A mão invisível do trabalho doméstico não remunerado
Por Tereza Campello
Orelha de Quem vai fazer essa comida?
Este livro é sobre a mão invisível. Não a mão invisível do mercado, definida por Adam Smith, e sim a mão invisível do trabalho doméstico, que tem um impacto tremendo na economia, mas da qual ainda pouco se fala. É a mão das mulheres que trabalham, de forma gratuita ou mal remunerada, preparando refeições que possibilitam diariamente a reprodução da vida, muitas vezes sem saber que essa atividade cotidiana é influenciada pelo poder do agronegócio e da indústria alimentícia.
O livro alerta para o fato de que o ato de (não) cozinhar guarda estreita relação com a elevação das taxas de desmatamento em praticamente todos os biomas do país, resultando em aumento nas emissões de gases de efeito estufa e perda da biodiversidade e do sustento de comunidades tradicionais. Tudo para dar lugar a hectares e mais hectares de monoculturas como soja, milho e pastagens e à produção de safras crescentes, destinadas sobretudo à exportação.
Por se relacionarem a commodities alimentares (e não a alimentos) é que tais recordes de produtividade não conseguem enfrentar o fantasma da fome e da má nutrição no Brasil e no mundo—problema que não se resolve apenas com a colheita de grãos. Ao invés de comida saudável, o sistema alimentar hegemônico oferece produtos ultraprocessados em abundância — coloridos, palatáveis e baratos, e que colaboram grandemente para as doenças crônicas não transmissíveis —, enquanto a boa alimentação se torna um privilégio.
Já sabemos que tipo de comida faz bem e que tipo de comida faz mal. Os porcaritos que vêm prontos para comer em pacotinhos auxiliam no diabetes, na hipertensão e no câncer. Os alimentos frescos preparados na panela são os mais nutritivos — mas precisamos cozinhá-los, e isso demanda tempo. A grande questão, oportunamente levantada aqui por Bela Gil, é quem vai fazer essa comida.
Com essa pergunta, no cenário complexo da busca por um novo sistema alimentar que proporcione alimentos saudáveis, justos e sustentáveis para todos, a autora acrescenta um ingrediente essencial ao debate: a economia do cuidado. Com seu olhar múltiplo — chef de cozinha, apresentadora, ativista agroecológica, mulher e mãe —, Bela Gil procura traduzir e popularizar saberes científicos que vão da nutrição à política econômica, passando por previsões sobre o futuro da nutrição.
E o faz conectando a alimentação com questões de gênero, raça e classe. Seu olhar complexo mostra a urgência de se enfrentar a invisibilidade do trabalho doméstico — que recai sobre as mulheres, principalmente as pobres, negras e periféricas, e que faz com que todos os demais trabalhos sejam possíveis. Bela Gil reforça que a questão é sistêmica: é preciso que Estado, iniciativa privada e sociedade civil ajam conjuntamente para que quem exerce atividades de cuidado, garantindo a reprodução da vida, receba uma remuneração justa.
Apesar de seu necessário idealismo — porque sem utopia jamais mudaremos nada —, a autora consegue trazer a discussão para um chão bem concreto. Inserida na teia interseccional de desigualdades, no passado/presente patriarcal e colonial de nossa sociedade, em questões culturais e cosmológicas e nas fronteiras do desenvolvimento sustentável e do avanço tecnológico, Bela Gil faz uma mistura apimentada e, sem medo, mete a colher em tabus. Corre o risco de comprar briga com muita gente. Mas por certas coisas vale a pena brigar.
Tereza Campello é economista, diretora do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), ex-ministra de Desenvolvimento Social e Combate à Fome (2011-2016) e co-organizadora de Da fome à fome: diálogos com Josué de Castro (Elefante, 2022).