chão, a mulher questiona sua vida, sem saber se aquela mancha na parede é comida, canetinha ou meleca de nariz.

Um jovem, preso à janela, compartilha seu feio coração partido. Todo dia pira na ex, a vizinha ao sol e psicotiza e a mata, mas não do jeito que você espera. O mesmo livro também tem “lugares sagrados, porque santo não quer saber de pandemia ou de presidente fascista. Santo quer saber de cumprir promessa”, como diz Bárbara, de Barbárie, na orelha da obra. Aliás, seguiremos com ela.

Para raio de maluco

 

Bárbara relata que escrever essa orelha foi um imperativo. Quando recebeu a tarefa, numa manhã, precisou deixar outros trampos de lado para botar logo aquilo para fora, em um processo que continua e só deve diminuir quando ela tiver o impresso em mãos. Porque intensidade.

Lembre-se da densidade que o inconsciente coletivo alcançou nas primeiras semanas de quarentena. Antes deste “novo normal”, este das centenas ou milhares de mortes diárias normalizadas e foda-se, antes disso por algum tempo existiu o anormal, quando ninguém sabia o que seria da vida. Estes textos são filhos do período anormal, então meça por aí o peso das histórias.

Entre as não publicadas, Bárbara encontrou espelhos. Se deu conta que há mais pessoas se olhando pelas janelas, ou encontrando suas mães, ou sentindo alívio por conhecer aquela fulana mais germofóbica do que você. Veio muito terror, também: um cara chegou ao hospital, doente, e encontrou Bolsonaro numa maca, abriu Messias com bisturi. “A gente pode mutilar o presidente?”, perguntou Bárbara. Pode, mas dessa vez não.

Então um projeto desses é maior do que só o livro publicado. Além do objeto obra de arte livro, que está maravilhoso, temos o processo humano ao redor. Porque se 1.192 cabeças submeteram textos, outras tantas escreveram algo que restou na gaveta, ou no draft, e outros tantos pelo menos pensaram a respeito, humanos que por alguns segundos se colocaram no papel do autor, “e eu, se fosse contar ponto de vista, contaria qual?”.

O livro foi organizado a oito mãos: Gustavo Faraon e Rodrigo Rosp, da Dublinense, junto a Tadeu Breda, da Elefante, e a já famosa Bárbara. Gustavo pondera: “A coedição sinaliza um jeito de pensar, uma forma própria de fazer livro e atuar que não se enxerga como concorrente. A possibilidade de fazer coisas juntos é muito interessante”, avalia o editor, deixando claro a coletividade da criação.

Sobre o livro, Gustavo deixa mais uma aspas: “Temos um instantâneo desse momento anormal, dessa intensidade, de uma forma que nem sempre a literatura é tão ágil para produzir”.

O risco, para Bárbara, é que Retratos da vida em quarentena seja lido como ficção. “Foi isso que a gente fez de errado. Nos aproximamos da distopia quando a sentimos como ficção, distante, quando na verdade está sempre cada vez mais próxima da realidade”.

 

 

Retratos da vida em quarentena,
Elefante + Dublinense, 160 p.

 

 

 

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