América Central: superar a caricatura e conhecer para lutar junto
A Elefante está lançando América Central: desafios e resistências no século XXI, em pré-venda com desconto no nosso site. São mais de 40 textos e autores, em organização de Fabiana Rita Dessotti, Fabio Luis Barbosa dos Santos, Patrícia Sposito Mechi e Vitor Wagner Neto de Oliveira. A edição é dividida em quatro partes — História e Memória, Economia Política, Resistências e Política Contemporânea —, e a introdução está reproduzida abaixo. Trata-se de mais uma publicação da coleção Realidade Latino-Americana, que já lançou títulos dedicados a Cuba, México, Paraguai e Chile.
Introdução
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A historiadora Emília Viotti da Costa dizia que a América Central é uma caricatura da América Latina. Ou seja: os traços que caracterizam o subcontinente se observam no istmo de maneira exagerada. Esse “exagero” não é uma condição fortuita, mas produto de uma história marcada pela colonização europeia entre os séculos XVI e XIX, pelos processos de independência, pela projeção imperial dos Estados Unidos e pelas diversas formas de resistência de comunidades originárias, camponesas e urbanas.
A partir do século XIX, a difusão de relações capitalistas na América Central se confundiu com a própria expansão estadunidense. Foi nessa fricção que se constituíram a economia e a sociedade destes países: a burguesia e o Estado nacional com suas instituições repressivas estão geneticamente formatados pelas relações com a potência norte-americana.
A dominação estrangeira direta se refletiu em uma polarização social extrema. Historicamente, há poucas mediações entreo capital estrangeiro e a exploração do trabalho, assim como há pouca gente entre os muito ricos e os muito pobres. Essa ausência de mediações configurou um padrão de dominação transparente, porém brutal, e está na raiz da caricatura.
Nestas economias pouco diversificadas, as contradições são mais aparentes. E mais explosivas. Não é casual que a América Central e o Caribe tenham sido palco das revoluções que triunfaram na esteira da luta guerrilheira, em Cuba (1959) e na Nicarágua (1979). Também não é casual que o istmo tenha testemunhado o terrorismo de Estado em sua forma mais cruenta, ganhando os contornos de um genocídio na Guatemala e em El Salvador nos anos 1980.
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Com o fim da Guerra Fria, a tensão entre revolução e contrarrevolução se dissipou. Se a América Central continua a revelar a América Latina em seus extremos, apontando tendências, o que a região nos revela sobre nós e o mundo na atualidade?
Este livro parte da premissa de que a América Central é um pedaço da história e do presente latino-americano que tem muito anos ensinar. É uma região que precisa ser conhecida por si mesma, mas também porque condensa dilemas que atravessam o Brasil e o mundo. A América Central oferece um prisma dramático, mas necessário, para pensar desafios e dilemas da contemporaneidade.
Por exemplo: a crise do trabalho e a intensificação do extrativismo são fenômenos globais, bem como as migrações. Em alguns países do istmo, esses fenômenos convergem em sociedades atravessadas pela violência para expulsar pessoas em escala massiva, mas os Estados Unidos lhes fecham as portas.
Frente ao extrativismo que expulsa populações, organizações defendem o derecho a quedarse (direito de ficar). Enquanto isso, conterrâneos reivindicam o direito de emigrar. Sem poderem ficar nem partir, qual o lugar dos centro-americanos no século XXI?
Trabalho, extrativismo, crime organizado e imigração são temas globais, que convergem de modo dramático na região. A América Central revela de modo extremo os dilemas de um mundo em que não cabem as pessoas.
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Este mundo tem produzido diferentes formas políticas de gestão das tensões que fomenta. Na América Central, o despotismo millenial de Bukele em El Salvador e a ditadura “anti-imperialista” de Ortega e Murillo na Nicarágua demarcam polos opostos da forma autoritária. O governo Giammattei na Guatemala e a eleição de Rodrigo Chaves na Costa Rica apontam na mesma direção.
Mas o progressismo poderia ser entendido como outra formade gestão dessas tensões? Em 2009, Manuel Zelaya foi derrubado por um golpe judiciário, midiático e parlamentar com apoio do Exército em Honduras. Após treze anos em que o Estado esteve capturado por uma política criminosa, a esposa de Zelaya, Xiomara Castro, elegeu-se presidenta. Será que a trajetória de Honduras não dá o que pensar sobre o Brasil? E se ambas as dinâmicas são comparáveis, o que isso nos diz sobre o progressismo e seus opostos na América Latina?
Mais ainda: a eleição de Xiomara foi endossada pelos Estados Unidos, assim como a posse de Bernardo Arévalo na Guatemala em 2024. Enquanto progressistas têm o apoio da potência do Norte, o ex-narcopresidente Juan Orlando Hernández foi preso e condenado nos Estados Unidos. Em um contexto em que a preocupação imperial não é mais a revolução, mas drogas e migração, como pensar o imperialismo no século XXI?
Mesmo os países que parecem excepcionais no istmo revelam paradoxos globais. Mundialmente conhecida por sua “marca verde”, a Costa Rica está atravessada por contradições entre a conservação ambiental e a expansão do extrativismo. O Panamá encarna outro paradoxo: uma desglobalização tornaria obsoleto o tráfico de mercadorias pelo canal, que estrutura o país. Por outro lado, o padrão de consumo associado à globalização provoca mudanças climáticas que afetam o volume de águas do canal, comprometendo esse tráfico secular.
Tanto o conservacionismo como o extrativismo expulsam populações camponesas e indígenas na Costa Rica, enquanto o maravilhoso arquipélago Guna corre o risco de submergir no Panamá. Em termos diferentes dos demais países do istmo, a pergunta se recoloca: qual o lugar das pessoas neste mundo que as repele e as afoga?
A América Central condensa dilemas da contemporaneidade, mas também engendra múltiplas lutas por um mundo em que caibam muitos mundos. Se a revolução clássica saiu da agenda, outros mundos habitam em uma miríade de resistências territoriais, frequentemente protagonizadas por populações originárias que cultivam formas de vida não capitalistas, formadas por relações holísticas entre os seres humanos e a natureza. Na América Central, há um tesouro de experiências necessárias para o futuro do mundo — mas também pairam a repressão e a morte provocadas por essa luta pela vida.
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Essas e outras questões constituem o pano de fundo da investigação coletiva que originou este livro. Entre 2020 e 2023, o programa de extensão Realidades Latino-Americanas vinculado à Unifesp e ao Prolam-USP abordou a América Central em um processo que envolveu dois projetos de pesquisa, culminando em viagens decampo realizadas em 2022 (Guatemala, El Salvador e Honduras) e 2023 (Panamá e Costa Rica).
Em ambas as ocasiões, o grupo tentou visitar a Nicarágua. Depois de não obter autorização para cruzar o país em 2022, a coordenação do Prolam-USP abordou formalmente a embaixada da Nicarágua em Brasília, tendo em vista construir uma agenda de intercâmbio acadêmico no ano seguinte. Como disse um funcionário da embaixada depois de vários contatos telefônicos, o silêncio de Manágua deve ser entendido como uma resposta negativa — oque constituiu em si um dado de pesquisa. Para suprir parcialmente essa lacuna, realizamos em ambas as viagens uma agenda de conversas e visitas com nicaraguenses refugiados na Costa Rica.
A estrutura do livro corresponde às questões que o grupo fez a si mesmo. Embora os textos sejam assinados, uma versão preliminar de cada um deles foi discutida no âmbito do grupo, de modo a incorporar reflexões coletivas. O livro conta ainda com colaborações de algumas entre tantas pessoas marcantes que nos receberam e foram fundamentais para a compreensão de temas específicos.
Evidentemente, o conjunto de textos aqui apresentado não faz jus à complexidade e à riqueza da América Central. Mas acreditamos que os leitores brasileiros encontrarão neste livro uma introdução acessível, bem-informada e crítica a esse pedaço do nosso continente que é também um pedaço da nossa história.
Abordar a região como parte do nosso devir é também um posicionamento político. Desde o final do século XX, a diplomacia brasileira focalizou a América do Sul em detrimento da América Latina. Prevalece uma compreensão de que, com a adesão do México ao acordo de livre-comércio da América do Norte (Nafta) e à teia de tratados e iniciativas que costura o istmo à América do Norte, a integração regional, quando pautada, tem como horizonte a América do Sul.
Nossa perspectiva é diferente: entendemos que a atualidade da noção de América Latina deriva de um passado comum que se reatualiza nos dilemas do presente. Como dizia o cubano José Martí, temos de nos conhecer como quem vai lutar juntos. Este livro pretende fortalecer o conhecimento que fecunda a luta que nos irmana — na esperança de que um dia, por trás de qualquer caricatura, revele-se um sorriso.
Foto: Jayme Perin Garcia











