Como Amazon, Google e Microsoft participam do genocídio em Gaza

Por Yuval Abraham
Publicado em +972 Magazine
Tradução: Beatriz Macruz

 

Quando deparei com essa reportagem, mal pude acreditar como “Amazon” e “Palestina”, temas presentes no catálogo da Elefante e aparentemente tão díspares, poderiam se associar — e da pior maneira possível. Mas aqui está: além de todas as mazelas provocadas pelo modus operandi da Amazon (as quais você pode entender melhor em nossos livros Contra Amazon, de Jorge Carrión, e Como resistir à Amazon e por quê, de Danny Caine, autor convidado da Flip 2024), há mais uma, a mais grave de todas: junto com outras Big Tech, como Google e Microsoft, a megacorporação de Jeff Bezos está oferecendo seus servidores, suas ferramentas de IA e sua imensa capacidade de armazenamento em nuvem para facilitar o trabalho genocida das Forças de Defesa de Israel em Gaza. Em Laboratório Palestina, Antony Loewenstein dedica um capítulo a demonstrar que as Big Tech não gostam de palestinos. O que a reportagem abaixo revela, contudo, vai muito além disso. Agora, jamais poderei ler novamente os relatos de Atef Abu Saif (também convidado para a Flip 2024) em Quero estar acordado quando morrer sem pensar em como as empresas de tecnologia colaboram para tamanha tragédia humana — e em como todos nós temos uma parcela de culpa nisso tudo ao usar os seus “inofensivos” serviços. A leitura de Nós, filhos de Eichmann, de Günther Anders, e suas reflexões sobre “como nascem os monstros” parecem cada vez mais urgentes e essenciais. — Tadeu Breda, editor

 

Em 10 de julho, a comandante da unidade do Centro de Computação e Sistemas de Informação das Forças de Defesa de Israel (IDF) realizou uma conferência intitulada “IT for IDF” [TI para a IDF] em Rishon Lezion, perto de Tel Aviv. Em seu discurso para um público de cerca de 100 militares e membros do setor industrial, do qual a revista +972 e a Local Call obtiveram uma gravação, a coronel Racheli Dembinsky confirmou publicamente, pela primeira vez, que o exército israelense está usando serviços de armazenamento em nuvem e inteligência artificial fornecidos por gigantes da tecnologia em seu ataque contínuo à Faixa de Gaza. Nos slides da palestra de Dembinsky, os logotipos da Amazon Web Services (AWS), Google Cloud e Microsoft Azure apareceram duas vezes.

O armazenamento em nuvem é um meio de preservar grandes quantidades de dados digitais, geralmente em servidores gerenciados por um provedor terceirizado, para que assim possam ser acessados de qualquer lugar. Dembinsky explicou inicialmente que sua unidade do exército, conhecida pelo acrônimo hebraico Mamram, já usava uma “nuvem operacional” hospedada em servidores militares internos, em vez de nuvens públicas administradas por empresas civis. Ela descreveu essa nuvem interna como uma “plataforma de armas”, o que inclui aplicativos para definição de alvos para bombardeios, um portal para visualização de imagens ao vivo de UAV [drones] sobre os céus de Gaza, bem como sistemas de disparos, comando e controle.

Mas, com o início da invasão terrestre do exército israelense em Gaza no final de outubro de 2023, continuou ela, os sistemas militares internos ficaram rapidamente sobrecarregados, devido ao enorme número de soldados e militares que foram adicionados à plataforma como usuários, causando problemas técnicos que ameaçaram desacelerar as funções militares de Israel.

A primeira tentativa de resolver o problema, explicou Dembinsky, envolveu a ativação de todos os servidores sobressalentes disponíveis nos depósitos do exército e a criação de outro data center, mas isso não foi suficiente. Eles decidiram que precisavam “ir para fora, para o mundo civil”. De acordo com ela, os serviços em nuvem oferecidos pelas principais empresas de tecnologia permitiram que o exército israelense comprasse servidores de armazenamento e processamento ilimitados com o clique de um botão, sem a obrigação de armazenar fisicamente os servidores nos centros de computação do exército.

Mas a vantagem “mais importante” que as empresas de nuvem ofereceram, disse Dembinsky, foram seus recursos avançados de inteligência artificial. “A riqueza louca de serviços, big data e IA — já chegamos a um ponto em que nossos sistemas realmente precisam disso”, revelou ela com um sorriso. Trabalhar com essas empresas, acrescentou, garantiu aos militares “uma eficácia operacional muito significativa” na Faixa de Gaza.

Dembinsky não especificou quais serviços foram adquiridos de empresas de nuvem ou como eles ajudaram os militares. Em um comentário para a +972 e o Local Call, o exército israelense enfatizou que as informações confidenciais e os sistemas de ataque armazenados na nuvem interna não foram transferidos para as nuvens públicas fornecidas pelas empresas de tecnologia.

No entanto, uma nova investigação pode revelar que o exército israelense de fato armazenou algumas informações de inteligência coletadas por meio da vigilância em massa da população de Gaza em servidores gerenciados pela AWS, da Amazon. A investigação também pode revelar que determinados provedores de nuvem forneceram uma grande quantidade de recursos e serviços de IA para unidades do exército israelense desde o início da guerra de Gaza.

Fontes do Ministério da Defesa de Israel, da indústria de armas israelense, das três empresas de armazenamento em nuvem (Amazon, Google e Microsoft) e de sete funcionários da inteligência israelense que estiveram envolvidos na operação desde o início da invasão terrestre em outubro descreveram como os militares obtêm recursos do setor privado para aprimorar suas capacidades tecnológicas em tempos de guerra. De acordo com três fontes de inteligência, a cooperação do exército com a AWS é particularmente estreita: a gigante das nuvens fornece à Diretoria de Inteligência Militar de Israel um fazenda de servidores, usada para armazenar grandes quantidades de informações de inteligência que auxiliam o exército na guerra.

De acordo com várias fontes, a capacidade exponencial do sistema de nuvem pública da AWS permite que o exército tenha “armazenamento infinito” para manter informações de inteligência sobre quase “todo mundo” em Gaza. Uma fonte que usou o sistema baseado em nuvem durante a atual ofensiva relatou que fez “solicitações de informações à Amazon” durante a execução de suas tarefas operacionais e descreveu o uso de duas telas — uma conectada aos sistemas privados do exército e a outra conectada à AWS.

Fontes militares enfatizaram que o escopo da inteligência coletada a partir da vigilância de todos os residentes palestinos de Gaza é tão grande que não pode ser armazenado apenas em servidores militares. Em particular, de acordo com as fontes de inteligência, foram necessários recursos de armazenamento e capacidade de processamento muito mais extensos para manter bilhões de arquivos de áudio (em vez de apenas informações textuais ou metadados), o que obrigou o exército a recorrer aos serviços de nuvem oferecidos pelas empresas de tecnologia.

A grande quantidade de informações armazenadas na nuvem da Amazon, segundo testemunharam as fontes militares, ajudou até mesmo, em raras ocasiões, a confirmar ataques aéreos de assassinato em Gaza — ataques que também teriam matado e prejudicado civis palestinos. O conjunto da nossa investigação expõe ainda mais algumas das maneiras pelas quais as principais empresas de tecnologia estão contribuindo para a guerra em curso de Israel contra os palestinos — uma guerra marcada em tribunais internacionais pela suspeita de crimes de guerra e crimes contra a humanidade em território ilegalmente ocupado.

 

‘Você paga um milhão de dólares e ganha mais mil servidores’

 

Em 2021, Israel assinou um contrato conjunto com o Google e a Amazon chamado Projeto Nimbus. O objetivo declarado da licitação, no valor de US$ 1,2 bilhão, era incentivar os ministérios do governo a transferir seus sistemas de informação para os servidores de nuvem pública das empresas vencedoras e a receber serviços avançados delas.

O acordo foi altamente controverso, com centenas de funcionários de ambas as empresas assinando uma carta aberta poucos meses depois, pedindo o corte de laços com os militares israelenses. Os protestos dos funcionários da Amazon e do Google cresceram desde 7 de outubro de 2023, organizados sob a bandeira da No Tech For Apartheid. Em abril, o Google — que por um breve período foi listado como patrocinador da conferência “IT for IDF”, na qual Dembinsky falou, antes de seu logotipo ser removido — demitiu 50 funcionários por participarem de um protesto nos escritórios da empresa em Nova York.

Relatos da mídia afirmaram que os militares e o Ministério da Defesa de Israel fariam upload apenas de materiais não classificados para a nuvem pública dentro da estrutura do Projeto Nimbus. Mas nossa investigação revela que, pelo menos desde outubro de 2023, grandes empresas de nuvem têm fornecido armazenamento de dados e serviços de IA para unidades do exército que lidam com informações confidenciais. Várias fontes de segurança disseram à +972 e à Local Call que a pressão sobre o exército israelense desde outubro levou a um aumento drástico na compra de serviços do Google Cloud, AWS da Amazon e Microsoft Azure, com a maioria das compras das duas primeiras empresas acontecendo por meio do contrato Nimbus.

Uma fonte de segurança explicou que, no início da guerra, os sistemas do exército israelense estavam tão sobrecarregados que eles consideraram a possibilidade de transferir um sistema de inteligência, que serviu de base para muitos ataques em Gaza, para servidores públicos em nuvem. “Havia 30 vezes mais usuários, então ele simplesmente travou”, disse a fonte sobre o sistema. “O que acontece na nuvem [pública]”, continuou a fonte, “é que você aperta um botão, paga mais mil dólares naquele mês e consegue 10 novos servidores. Começou uma guerra? Você paga um milhão de dólares e tem mais mil servidores. Esse é o poder destas nuvens. E é por isso que [durante a guerra] as pessoas da IDF realmente insistiram em trabalhar com elas. Era um dilema”.

O Projeto Nimbus aliviou esse dilema. Como parte dos termos da licitação, as duas empresas vencedoras, Google e Amazon, estabeleceram data centers em Israel em 2022 e 2023, respectivamente. Anatoly Kushnir, cofundador da empresa de tecnologia israelense Comm-IT, que tem ajudado unidades militares a migrar para a nuvem desde outubro, explicou que a Nimbus “criou uma infraestrutura” de centros de computação avançados sob jurisdição israelense.

Esse arranjo, segundo ele, facilitou que “entidades de segurança, mesmo as mais sensíveis”, armazenassem informações na nuvem durante a guerra sem medo de tribunais estrangeiros — que, presumivelmente, poderiam exigir as informações no caso de um processo contra Israel.

“Durante a guerra”, continuou Kushnir, “surgiram necessidades [no exército] que não existiam [antes], e foi muito mais fácil implementá-las usando essa infraestrutura, porque é a infraestrutura de um proprietário global, capaz de prover serviços dos mais simples aos mais complexos”. Essas empresas, acrescentou ele, forneceram aos militares israelenses “os serviços mais avançados” disponíveis, usados na atual guerra de Gaza.

Essa mudança drástica nos procedimentos do exército se acelerou significativamente desde o início da guerra. No passado, disse Kushnir, o exército dependia principalmente de sistemas que ele mesmo havia desenvolvido, conhecidos como “on-prem”, abreviação de “on premises”. Mas isso significava que ele teria que esperar meses, ou mesmo anos, para criar novos serviços. Na nuvem pública, por outro lado, os recursos de IA, armazenamento e processamento são “muito mais acessíveis”.

Qualificando seus comentários, Kushnir explicou que “as informações realmente confidenciais, as coisas mais secretas, não estão [na nuvem civil]. O lado operacional definitivamente não está lá. Mas há coisas de inteligência que são parcialmente mantidas lá”.

No entanto, mesmo dentro do exército, alguns expressaram preocupação com a possibilidade de violações de dados. “Quando começaram a falar sobre o uso da nuvem [pública], perguntamos se não haveria um problema de segurança de informação com o envio de nossas informações para uma empresa terceirizada, mas fomos informados de que esse [risco] é menor do que a importância do uso dos serviços destas empresas”, disse uma fonte da inteligência.

 

‘A nuvem tem informações sobre todo mundo’

 

Fontes disseram ao +972 e ao Local Call que a maioria das informações de inteligência do exército israelense sobre agentes militares palestinos é armazenada nos computadores internos do exército e não na nuvem pública, que está conectada à internet. No entanto, de acordo com três fontes de segurança, um dos sistemas de dados usados pela Diretoria de Inteligência Militar de Israel é armazenado na nuvem pública da Amazon, a AWS.

Os militares usam esse sistema em Gaza para vigilância em massa desde pelo menos o final de 2022, mas ele não era considerado particularmente funcional antes da guerra atual. Agora, de acordo com essas fontes, o sistema da Amazon contém um “estoque infinito” de informações para o exército usar.

Fontes da defesa afirmaram que as informações de inteligência mantidas na AWS ainda são consideradas “insignificantes” em termos de uso operacional, em comparação com as que são mantidas nos sistemas internos do exército. Ainda assim, três fontes que participaram dos ataques do exército disseram que o sistema foi usado em vários casos para fornecer “informações suplementares” antes dos ataques aéreos contra supostos agentes militares, alguns dos quais mataram muitos civis.

Como +972 e Local Call revelaram em uma investigação anterior, o exército israelense autorizou a morte de “centenas de civis” em ataques contra comandantes sênior do Hamas do nível de comandante de brigada e, às vezes, até de comandante de batalhão. Em alguns desses casos, explicaram as fontes de segurança, a nuvem da Amazon foi operacionalizada.

As fontes disseram que o sistema baseado na AWS é particularmente útil para a inteligência israelense porque pode manter informações “sobre todos”, sem limitações de armazenamento. Às vezes, isso trazia vantagens operacionais: uma fonte de inteligência descreveu um momento “realmente fatídico” na guerra, quando o exército localizou um membro sênior da ala militar do Hamas dentro de um grande edifício de vários andares com centenas de refugiados e pessoas doentes. A fonte relatou o uso do AWS para obter informações sobre quem estava no prédio. O ataque, segundo ele, foi abortado porque não se sabia exatamente onde o agente sênior estava escondido, e o exército temia que seguir com o ataque prejudicaria ainda mais a imagem de Israel.

“A nuvem [da Amazon] é um espaço de armazenamento infinito”, disse outra fonte da inteligência israelense. “Ainda existem os servidores regulares [do exército], que são bem grandes… Mas durante a coleta de informações, às vezes, você encontra alguém que lhe interessa e diz: ‘Que pena, ele não está incluído [como alvo de vigilância], não tenho informações sobre ele’. Mas a nuvem pode dar informações sobre ele, porque a nuvem detém [informações sobre] todo mundo.”

Anteriormente, o exército excluía as informações inúteis acumuladas em seus bancos de dados para abrir espaço. Mas em sua palestra em 10 de julho, Dembinsky observou que o exército trabalha desde outubro para “proteger, salvar e armazenar todos os materiais de combate”. Uma fonte de segurança confirmou que esse é isso mesmo, e atribuiu o aumento do espaço de armazenamento às empresas de nuvem pública.

Outro grande incentivo para trabalhar com os gigantes da nuvem são os recursos de inteligência artificial que elas provêm e as fazendas de servidores de unidades de processamento gráfico (GPU) que servem de suporte para eles. Uma fonte da inteligência, que participou de discussões sobre a transferência da inteligência militar para a nuvem pública, disse que seus superiores “falaram sobre como, se eles migrassem para a nuvem, [as empresas de nuvem] já teriam seus próprios STT [recursos de fala para texto]. Eles têm muitos recursos e são bons. Por que desenvolver tudo na unidade do exército se estes já estão disponíveis?”.

O fluxo de trabalho descrito pelos oficiais de inteligência — que inclui a encomenda de dados da nuvem pública da AWS e o envio destes dados para uma rede militar fechada — corresponde aos detalhes de um livro escrito em 2021 pelo atual comandante da Unidade 8200, uma unidade de elite da Diretoria de Inteligência Militar de Israel, cuja identidade foi recentemente revelada pelo Guardian como sendo Yossi Sariel.

“Como os estabelecimentos de segurança podem usar a ‘nuvem da Amazon’ e se sentir seguros?”, escreveu Sariel, ao defender como solução uma rede especial na qual o sistema interno dos militares e a nuvem pública pudessem “comunicar-se entre si com segurança o tempo todo”. O escopo das informações secretas coletadas pela inteligência israelense é tão grande, acrescentou ele, que só pode ser armazenado “em empresas como Amazon, Google ou Microsoft”.

No mesmo ano, ao escrever para um jornal de inteligência israelense, o vice-comandante da Unidade 8200 pediu “novas parcerias” com os provedores de nuvem pública, já que seus recursos de IA são “insubstituíveis” e superiores aos do exército. Ele deu a entender que as empresas de nuvem também ganharão com a parceria com os militares: “A Aman [Inteligência Militar] detém a maior parte dos dados da IDF, incluindo dados sobre os inimigos, de uma ampla variedade de sensores — dados que, de outra forma, as empresas civis pagariam uma fortuna para ter acesso”.

 

‘O que a IDF usa será um dos melhores pontos de venda’

 

Durante anos, de acordo com fontes do setor militar e de armas, o Microsoft Azure foi considerado o principal provedor de nuvem de Israel, oferecendo seus serviços ao Ministério da Defesa e às unidades do exército que lidam com informações confidenciais. De acordo com uma fonte, o Azure forneceria aos militares israelenses a nuvem na qual as informações de vigilância seriam armazenadas, mas a Amazon oferece um preço melhor. Fontes das empresas de nuvem, que estavam a par dos vínculos com o Ministério da Defesa de Israel, contam que, desde que a Amazon venceu a licitação da Nimbus, compete agressivamente com a Azure, na esperança de substituí-la como a principal fornecedora de serviços do exército.

Kushnir, da Comm-IT, explicou que, no passado, “a maioria das agências governamentais e militares investiu muito no desenvolvimento e na criação de sistemas baseados no Azure”. Mas como o Azure não ganhou a licitação da Nimbus, continuou ele, houve um “certo processo de migração” no Ministério da Defesa para os servidores do Google e da Amazon, que se acelerou durante a guerra atual.

Fontes do setor de alta tecnologia disseram que o Ministério da Defesa de Israel é considerado um cliente importante e “estratégico” para as três empresas de nuvem. Isso não se deve apenas ao grande escopo financeiro das transações, mas também ao fato de Israel ser visto como influente na formação de opinião entre as agências de segurança em todo o mundo e na liderança de “tendências” que outras agências adotam.

Uma das pessoas que durante anos dirigiu a política de compras do Ministério da Defesa de Israel e manteve contato com os gigantes da nuvem foi o coronel Avi Dadon, que falou com a +972 e a Local Call para esta investigação. Até 2023, ele chefiou a administração de compras do Ministério da Defesa e foi responsável por aquisições militares no valor de mais de 10 bilhões de shekels (cerca de US$ 2,7 bilhões) por ano.

“Para as empresas [de nuvem], esse é o marketing mais forte”, disse Dadon. “O que as IDF usa foi e será um dos melhores pontos de venda de produtos e serviços do mundo. Para eles, é um laboratório. É claro que eles querem [trabalhar conosco].”

Dadon realizou muitas reuniões com representantes da AWS, Microsoft Azure e Google Cloud em Israel, bem como em viagens aos Estados Unidos. Ele também esteve em contato com os gigantes da armazenamento em nuvem sobre uma proposta confidencial chamada Projeto Sirius.

Citado pela primeira vez pelo jornal financeiro israelense Globes em 2021, o Sirius é considerado muito mais sensível do que o Nimbus e ainda não foi assinado com nenhuma das empresas de tecnologia. Em maio, os militares anunciaram em seu site que estão buscando contratar um especialista que “trabalhará com os grandes provedores de nuvem” para “transferir sistemas [militares] para a nuvem pública (Nimbus)” e para “preparar o upload de sistemas operacionais essenciais para a nuvem de segurança” sob a estrutura da licitação Sirius.

“O Sirius é uma nuvem de segurança privada, com air-gap [isolada das redes públicas e de outras redes], e destina-se apenas à IDF e ao Ministério da Defesa”, explicou Dadon. “Há mais de uma década, estamos discutindo como será essa nuvem.” Essa nova nuvem, de acordo com três fontes de segurança, deve ser desconectada da internet e construída sobre a infraestrutura dos grandes provedores de nuvem, permitindo que todas as agências de segurança israelenses a utilizem para sistemas confidenciais.

Os serviços de nuvem pública, de acordo com Dadon, têm o potencial de aumentar a letalidade dos militares. Ao procurar uma pessoa para “eliminar”, ele explicou, “você coleta bilhões de detalhes que aparentemente não são interessantes. Mas é preciso armazená-los. Quando você quer processar [e] fundir tudo em um produto que lhe diga que [o alvo] está aqui a esta hora, você tem cinco minutos, não tem o dia e a noite toda. Então, obviamente, você precisa das informações.

“Não é possível [fazer isso] em seus próprios servidores, porque você precisa excluir constantemente o que considera desnecessário”, continuou Dadon. “Há uma troca muito importante aqui. Depois de fazer o upload para a nuvem, o caminho de volta para o ‘local’ é quase impossível. Você começa a conhecer um novo mundo. Você já fez o upload de informações de várias ordens de magnitude maiores, e o que fará agora? Começar a excluí-las?”

Como +972 e Local Call revelaram em uma investigação anterior, muitos dos ataques de Israel em Gaza no início da guerra foram baseados nas recomendações de um programa chamado “Lavender”. Com a ajuda da IA, esse sistema processa informações sobre a maioria dos residentes de Gaza e compilou uma lista de agentes militares suspeitos, incluindo os mais jovens, para serem assassinados. Israel atacou sistematicamente esses agentes em suas casas particulares, matando famílias inteiras. Com o tempo, os militares perceberam que o Lavender não era “confiável” o suficiente, e seu uso diminuiu em favor de outros softwares. A +972 e a Local Call não puderam confirmar se o Lavender foi desenvolvido com a ajuda de empresas civis, como as empresas de nuvem pública.

 

‘Você luta de dentro do seu laptop’

 

Em sua palestra no mês passado, Dembinsky chamou a atual operação militar em Gaza de “a primeira guerra digital”. Embora possa parecer um exagero, já que a ofensiva de 2021 na Faixa também usou recursos digitais, fontes de defesa israelenses disseram que os processos de digitalização do exército se aceleraram significativamente durante a guerra atual. De acordo com elas, os comandantes em campo andam com smartphones criptografados, enviam mensagens em um bate-papo operacional semelhante ao WhatsApp (mas sem relação com a empresa), fazem upload de arquivos para um drive compartilhado e usam inúmeros aplicativos novos.

“Você luta de dentro do seu laptop”, disse um oficial que serviu em uma sala de operações de combate em Gaza. No passado, “você via o branco dos olhos do inimigo, olhava pelo binóculo e o via explodir”. Hoje, quando um alvo aparece, “você diz [aos soldados] pelo laptop: ‘Atire com o tanque'”.

Um dos aplicativos na nuvem interna das forças armadas chama-se Z-Tube (Z é a abreviação de Zahal, o acrônimo da IDF); é um site que se parece muito com o Youtube e permite que os soldados acessem imagens ao vivo de todos os dispositivos de filmagem das forças armadas em Gaza, inclusive os UAV [drones]. Outro aplicativo, chamado “MapIt”, permite que os soldados marquem alvos em tempo real em um mapa colaborativo e interativo. “Os alvos são a camada mais pesada do mapa”, disse uma fonte de segurança. “Faz parecer que toda casa tem um alvo.”

Um aplicativo relacionado chamado Hunter é usado para sinalizar alvos em Gaza e detectar padrões de comportamento usando IA. Ele foi apresentado na conferência “IT for IDF” pelo coronel Eli Birenbaum, comandante de uma unidade conhecida pelo acrônimo hebraico Matzpen, responsável pelo desenvolvimento de sistemas para usos operacionais.

A nuvem interna deve ser gerenciada em servidores militares e não conectada às nuvens das empresas privadas, mas várias fontes disseram que há maneiras “seguras” de as empresas civis de armazenamento em nuvem fornecerem serviços também para sistemas operacionais.

“A IDF não leva coisas muito sensíveis e confidenciais para fora; essas coisas ficam dentro [das redes militares]”, disse o coronel Assaf Navot, ex-funcionário sênior de TIC do exército e agora chefe da divisão de defesa da Comm-IT. Segundo ele, o desafio é trazer o “cérebro” das empresas civis de nuvem, como os serviços de IA, para os sistemas internos do exército, “sem que ele fique do lado de fora. Ele já está dentro. Portanto, você não pode fazer tudo de forma exatamente igual ao que acontece fora, mas mesmo assim tem avanços absurdos”.

Em 2022, Itai Binyamin, um especialista em IA que na época trabalhava com o Microsoft Azure e agora está na AWS, descreveu a um grupo de graduados da unidade Mamram de Dembinsky que esse sistema torna possível “implantar os recursos de IA [da Microsoft] mesmo no local, em seus servidores, em um ambiente desconectado [da internet]”. Em sua explicação no vídeo, Binyamin mostrou aos graduados como a ferramenta de reconhecimento facial da Microsoft poderia analisar um vídeo de notícias e identificar que o líder do Hamas, Ismail Haniyeh, aparecia nele.

No site do Microsoft Azure há referências à ferramentas chamadas “contêineres desconectados”, projetadas para “parceiros estratégicos” que precisam manter suas informações seguras. As ferramentas, de acordo com o site, incluem recursos para transcrição, tradução, reconhecimento de sentimentos, linguagem, resumo, análise de documentos e imagens, entre outros.

Navot explica que o ritmo de desenvolvimento da tecnologia digital é tão rápido que a única maneira de o exército “recuperar o atraso” é comprar serviços do mercado civil e de empresas de nuvem. “Veja o M16 [fuzil de assalto]. A última vez que eles fizeram um M16 foi na Guerra do Vietnã. Não mudou muita coisa.” Mas com relação ao software digital, diz ele, as coisas mudam “em meses, não em anos”.

O próprio fato de que o material de inteligência, mesmo que não seja diretamente operacional, seja carregado em uma nuvem civil levantou preocupações entre alguns militares israelenses. “Há algo de assustador nisso”, disse uma fonte do exército. “As informações que o exército tem hoje são informações íntimas sobre muitas pessoas [nos territórios ocupados]. Vamos cedê-las a empresas gigantes, privadas e comerciais que têm o objetivo de ganhar dinheiro com isso?”

Outras fontes de segurança, por outro lado, disseram que a inteligência bruta que é coletada de forma ampla e não de alvos específicos não é particularmente sensível, pois só se torna sensível quando traduzida em alvos para ataque. “Não é que seja realmente preocupante se os iranianos tiverem [acesso a] essas informações”, afirmou uma das fontes.

O general de brigada Yael Grossman, comandante da Divisão do Exército para o Fortalecimento da Tecnologia Operacional — conhecida pelo acrônimo hebraico Lotem — que é responsável pelo Mamram, disse em um podcast em maio que poder contar com tecnologias civis na guerra atual possibilitou um “salto inimaginável em um curto período de tempo”. Mas Dadon compara o upload de materiais para a nuvem com “entregar as chaves de uma Mercedes para outra pessoa. Não deveríamos usar a Mercedes? Precisamos usar. Como fazer isso? Eu não sei”.

 

‘É a participação direta nas ferramentas usadas para matar palestinos’

 

Nos últimos anos, a Amazon tornou-se não apenas parceira do exército israelense, mas também fornecedora de serviços em nuvem para várias agências de inteligência ocidentais. Em 2021, a AWS assinou um acordo com as agências de inteligência do Reino Unido (GCHQ, MI5 e MI6) para armazenar informações “confidenciais” e acelerar o uso de ferramentas de IA. Da mesma forma, o governo australiano anunciou neste mês que investiria US$ 1,3 bilhão para construir uma nuvem para o material de inteligência “ultrassecreto” nos servidores da Amazon. A gigante da tecnologia também assinou um acordo com o Pentágono, junto com outras três grandes empresas, para construir uma nuvem gigante que serviria ao Departamento de Defesa dos Estados Unidos para “todos os níveis de classificação”.

A Amazon publica regras vagas para “Construir IA de forma responsável,que se referem apenas a “obter, usar e proteger dados de forma adequada” e “evitar a saída prejudicial do sistema e o uso indevido”. Os Princípios e a Abordagem de IA Responsável da Microsoft afirmam: “Temos o compromisso de garantir que os sistemas de IA sejam desenvolvidos de forma responsável e de maneira a garantir a confiança das pessoas.”

O Google também publica uma lista de seus Princípios de IA, que afirmam mais claramente que o Google “não projetará ou implantará IA em […] tecnologias que causem ou possam causar danos gerais; […] armas ou outras tecnologias cujo principal objetivo ou implementação seja causar ou facilitar diretamente danos às pessoas […] tecnologias que coletem ou usem informações para vigilância que violem normas internacionalmente aceitas […] [ou] tecnologias cujo objetivo contrarie princípios amplamente aceitos de direito internacional e direitos humanos”.

No entanto, Gabriel Schubiner, ativista e organizador da No Tech For Apartheid, diz que esses princípios não têm “nenhum efeito real” porque as empresas de nuvem “os usam como relações públicas para mostrar o quanto são responsáveis”. De acordo com ele, as empresas não têm como saber em tempo real como seus clientes estão usando seus serviços.

Schubiner — que trabalhou anteriormente no Google e participou de um protesto de funcionários da empresa contra o fornecimento de tecnologia que, segundo eles, está sendo usada pelo exército israelense na guerra de Gaza — diz que o Google sempre usou uma “linguagem vaga” ao declarar seus princípios éticos. Além disso, diz ele, a empresa continua a afirmar que seus contratos com Israel são “antes de tudo para uso civil, embora esteja claro que muitas das ações da Nimbus têm como objetivo o uso militar”.

Uma fonte da defesa disse que a maioria dos novos contratos entre os militares e as empresas de nuvem desde o início da guerra foi feita por meio da licitação da Nimbus. No entanto, os militares também podem criar e aprofundar laços com empresas de nuvem por meio de licitações do Ministério da Defesa ou de contratos anteriores ao Projeto Nimbus. A +972 e a Local Call não conseguiram confirmar se a nuvem da AWS, usada para armazenar informações de inteligência, foi comprada como parte do Projeto Nimbus.

“Nenhuma das empresas divulgou publicamente qual foi, se é que houve, a diligência em direitos humanos que realizaram antes de participar do Projeto Nimbus”, explicou Zach Campbell, especialista em direitos digitais da Human Rights Watch. “Eles não mencionaram quais são os limites, se é que existem, em termos do que seria o uso permitido de sua tecnologia.”

Kushnir, que tem ajudado unidades militares israelenses a migrar para a nuvem, não teme que os protestos contra as parcerias das empresas de nuvem com Israel sejam bem-sucedidos. “É preciso lembrar que as mesmas empresas administram nuvens governamentais e militares semelhantes nos Estados Unidos, no Reino Unido e na OTAN”, disse ele. “Não são empresas iniciantes, são potências globais de TIC.”

Nadim Nashif, diretor executivo do 7amleh, The Arab Center for the Advancement of Social Media [Centro Árabe para o Avanço da Mídia Social], que se concentra nos direitos digitais palestinos, disse que sua exigência básica para as empresas de nuvem é que elas “garantam que seus produtos não sejam usados para prejudicar as pessoas”, o que não é o caso atualmente. De acordo com ele, apesar da retórica sobre a preocupação com os direitos humanos, os produtos dos gigantes da nuvem são vendidos “para governos e regimes que oprimem as pessoas”, incluindo o exército israelense.

Com relação à falta de supervisão dos projetos e parcerias com empresas de nuvem, Nashif acrescentou: “No contexto local, no caso de uma ocupação, a questão de saber se [esses serviços] são vendidos para uso militar, para o exército de ocupação, ou se são vendidos para uso civil, torna-se muito mais importante”. Segundo ele, a proximidade que existe em Israel entre o setor privado e os militares facilita a cooperação sem limites definidos, o que leva a “mais controle sobre [os palestinos], ainda mais em meio à guerra”.

“Há um foco excessivo na assistência militar direta que os Estados Unidos fornecem a Israel — as munições, os caças e as bombas — mas há muito menos atenção para essas parcerias que abrangem os ambientes civil e militar”, disse Tariq Kenney-Shawa, pesquisador de políticas dos Estados Unidos no think tank palestino Al-Shabaka. “É mais do que conivência: é participação direta e colaboração com os militares israelenses nas ferramentas que eles estão usando para matar palestinos.”

O Google e a Microsoft não responderam aos vários pedidos de entrevistas enviados a seus escritórios em Israel e nos Estados Unidos. A Amazon Web Services declarou: “A AWS tem como foco disponibilizar os benefícios de nossa tecnologia de nuvem líder mundial para todos os nossos clientes, onde quer que eles estejam localizados. Temos o compromisso de garantir a segurança de nossos funcionários, apoiar nossos colegas afetados por esses terríveis eventos e trabalhar com nossos parceiros de assistência humanitária para ajudar as pessoas afetadas pela guerra”.

Também pode te interessar