Por Ricardo Abramovay & Rafael A. F. Zanatta
Prefácio à edição brasileira
O livro de Stefano Quintarelli é uma vacina contra o desencantamento que tomou conta da crescente dependência dos dispositivos digitais em que a vida social contemporânea está imersa. Os vícios comportamentais que cada um de nós reconhece e trata como contrapartidas inevitáveis dos serviços prestados pelos smartphones, a vigilância a que estamos submetidos não só pelo companheiro inseparável em que se converteu o celular, mas pelas câmeras espalhadas por onde quer que circulemos, a invasão da privacidade e a evidência de que as redes sociais pouco contribuem para tornar a vida política mais inteligente e construtiva, tudo isso desperta o sentimento distópico de que melhor seria se o gênio voltasse para dentro da lâmpada.
Quintarelli está em posição privilegiada para reconhecer a gravidade de todos estes problemas, não só como empreendedor digital pioneiro na Itália, mas como membro de algumas das mais importantes iniciativas de regulação da internet na Itália e na Europa. Ao mesmo tempo, essa experiência, que se consolidou num mandato de deputado em seu país por dois anos, permitiu que ele ocupasse um lugar de destaque num conjunto de propostas voltadas em última análise para que ciência e técnica estejam a serviço da melhoria da vida social — e não de sua degradação.
Nesse sentido, o autor de Instruções para um futuro imaterial não é um acadêmico no sentido clássico, e seu livro não possui o estilo tradicional de citações e reconstrução teórica (são raras as citações a outros intelectuais, como Luciano Floridi, que surge vez ou outra em seu texto). Como empreendedor, ativista e parlamentar, sua linguagem é direta e sua preocupação é pedagógica. Quintarelli quer falar aos “imigrantes digitais” que não compreendem a transição em que estamos inseridos, especialmente aqueles que não compreendem a lógica exponencial dos sistemas computacionais e as possibilidades técnicas inéditas geradas pelo atual desenvolvimento da física e da ciência da computação. A popularização dos assistentes acoplados com sistemas de inteligência artificial, oferecidos hoje por Amazon e Google, são apenas a materialização mais cotidiana desta transformação.
O ponto de partida do livro de Quintarelli está na rejeição da internet como algo virtual, de certa forma, etéreo, falsa impressão corroborada por imagens como a da computação “em nuvem.” Ele rejeita a ideia de que existe um ciberespaço, em oposição ao espaço real, como se um fosse imaginário e somente o outro, palpável. Ao contrário, a tese básica deste livro é que a revolução digital abre caminho a uma dimensão cuja realidade não poderia ser maior: a dimensão imaterial, fundamental para os indivíduos, para a maneira como se relacionam uns com os outros, e determinante do uso que fazem dos materiais, da energia e dos recursos bióticos de que dependem.
A realidade desta dimensão imaterial vira do avesso a maior parte daquilo que os manuais de economia até hoje ensinam aos estudantes. Se a economia é a ciência que estuda a alocação de recursos escassos entre fins alternativos (daí resultando os preços como sinalizadores da relativa raridade daquilo que os consumidores almejam), é claro que a própria definição de um bem econômico é alterada quando este é quase infinitamente abundante e sua circulação não responde aos limites que nos foram ensinados quando nosso consumo se concentrava no que era palpável e raro. Este livro é uma excelente iniciação às bases microeconômicas da dimensão imaterial da vida social. Parte crescente da vida contemporânea deixa de responder à consagrada definição segundo a qual a economia é a ciência que estuda recursos escassos entre fins alternativos. Na dimensão imaterial, mesmo que custe muito produzir algo, reproduzir e distribuir torna-se virtualmente gratuito.
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Esta propriedade, analisada de forma didática no livro, abre caminho a oportunidades de cooperação social inéditas, que se exprimem na economia do compartilhamento, nas moedas virtuais e na extraordinária abertura de oportunidades a que a revolução digital dá lugar. Quintarelli não acredita no horizonte de destruição massiva de empregos que tão fortemente marca a literatura sobre os padrões contemporâneos de evolução tecnológica. Da mesma forma, ele não crê na perspectiva de total autonomia dos carros sem motorista.
Claro que as ameaças à privacidade e à própria concorrência são sistematicamente denunciadas neste livro. Além disso, a internet das coisas vai multiplicar os riscos de que nossa conexão permanente e os dados que por meio dela produzimos ameace nossa própria dignidade. O livro ressalta também que a internet criou um abismo entre aqueles cujos trabalhos apoiam-se sobre ela, são criativos e geram rendas extraordinárias a seus praticantes, e a situação em que se encontra a massa dos que apenas fazem uso corriqueiro dos dispositivos digitais. O livro mostra que as instituições das sociedades democráticas estão bem pouco preparadas para enfrentar estes desafios. O ritmo das mudanças tecnológicas é exponencial e o tempo da política nem de longe é capaz de acompanhá-lo.
Mas em nenhum momento estes riscos são apresentados como fatalidades inerentes à própria tecnologia. A entrada em vigor da Lei Geral de Proteção de Dados e da Privacidade em maio de 2018 na Europa — e a aprovação da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais no Brasil, que se inspira fortemente na legislação europeia — são passos fundamentais para regulamentar a dimensão imaterial da vida social. Quintarelli participou ativamente da elaboração desta lei e este livro pode ser considerado uma reflexão sobre as bases que permitirão que a concorrência, a dignidade das pessoas e o respeito aos valores mais caros da democracia possam se desenvolver na era digital.
Para Quintarelli, não há motivo para pânico ou uma luta “contra as tecnologias”. Há urgência de compreensão do tipo de economia gerada pelas novas tecnologias, seu impacto social e as possibilidades de regulação. De certo modo, o livro retoma uma velha lição de Spinoza: non ridere, non lugere, neque detestare, sed intellegere. Nem rir, nem chorar, nem detestar, mas sim compreender.