Cuba, o contraditório farol da luta política latino-americana: entrevista a Vanessa Oliveira
Entre a utopia e o cansaço, Cuba continua sendo um farol inspirador para a luta política — e não só para a América Latina. Ainda assim, desde o triunfo da Revolução Cubana, em 1959, dois grupos se formaram: os que acham que a ilha é o pior dos mundos e os que acham que é o melhor. O que sobra, na maioria dos casos, é a paixão e a ideologia.
E é justamente entre essa dualidade e nas nuances de viver em Cuba atualmente que se posiciona Entre a utopia e o cansaço, novo livro da Elefante, com organização de Aline Marcondes Miglioli, Fabio Luis Barbosa dos Santos e Vanessa Oliveira.
A obra traz 22 textos assinados por pesquisadores cubanos e de outras localidades da América Latina — sobretudo do Brasil — que complexificam os principais tópicos de discussão sobre a realidade do país. Com o foco nos dias de hoje, os artigos e ensaios se aprofundam em assuntos como os protestos políticos ocorridos na ilha, economia, questões raciais, a vivência da população LGBTQIAP+ e a expansão das igrejas neopentecostais.
“As pessoas têm a ideia da ilha de que é um monte de carro antigo, ninguém tem celular, todo mundo passa fome etc. Em qualquer campo político, na maioria dos casos, as informações não refletem a realidade de Cuba”, diz Vanessa Oliveira. Em entrevista à Elefante, a jornalista e pesquisadora explica o contexto em que essa polarização, a utopia e a exaustão cubana se consolidam e indica caminhos para superá-la.
(Spoiler: reconhecer e pensar nas contradições da vida na ilha é o primeiro passo.)
O que vocês quiseram dizer com o título Entre a utopia e o cansaço?
Visito Cuba há muitos anos, desde 2007. Aline e Fábio também. Mas fazia um bom tempo que não tínhamos voltado lá. Quando começamos a conversar sobre o livro, o que seria, quais temas iriamos abordar etc., decidimos fazer mais uma viagem. Nós fomos em momentos diferentes e foram visitas rápidas. No meu caso, basicamente, fiz entrevistas com pessoas que eu já vinha acompanhando de outros estudos de campo. E quando a gente voltou e começamos a conversar, fomos identificando algumas percepções que eram comuns nas nossas últimas experiências.
O título do livro vem muito dessa conversa. Existe obviamente uma relação intensa com a utopia, do que é um governo socialista dentro do espaço latino-americano. Cuba continua sendo um farol inspirador para a luta política, não só para a América Latina. O que percebemos dessa vez — fomos em um cenário de migração mais forte — e conversando com as pessoas, foi um certo desgaste, muito diferente do que tínhamos observado em outros momentos, sobretudo em relação à não resolução do bloqueio e à volta de crises, como a escassez de energia e de comida.
Não podemos esquecer que, nos anos 1990, Cuba viveu um momento que o Fidel Castro batizou de “Período Especial”. Foi a época do declínio da União Soviética, com o final da Guerra Fria, quando deixaram de subsidiar a Revolução Cubana. Esse cenário foi devastador para a economia de Cuba. A população passou por muitas dificuldades, relacionadas exatamente a esses dois fatores: a falta de energia e a falta de alimento. Nessas últimas visitas, o clima de medo e receio com a possibilidade de retorno a esse período era perceptível. Depois dos anos 1990 e dessa crise, tivemos uma ascensão da Venezuela de Chávez, e com isso a ajuda venezuelana e da revolução bolivariana que chega até Cuba. Mas, mais para frente, essa ajuda começa a escassear também. Outros parceiros também colaboraram, mas não da mesma maneira como a União Soviética e a Venezuela ajudaram, cada uma no seu momento.
Por isso acredito que o que vimos foi uma estafa mesmo, em relação a esse processo e ao bloqueio, que “uma hora vai cair”. A política de Barack Obama, por exemplo, gerou muita esperança de diálogo e a expectativa por medidas que, pelo menos, mitigassem os efeitos do bloqueio financeiro e econômico. No final das contas, isso não se concretizou. Tivemos algumas mudanças, como a permissão de viagens, a reabertura das embaixadas em cada país, mas depois chega o Donald Trump e todas essas medidas são revogadas, junto de uma pandemia. Com a chegada do Biden, que tinha sido vice-presidente da gestão Obama, todo mundo volta a ter expectativa de que ele revogasse aquilo que o Trump criou e as medidas que ele piorou. E, de novo, não é o que acontece. O Biden vai falar de levar a democracia para o povo cubano. O discurso dessas lideranças era de que não queriam o fim do bloqueio. Às vezes a gente acha que é uma coisa só de republicanos, mas não, é mais complexo do que isso. Inclusive o embargo piorou muitas vezes em governos democratas. Esse vai e vem, o medo da crise, a falta de esperança, geram um cansaço muito grande na população.
Por que pensar Cuba na atualidade, e para o que exatamente vocês estavam olhando?
Existe uma necessidade de olhar para Cuba a partir da atualidade e de entender quais são os imbricamentos, não mais só teóricos ou históricos, mas de que maneira todas as mudanças que a gente tem vivido até hoje têm chegado a Cuba. Em termos de tecnologia, de uso de celulares, de desinformação — um fenômeno que não é restrito a nossa realidade ou a dos Estados Unidos, acontece em Cuba também. O país passou por uma informatização e essas grandes empresas também se aproximaram, principalmente nesse período do governo do Barack Obama. E hoje com tudo que a gente sabe que é possível fazer a partir da internet, por exemplo, de mudanças e influências políticas, também tem acontecido na ilha.
Então esse livro vai trazer, por exemplo, a chegada dos neopentecostais e a influência que eles começam a ter em determinadas decisões políticas, como o Estatuto da Família; tem dois capítulos falando sobre questões raciais, que também é um debate que a gente não está acostumado a fazer quando falamos sobre o contexto cubano; falamos da questão LGBTQIAP+ e quais são as discussões hoje; sobre tecnologia e quais são as saídas tecnológicas que Cuba encontrou no último período para estar conectada. As pessoas têm a ideia de que a ilha é um monte de carro antigo, ninguém tem celular… Isso é um delírio, expresso por pessoas de qualquer campo político ou mesmo sem campo político, com uma imagem que não se concretiza.
Nossa proposta foi mostrar determinadas contradições, ou tentar explicá-las de algum modo, para quem não sabe muito bem o que esperar. Às vezes as pessoas procuram literatura sobre Cuba, do ponto de vista “quero saber o que aconteceu nos anos 1960, nos anos 1980”, mas não há nada que perdure por tanto tempo, assim estático. Isso não existe. Eu costumo falar que a imagem de Cuba é imagem estática para o cartão postal. Eu fiz pelo menos dez viagens ao país e encontrei uma ilha diferente todas as vezes. É muito surpreendente a maneira como — dentro desse contexto de escassez e de dificuldades econômicas e culturais geradas pelo embargo — a população se reinventa para lidar com as novidades.
De um lado o “vai pra Cuba”, do outro a defesa incansável dos sistemas de saúde e educação gratuitos e universais. Onde Entre a utopia e o cansaço se posiciona?
Uma preocupação que tínhamos quando começamos a elaborar o livro era que, desde o triunfo da Revolução Cubana, a partir de 1959, e da Guerra Fria, há dois grupos — e isso tem tudo a ver com essa disputa polarizada que o mundo vive e viveu: um que acha que Cuba é o pior dos mundos e uma parte que acha que é o melhor. Devido às disputas políticas e ideológicas, ou ao apego à história da Revolução Cubana, se criou esses universos que se fecham nas suas percepções e nenhum deles se permite enxergar nuances.
É possível que a gente entenda, por exemplo, o Brasil em 2024, a nossa situação política, o Congresso Nacional como está, a eleição do Lula em 2022, sem entender o que foi junho de 2013, o golpe na presidenta Dilma, Temer na presidência e a eleição do Bolsonaro em 2018? Não é possível. E tudo isso não tem nem 20 anos. Existem transformações muito profundas que uma sociedade pode passar. A história de Cuba dos anos 1960 não vai explicar todas essas questões novas. A nossa estratégia, inclusive, do ponto de vista da solidariedade internacional, pode se alterar a partir da percepção de que, hoje, Cuba é uma sociedade com outras complexidades. E é óbvio que, tanto a organização do livro, quanto boa parte das pessoas que colaboraram com ele, não ignoram o efeito que o embargo tem na maior parte das contradições ou das dificuldades de Cuba.
O que pretendemos é permitir que Cuba seja lida a partir de uma visão dialética. Quais são os desafios de Cuba no século XXI? Os desafios do século XX foram bem estudados, estão bem claros. Para mim, e acredito que para boa parte que contribuiu com esse livro também, o desafio maior que se coloca hoje é como podemos — em mundo tomado pela ultradireita, que se organiza em contextos muito diversos, em que vemos as dificuldades no enfrentamento à desinformação, à atomização das pessoas, cada uma com o seu celular, com a sua verdade, com a sua bolha — ampliar a nossa solidariedade internacional e estar prontos para compreender os contextos que vão surgir nos próximos anos e décadas, tendo em vista que não é algo estático. A história é importante para entender tudo que está acontecendo hoje, mas também precisamos pensar no hoje.